Há 70 anos morria Mário de Andrade, admirável escritor e
intelectual brasileiro, sempre adiante de seu tempo. Atuou como pesquisador da
arte, da música e da cultura brasileira, praticou (com fins de pesquisa) a
fotografia e o diário de viagem. Publicou romances e poemas centrais na
literatura brasileira. Pensou o Brasil através da cultura, mapeando
a cultura musical e popular de Norte a Sul do país. Foi também um
imprescindível gestor público de cultura. Primeiro Secretário Municipal de
Cultura de São Paulo, criador da Biblioteca Municipal que hoje leva o seu nome.
Mário foi trezentos e o foi em altíssimo grau. Não dá para compreender a vida
cultural e literária brasileira (política, social e artisticamente falando) da
primeira metade do Século XX sem passar por sua obra, inclusive a
epistolografia, que praticou de forma admirável e com uma generosidade para com
seus pares pouco vista até os dias de hoje. Um homem manso que, quando
cutucado, sabia se enfurecer.
O poema "Ode ao burguês" (de Paulicéia
Desvairada" - copiei de meu exemplar de "Poesia Completas"Círculo
do Livro, 1976) é bem um exemplo dessa "fúria". Ele sabia muito bem
do que falava, pois frequentava, apesar de pobre - vivia de suas aulas de
música - os salões literário da alta roda paulistana.
Deixo aqui também um link para uma leitura igualmente
"enfurecida" do ator, meu amigo, Ayrton Salvanini, que faz parte de um bom programa televisivo em
homenagem a Mário de Andre. Bom proveito: Bom proveito:
Ode ao burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tilburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!..
https://www.youtube.com/watch?v=41BXXBUiwAY
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