Manhã de segunda. Desperto. Sol de
inverno. Convite. A perspectiva do café da manhã sempre é de puro prazer, para
mim, a refeição mais importante do dia. Não foi.
Súbito, aperto no peito, sensação de
desmaio, vista turva e rosto pálido.
Sinais,
em escala mais leve e breve, já percebidos em outras ocasiões, mas não levados em conta. Observadora tarimbada, percebo que, desta vez, preciso levar a sério.
Chamei uma das três amorosas “cuidadoras” que tenho a sorte de ter a meu lado
e, em cinco minutos, cá estava ela, a do meio, dizendo: vamos!
Em quase oito décadas de vida, faltam
apenas três anos para completá-las, as únicas vezes em que estive hospitalizada
foi de pura alegria e celebração da vida, ou seja, na ocasião dos meus três partos, ou seja, o
nascimento das minhas atuais “cuidadoras”, o último deles, há 44 anos. Sou, é
claro, privilegiada.
Por mais horror que tenha a esses
ambientes, nos últimos cinco anos passei por eles com bastante frequência, sempre
como acompanhante, jamais como enferma. Antes, também por longos períodos, como
acompanhante de minha mãe. A angústia é sempre muito grande e agora não é diferente.
Tenho me valido da poesia para transmutar
esses sentimentos e observações em poemas que renderam dois pequenos volumes, vestígios,
de 2003, e a plaquete, uma estação no purgatório, encartada no meu livro
tempo em fúria, 2019, além de poemas e crônicas esparsas.
Para manter o hábito do registro, aqui vai
este, o desta nova estação, a minha, agora no inferno, como interna
numa UTI – Unidade de Terapia Intensiva.
Tão logo a informação chegou às distraídas
atendentes na recepção do Hospital, foi como se um alarme invisível tivesse soado
provocando o corre-corre com a idosa e sua dor no peito. Vem o empurrador da
cadeira de rodas, a enfermeira perguntadora, com o seu implacável questionário.
Enquanto respondo, outra enfermeira auxiliar vai colocando os eletrodos, uns 8
no peito, outros nos tornozelos, e vão me levando para a maca no setor de
observação (não, não é de pássaros, é de gente).
Enquanto sou transportada, lembro que há exatos 21
anos (num 2 de junho), minha mãe, com a mesma idade que tenho hoje, falecia neste mesmo hospital.
Teria chegado a minha vez? perguntei-me.
Desnudada das vestes que havia colocado às
pressas, mas que, como invólucro e inserção na minha "tribo", me emprestavam uma certa dignidade, passo a ser apenas um corpo
à mercê de mãos, agulhas e máquinas. Um delas, mede o circuito elétrico
do coração, enquanto uma apressada enfermeira erra a veia onde seria colocado
o acesso para introdução de soro e medicamentos. Fica lá o hematoma e vamos em
frente. Nova furada. Vamos ao soro e aos anticoagulantes.
Expressão preocupada, lá vem a jovem,
bonita e simpática cardiologista de plantão e, com doçura na voz, me diz que,
diante do resultado do eletrocardiograma, será necessária uma pesquisa mais
acurada, ou seja, novos exames, para saber a razão do "curto-circuito". Nada mais
preciso, neste caso, do que um cateterismo. É o que precisamos fazer. Diante do meu olhar
apavorado, ela pousa suavemente sua mão sobre meu ombro e diz que tenho sorte.
No plantão está o melhor médico do hospital para esse procedimento. Ensina-me a
respirar corretamente.
E lá vai a maca ligeira para uma sala de aspecto, para mim, futurista, com enormes máquinas e luzinhas piscantes. Enquanto um belo,
impassível e enorme enfermeiro, uma touca colorida com desenhos étnicos, aparência
de soberano africano, cuida de acionar máquinas e separar ferramentas, ignorando,
aparentemente, a enfermeira que depila a paciente prevendo opções, no caso da
primeira tentativa não dar certo. Uma minúscula toalhinha faz o papel de
tapa-sexo, enquanto braço e perna são desinfectados e ficam ali, desamparados pelas circunstâncias, à espera.
Colocam no meu nariz um pequeno respirador
com oxigênio, dão-me um Rivotril para ingerir (suspeitam do meu nervosismo?). Uma
voz simpática diz: sou doutor fulano, responsável pelo seu exame, fique calma
que será rápido e tranquilo. Enquanto respiro fundo, simplesmente apago
e nem sequer suspeito em que local do corpo foi aplicada a sedação.
Sonolenta ainda, ouço: seu exame terminou,
senhora. Correu tudo bem. Percebo que, à maneira dos encarcerados, estou agora “vestida” com uma ridícula bata fechada
nas costas por um laço, uniforme para os confinados por motivos de saúde.
E lá vai a maca novamente atravessando
portas e corredores e entra no que chamam de “UTI Cardiológica”. Ocupo o quarto
14, relativamente espaçoso, com uma cama e um sofá reversível para o
acompanhante e as tais máquinas com seus visores luminosos a monitorar o corpo,
verificando batimentos cardíacos, pressão arterial, saturação pulmonar e... sei
lá mais o quê.
A partir daqui, fico refém nessa cela sem
janelas, com uma tela gigantesca a exibir imagens capturadas por câmeras em tempo
real das ruas ao redor. O ar é condicionado e de nada me interessa essas
imagens ilusórias com palmeiras ao vento e carros, muitos carros a trafegar,
cujos motoristas sequer desconfiam do quanto é bom o vento nas ventas. Minha realidade é aqui. O
consolo é ter minha fiel escudeira a meu lado, sem arredar pé.
Mais à noitinha, o resultado do
cateterismo. Que fique tranquilo o leitor pois não irei transcrevê-lo, afinal, isso
não é para o entendimento de simples mortais como nós, o que registrei com
muita clareza, foi o diagnóstico do médico: “síndrome de coração partido”.
Como? Isso existe? É científico? Sim, é. Comprovadamente científico. Ora, mas se prestaria muito bem para o título de um poema ou, quem sabe, de um livro. A poesia me
procura e sempre tromba comigo nos lugares e situações mais inverossímeis.
Já em casa, vou ao Google atrás de mais
detalhes dessa tal síndrome de nome tão poético.
No
insuspeito site do HCor (Hospital do Coração – SP), leio: “O estresse emocional
e físico são alguns dos fatores que impulsionam a síndrome do coração partido.
Considerado um problema raro que provoca sintomas semelhantes aos de um
infarto, como dor no peito, falta de ar ou cansaço, e que surge em períodos de
grande estresse emocional. (...) A síndrome do coração partido normalmente é
considerada uma doença com origem psicológica. Porém estudos hemodinâmicos
mostram que, durante a síndrome, os ventrículos do coração não contraem
corretamente, simulando um infarto do miocárdio e resultando numa imagem semelhante
a um coração partido.”
Romântico, poético? Nananinanão! A coisa é assustadora e ainda não me refiz. De alguma maneira, passei a ser uma cardiopata, afinal, há outras cositas a serem observadas, todas "compatíveis com a idade". O tratamento recomendado? Caminhada e sociabilização. A "sociabilidade" que sempre pratiquei com intensidade, me foi tirada pela pandemia e, após as tragédias e os lutos, pela falta de motivação e hábito. A caminhada, sempre planejada e pouco praticada, reconheço, junto à festa dos encontros, serão os desafios nesta minha nova fase, ou seja, "a vida é agora" e é festa. Amanhã, sairei, ao lado de Mrs. Dalloway para comprar flores.
Abaixo, breve ensaio fotográfico da minha cuidadora/paparazzi (a mais velha) com alguma cenas da rotina diária na UTI, inclusive na etapa de recuperação.
Com a fisioterapeuta e uma echarpe para disfarçar o desalinho da vestimenta |
DO RETORNO E DA FELICIDADE EM SABER-SE MIMADA (Obrigada, Tarso de Melo, obrigada, Márcia Rosenberg, queridos amigos e tantos outros que, ao lado das três filhas, Carolina, Isabela e Alice e Luzia Maninha (amorosas e incansáveis), a irmã amorosa, Floripes. Valdecirio, o velho companheiro/marido há 51 anos, que nada soube dizer quando retornei, sentindo-se fisicamente desconfortável, pela emoção do momento. Por fim, a todos que, por inabilidade minha, não consigo registrar aqui, mas sabem que estão incluídos nos meus agradecimentos.