sexta-feira, 9 de junho de 2023

Síndrome do coração partido - ou a poesia sempre topa comigo mesmo nas piores horas

 

Manhã de segunda. Desperto. Sol de inverno. Convite. A perspectiva do café da manhã sempre é de puro prazer, para mim, a refeição mais importante do dia. Não foi.

Súbito, aperto no peito, sensação de desmaio, vista turva e rosto pálido.

Sinais, em escala mais leve e breve, já percebidos em outras ocasiões, mas não levados em conta. Observadora tarimbada, percebo que, desta vez, preciso levar a sério. Chamei uma das três amorosas “cuidadoras” que tenho a sorte de ter a meu lado e, em cinco minutos, cá estava ela, a do meio, dizendo: vamos!  

Em quase oito décadas de vida, faltam apenas três anos para completá-las, as únicas vezes em que estive hospitalizada foi de pura alegria e celebração da vida, ou seja, na ocasião dos meus três partos, ou seja, o nascimento das minhas atuais “cuidadoras”, o último deles, há 44 anos. Sou, é claro, privilegiada.

Por mais horror que tenha a esses ambientes, nos últimos cinco anos passei por eles com bastante frequência, sempre como acompanhante, jamais como enferma. Antes, também por longos períodos, como acompanhante de minha mãe. A angústia é sempre muito grande e agora não é diferente.

Tenho me valido da poesia para transmutar esses sentimentos e observações em poemas que renderam dois pequenos volumes, vestígios, de 2003, e a plaquete, uma estação no purgatório, encartada no meu livro tempo em fúria, 2019, além de poemas e crônicas esparsas.

Para manter o hábito do registro, aqui vai este, o desta nova estação, a minha, agora no inferno, como interna numa UTI – Unidade de Terapia Intensiva.

Tão logo a informação chegou às distraídas atendentes na recepção do Hospital, foi como se um alarme invisível tivesse soado provocando o corre-corre com a idosa e sua dor no peito. Vem o empurrador da cadeira de rodas, a enfermeira perguntadora, com o seu implacável questionário. Enquanto respondo, outra enfermeira auxiliar vai colocando os eletrodos, uns 8 no peito, outros nos tornozelos, e vão me levando para a maca no setor de observação (não, não é de pássaros, é de gente).

Enquanto sou transportada, lembro que há exatos 21 anos (num 2 de junho), minha mãe, com a mesma idade que tenho hoje, falecia neste mesmo hospital. Teria chegado a minha vez? perguntei-me.

Desnudada das vestes que havia colocado às pressas, mas que, como invólucro e inserção na minha "tribo", me emprestavam uma certa dignidade, passo a ser apenas um corpo à mercê de mãos, agulhas e máquinas.  Um delas, mede o circuito elétrico do coração, enquanto uma apressada enfermeira erra a veia onde seria colocado o acesso para introdução de soro e medicamentos. Fica lá o hematoma e vamos em frente. Nova furada. Vamos ao soro e aos anticoagulantes.

Expressão preocupada, lá vem a jovem, bonita e simpática cardiologista de plantão e, com doçura na voz, me diz que, diante do resultado do eletrocardiograma, será necessária uma pesquisa mais acurada, ou seja, novos exames, para saber a razão do "curto-circuito". Nada mais preciso, neste caso, do que um cateterismo. É o que precisamos fazer. Diante do meu olhar apavorado, ela pousa suavemente sua mão sobre meu ombro e diz que tenho sorte. No plantão está o melhor médico do hospital para esse procedimento. Ensina-me a respirar corretamente.

E lá vai a maca ligeira para uma sala de aspecto, para mim, futurista, com enormes máquinas e luzinhas piscantes. Enquanto um belo, impassível e enorme enfermeiro, uma touca colorida com desenhos étnicos, aparência de soberano africano, cuida de acionar máquinas e separar ferramentas, ignorando, aparentemente, a enfermeira que depila a paciente prevendo opções, no caso da primeira tentativa não dar certo. Uma minúscula toalhinha faz o papel de tapa-sexo, enquanto braço e perna são desinfectados e ficam ali, desamparados pelas circunstâncias, à espera.

Colocam no meu nariz um pequeno respirador com oxigênio, dão-me um Rivotril para ingerir (suspeitam do meu nervosismo?). Uma voz simpática diz: sou doutor fulano, responsável pelo seu exame, fique calma que será rápido e tranquilo. Enquanto respiro fundo, simplesmente apago e nem sequer suspeito em que local do corpo foi aplicada a sedação.

Sonolenta ainda, ouço: seu exame terminou, senhora. Correu tudo bem. Percebo que, à maneira dos encarcerados, estou agora “vestida” com uma ridícula bata fechada nas costas por um laço, uniforme para os confinados por motivos de saúde.

E lá vai a maca novamente atravessando portas e corredores e entra no que chamam de “UTI Cardiológica”. Ocupo o quarto 14, relativamente espaçoso, com uma cama e um sofá reversível para o acompanhante e as tais máquinas com seus visores luminosos a monitorar o corpo, verificando batimentos cardíacos, pressão arterial, saturação pulmonar e... sei lá mais o quê.  

A partir daqui, fico refém nessa cela sem janelas, com uma tela gigantesca a exibir imagens capturadas por câmeras em tempo real das ruas ao redor. O ar é condicionado e de nada me interessa essas imagens ilusórias com palmeiras ao vento e carros, muitos carros a trafegar, cujos motoristas sequer desconfiam do quanto é bom o vento nas ventas. Minha realidade é aqui. O consolo é ter minha fiel escudeira a meu lado, sem arredar pé.

Mais à noitinha, o resultado do cateterismo. Que fique tranquilo o leitor pois não irei transcrevê-lo, afinal, isso não é para o entendimento de simples mortais como nós, o que registrei com muita clareza, foi o diagnóstico do médico: “síndrome de coração partido”. Como? Isso existe? É científico? Sim, é. Comprovadamente científico. Ora, mas se prestaria muito bem para o título de um poema ou, quem sabe, de um livro. A poesia me procura e sempre tromba comigo nos lugares e situações mais inverossímeis.

Já em casa, vou ao Google atrás de mais detalhes dessa tal síndrome de nome tão poético.  

            No insuspeito site do HCor (Hospital do Coração – SP), leio: “O estresse emocional e físico são alguns dos fatores que impulsionam a síndrome do coração partido. Considerado um problema raro que provoca sintomas semelhantes aos de um infarto, como dor no peito, falta de ar ou cansaço, e que surge em períodos de grande estresse emocional. (...) A síndrome do coração partido normalmente é considerada uma doença com origem psicológica. Porém estudos hemodinâmicos mostram que, durante a síndrome, os ventrículos do coração não contraem corretamente, simulando um infarto do miocárdio e resultando numa imagem semelhante a um coração partido.”

            Romântico, poético? Nananinanão! A coisa é assustadora e ainda não me refiz. De alguma maneira, passei a ser uma cardiopata, afinal, há outras cositas a serem observadas, todas "compatíveis com a idade". O tratamento recomendado? Caminhada e sociabilização. A "sociabilidade" que sempre pratiquei com intensidade, me foi tirada pela pandemia e, após as tragédias e os lutos, pela falta de motivação e hábito. A caminhada, sempre planejada e pouco praticada, reconheço, junto à festa dos encontros, serão os desafios nesta minha nova fase, ou seja,  "a vida é agora" e é festa. Amanhã, sairei, ao lado de Mrs. Dalloway para comprar flores.      

Abaixo, breve ensaio fotográfico da minha cuidadora/paparazzi (a mais velha) com alguma cenas da rotina diária na UTI, inclusive na etapa de recuperação.

Com a fisioterapeuta e uma echarpe para disfarçar o desalinho da vestimenta

Preparo para a futura corrida de "São Silvestre"


E houve "concerto" individual, como "bônus"


As marcas/avisos da passagem


DO RETORNO E DA FELICIDADE EM SABER-SE MIMADA (Obrigada, Tarso de Melo, obrigada, Márcia Rosenberg, queridos amigos e tantos outros que, ao lado das três filhas, Carolina, Isabela e Alice e Luzia Maninha (amorosas e incansáveis), a irmã amorosa, Floripes. Valdecirio, o velho companheiro/marido há 51 anos, que nada soube dizer quando retornei, sentindo-se fisicamente desconfortável, pela emoção do momento. Por fim, a todos que, por inabilidade minha, não consigo registrar aqui, mas sabem que estão incluídos nos meus agradecimentos.