quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Havia uma feira no meio do caminho

Havia, na manhã desta quinta feira primaveril, uma feira no meio do meu caminho. Saudosa desse antigo hábito que, por força das circunstâncias e do conforto  (? será?)  do supermercado, havia deixado de lado, desacelerei o passo e, sem a obrigação de carregar sacolas ou abastecer a fruteira, usufrui do passeio, das cores e dos cheiros com todos os sentidos.


Tímida (ando assustada com o excesso de "celulares em punho" nas ruas), mas ainda assim, saquei do meu, pedindo permissão aos respectivos donos das bancas fotografadas.




Isto aqui, acredite, não é um armazém, daqueles com portas e trancas que há algum tempo viam-se pelos bairros os chamados "secos e molhados" (enlatados, produtos de limpeza, sacaria com grãos a granel, frios). Este "armazém", é montado todos os dias às 5h30 da manhã para, algumas horas depois, lá por volta das 13h00, voltar para as caixas que serão empilhadas no caminhão. Amanhã, e depois e todos os dias vindouros será assim, numa incrível logística que requer criatividade, força, rapidez e muita disposição. Os fregueses são pessoas de um bairro que possui o metro quadrado mais caro da cidade. Como se explica? Saudosismo? Com a palavra os cientistas estudiosos da vida cotidiana.



Mais adiante... a indefectível barraca de pastéis. Bem, confesso que nos últimos tempos degustei pastéis na feiras apenas em esporádicas "visitas", quando levo "turistas" à feira. Mas era hora de almoço, papilas a darem sinais de fome e... Impossível resistir. É cultural. Todo paulistano/paulista sabe. Lá fui. Refeição complementada pelo caldo de cana da indispensável barraca ao lado.

Estômago e sentidos abastecidos, retomei a caminhada rumo à minha casa, pensando no fascínio que sempre nutri por mercados e feiras. Lembrei de uma crônica que publiquei no já distante ano de 1998, que dizia:

" Com todos os transtornos que acarretam aos moradores das ruas onde são realizadas, as feiras livres representam ilhas de convívio em plena urbe que, inexplicavelmente, ainda as mantém. Diferentemente do supermercado, aqui as pessoas não demonstram pressa.  Se abraçam, param para conversar, sacolas e carrinhos esquecidos atrapalhando a passagem." E assim permanece, inalterável. 


Lá pelas tantas, já cansada, após a caminhada de ida, uma hora de Pilatis e mais a caminhada de volta, ouço uma voz a me oferecer carona. Era Dulce, amável vizinha do prédio onde vivo, dois andares acima do meu, que deve ter percebido o passo claudicante da pedestre. Alegre, aceitei, até porque não são todos os dias que uma carona nos deixa dentro da garagem da própria casa. Sou uma pessoa de sorte. (dtv)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Despedir dá febre


despedida

porque a hora é de partir
(retornando)

zumbem as turbinas 
é necessário apertar
o cinto do recordar
as instruções de segurança
já brilham na tela e no
sorriso da comissária
mas não dizem que a pista
vai dar no mar

não há tempo (nem coragem)
para sacar o diário de
bordo, pois a bordo o
recordar da viagem preenche
assentos e estômagos já em
ânsias de chegar

sempre foi assim
:
despedir dá febre (Diadorim)
e o fim da viagem jamais é registrado




sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Igreja que vende livros e a Vila Literária de Óbidos

Não deixa de causar um certo frêmito de estranheza, entrar num templo como a Igreja de São Tiago (Séc. XII) ao lado das muralhas do Castelo de Óbidos e, no lugar de imagens de santos e paramentos religiosos, dar com...




uma livraria, milhares de volumes ocupando inusitados escaninhos e altares, como este, com os livros de um declarado ateu em destaque.




A iniciativa de transformar a pequena e encantadora Vila de Óbidos em uma "Vila Literária", veio de José Pinho, proprietário da Ler Devagar, com sede em Lisboa.



E assim foi. Em meados do ano passado, pelas notícias que me chegaram, além da Igreja, várias outras livrarias, dentre elas alguns sebos, ali foram se instalando em antigos galpões, mercados e outros espaços inusitados.
Não deixa também de causar espanto que, em tempos da alardeada crise econômica portuguesa e do fechamento de livraria históricas como a centenária Sá da Costa, no Chiado e muitas outras, haja gente de coragem para investir em livrarias numa vila com pouco mais de 3000 habitantes mas que, diga-se (e essa deve ser a razão da coragem, mas a ideia de atrair aficcionados do livro), recebe quase esse montante de visitantes diários. Não consegui apurar se o projeto está indo bem financeiramente nem se todas as livrarias que se instalaram ali (sete - de um total previsto para onze) permanecem abertas, uma vez que, turista cansada em final de viagem, faltou-se pernas para a busca e só consegui, localizar e visitar três. Uma, de livros usados, funciona num enorme galpão de um antigo mercado.



 Valendo-se dessa estética e referência histórica, as "estantes" são os próprios caixotes de madeira usados para transporte de frutas que, aliás, são vendidas ao lado dos alfarrábios.




 A outra livraria visitada é especializada em livros de arte e funciona também como Galeria.




Só espero que essa exótica proposta siga em frente para alegria dos (poucos) turistas que dividem seus interesses entre "selfies" e eventuais preces literárias. (dtv)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Ruas do Funchal - toponímia original

"O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado". O velho Riobaldo está coberto de razão. No Funchal, onde nasci, na chamada "Zona velha", a parte mais antiga da cidade, os nomes das ruas preservam sua origem e falam da história do lugar, do que já não é, mas precisa ser lembrado pelo que foi. Marcas de gente, ainda que através de um mero prenome ou ofício.
Notas:
1) Tanoeiro, operário que faz ou conserta tonéis ou pipas (meu avô materno era tanoeiro e muito se orgulhava de sua arte.
2) Varadouros, aqueles que avaliavam a capacidade das pipas e dos tonéis, medindo-os com as varas.
3) Varadouro, lugar onde se encalham as embarcações para os consertos ou guardá-las no inverno. Lugar onde se reúnem pessoas para descansar e/ou conversar. (acredito que o "Largo dos Varadouros" atendia às duas finalidades
4) Como todas as cidades antigas, o Funchal teve suas "portas" (que se fecham e abriam a horas marcadas), algumas com características de defesa militar. O Funchal chegou a ter 16 portões no início do Séc. XIX, já em 1836 só 11. O Portão dos Varadouros, o último, foi destruído em 1911 (construído em 1689) pela mesma edilidade que o mandou erguer (!).
5) Cidrão, árvore, espécie de cidra, fruta de casca grossa, da qual se fazia doce.
6) João Esmeraldo, fidalgo flamengo (Esmenaut) 1480 (era dono de Sesmaria e foi amigo de Cristovão Colombo com que, dizem, uma de suas filhas teria se casado).
7) A presença árabe também aqui, como no Continente: Aljube: cárcere; Mouraria (lugar de mouros, muçulmanos).

8) Finalmente, mas não menos importantes, as referências meramente poéticas, como "Boa Viagem", "Larguinho da Feira", Rua da Figueira Preta", "do Forno",  etc.



















quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Calçadas do Funchal ou a história da cidade sob os pés

Andar pelas ruas do Funchal (capital da Ilha da Madeira, minha cidade natal) é caminhar sobre a história da própria cidade. A cultura e a história pela arte da pedra. Pergunto-me, se todos que por ali passam se darão conta disso.



















segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A Ilha da Madeira numa crônica (inédita) de 1991 e imagens de 2014

CRÔNICA MADEIRENSE

Aqui, a terra sempre se acaba e o mar está sempre a começar. A vertigem nas curvas dos caminhos, nas casas construídas sobre penhascos, ópio para a falta de distâncias e horizontes. Cores e luz. A luz, a luz... magia, convite à embriaguez pela beleza.  Em ritmo de outros tempos, as freguesias quase fantasmas dormitam sua solidão e são parte integrante da natureza.
Cava-se, aduba-se, rega-se em silêncio. Apenas o rumor do mar ao fundo,  incessante canção de uma só nota.
Resta aos madeirenses o vinho, a festa e a fé, energia e combustível contra o elo sufocante da terra sem continuação.




sábado, 6 de setembro de 2014

Lisboa, num poema de 1989 (inédito) e uma imagem de 2014

O PASSADO À JANELA DO 28

Olhos coloridos de azulejos
homens e roupas ao vento
o passado passa
despudorado
à janela do elétrico
na porta do Martinho da Arcada
nos ferros retorcidos do Chiado
Olhares impassíveis de Garret e Junqueiro
a cabeça cheia de pombos
e a certeza da inutilidade da glória
Homens no lugar de outros homens
Lisboa é a mesma
apesar das Amoreiras


dalila teles veras, Lisboa, junho/1989


Lisboa, numa crônica de 1986 (inédita) e numa imagem de 2014

É setembro e a cidade, Lisboa. Acompanha-me um moiro na Calçada de Santo Antão, vamos à busca de frutos do mar e olhamos absortos as lagostas nadando nos tanques à porta dos Restaurantes. O vinho é Dão, mas o fado não é o mesmo. O motorista do taxi disse que não há mais fados para portugueses, exceto os fados vadios que acontecem nas festas populares. O fado agora é só para turistas e está sendo cantado em dólar.
Não sei mais de mim, nem deste fado. Sei da pena escorrendo palavras e sangue e desta canção estranha que fala de amor e desventuras. O pensamento vaga pelas vielas estreitas da velhíssima cidade e já não está só, acompanha-o a história e seus personagens, cavaleiros e discretas damas. Todos os poetas cantam e fazem roda, exceto Pessoa, que paira calado num café do Chiado que cheira a açorda. Está só, como sempre esteve, e sem óculos, eles já não lhe fazem falta - pode ler sem enxergar, viu e disse tudo. Seus poemas, despidas dos signos convencionais.
Os espanhóis, por vezo histórico, continuam a invadir Portugal. O grupo de brasileiros ao lado é excessivamente barulhento e é tão falso este fado! A única verdade está aqui, cristalina, na garrafa de uma Dão, safra 1984. É sempre amargo o último gole e o vinho já sabe a saudade. Melhor era nunca partir.


dalila teles veras, Lisboa, setembro/1986