Deixar o QG no espigão e, ladeiras abaixo, ir em busca da
cidade antiga à época conhecida como "centro novo", ruas por onde
andou, estudou e trabalhou a menina antiga. A cartografia agora é a da memória
que, ao longo de meio século só fez aumentar a relação amorosa com a cidade. As
marcas que aqui vejo, desconfio, não ficaram intactas na memória por aqueles
anos, mas foram se tornando familiares, descobertas e (re)significadas, justamente
porque revisitadas e, a cada uma das visitas, ampliadas pelo conhecimento
histórico.
Agora, motivada por uma matéria recente publicada num suplemento/guia
de um grande jornal da Capital que mapeava as "galerias" do centro
velho (nada menos do que 15! compreendidas entre a Praça Dom José Gaspar e a
av. São João), que, algumas delas verdadeiras "artérias" (ou
"falsas artérias) que, mesmo sendo propriedades particulares, além de
servirem de vitrinas para serviços e comércio e, a partir do primeiro andar,
residências e escritórios, também possuem uma função, talvez não prevista no
seu projeto original, que é de encurtar caminhos, além de proteger seus
passantes de eventuais intempéries. São primas-irmãs das famosas
"passagens" de Paris, da quais tanto se ocupou W. Benjamin e que
ainda não tiveram por aqui um trabalho literário à altura de sua história.
O Edifício Copan foi o ponto de partida, ainda que os
estabelecimentos localizados em seus corredores curvilíneos, feche aos domingos
e feriados (era segunda-feira, mas era Carnaval), valeu pelo Café Floresta,
firme em seu passado glorioso, segue sem aceitar cartão nem cheque, nem
oferecer bancos ou mesas. Ali, o abastecimento matinal, traduzido num
aromático, quente e encorpado "tipo Santos", bom auspício para a
expedição.
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Av. Ipiranga com Av. São Luís - 10h |
Se, por um lado, a cidade vazia propicia a possibilidade de
um olhar sobre detalhes (piso, portas, janelas, arquitetura, traçado) que em
meio à multidão costumeira são difíceis de visualizar, por outro, falta ali a
"vida" que é justamente dada por essa multidão. Mas o objetivo hoje é
outro e, assim, vamos em frente. Primeira parada (esta, com dicas preciosas
adquiridas numa crônica do Prof. José de Souza Martins publicada no Estadão, em
2011.
Segunda parada, Galeria Califórnia, no número 255 da Barão de
Itapetininga
edifício projetado por
Niemeyer e Carlos Lemos, desafiadora ousadia contrastante e afrontosa à sizudez
europeia dos prédios do entorno, saídos das pranchetas de Ramos de Azevedo, na virada
do século XIX/XX) e que (ainda com o Prof. Martins) não passavam de tentativa
de "reproduzir aqui a Paris que não éramos..".
Coerente com a
proposta de Brasília, o edifício tem a marca inconfundível de seu criador, inclusive,
dos artistas convidados por ele para decorá-lo. Portinari assina um painel de
pastilhas no saguão e (esta foi a grande dica do prof. Martins) um insuspeito,
improvável e quase secreto jardim (no primeiro andar) projetado por Di
Cavalcanti. Não fosse a gentileza do Sr.
Antonio, o zelador que ali trabalha há 42 anos e que, entre outras coisas, se
orgulha de ter plantado algumas das palmeiras, jamais teríamos acesso a essa
curiosidade.
No piso, o desenho do pássaro, em branco e vermelho, começa a se apagar e requer restauro urgente,
mas as citações na imprensa despertaram a consciência dos proprietários que, ao
que parece, começaram a se orgulhar da história do local.
O prédio tem entrada pela Barão e interliga com a Dom José
de Barros. Na fachada da Dom José, é possível perceber o impressionante contraste
entre os estilos arquitetônicas e o mal estar que o modernista causou em 1955.
Dali, ainda na Barão, passamos pela Guatapará que, segundo
consta, é a mais antiga do centro (no tempo da menina, ainda havia algumas
livrarias e cafés por lá, mas hoje vende inúteis quinquilharias chinesas).
Interliga com a 24 de Maio.
A tentativa de visitar a Galeria Itá, uma das mais antigas (1949), interligada à Galeria R. Monteiro (projetada pelos arquitetos Rino Levi Roberto de Cerqueira César e Luiz Roberto Carvalho Franco (1963), com azulejos de Burle Marx, mas que, para minha decepção encontravam-se fechadas ao público, assim como a 7 de Abril, especializada em produtos fotográficos e consertos de câmeras e a Galeria Metrópole (em obras) gloriosa nos meus tempos, com seus bares voltados para a praça Dom José Gaspar (o Pari Bar ainda resiste) e gente descolada circulando. Pena.
Ainda que a quase totalidade de seus estabelecimentos também
estivesse fechada, a conhecida rua Nova Barão (que vai da Barão de Itapetininga
à Sete de Abril), na verdade é uma pseudo rua.
Condomínio particular que seguiu
o padrão arquitetônico de sua época (foi inaugurada em 1962) com dois andares
de lojas e apartamentos residenciais nos demais, foi considerado o primeiro
Shopping a céu aberto de São Paulo.
Por lá circulei em seu início, no intervalo
do almoço e na saída do meu primeiro emprego, e me achava a rainha da cocada
chique, a pessoa mais "moderna" do planeta. Apesar da drástica mudança em seu comércio (inúmeros lojas de discos usados
instalaram-se no segundo andar, ao lado de salões de cabeleireiro e outros
serviços)
permanece bonita e bem conservada, com seu piso de pedras portuguesas e um
nostálgico chafariz.
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Um belo ângulo do início da Barão de Itapetininga visto do 2o. andar da Nova Barão, com o Teatro Municipal à esquerda |
Encerrou o passeio exploratório
pelas nossas "passagens", a visita às Grandes Galerias ou Galeria do
Rock, como é conhecida, na 24 de Maio com saída para Av. São João. projetada no
início dos anos 60 por Alfredo Mathias que, dizem se inspirou na escola
nascente de Niemeyer, como de fato suas curvas o denunciam
Diferentemente das demais
galerias, todas as 450 lojas distribuídas pelos 4 andares estavam abertas e
muita gente circulava por seus corredores com jeito de Shopping Center.
Pudera, diz
a Wikipedia que circulam por ali 5.000 pessoas por dia e não apenas fãs de rock
and roll, mas uma infinidade de tribos urbanas que vão à busca de produtos e
serviços para gostos outros e visuais alternativos, como salões de beleza
especializados em tratamento e penteados afro, estúdios de tattoo, lojas
especializadas em discos antigos de ritmos que vão muito além do rock, como hip
hop, rap, funk, blues e, dizem, até MPB,
jazz e sei lá mais o quê. Não por ocaso já foi cenário de novelas, roqueiros
famosos andaram/andam por lá e shows históricos foram ali realizados. Uma
verdadeira festa de cores e diversidade que não visitei por completo respeitando a velha carcaça que, após quatro horas em pé, pedia trégua e alimentação.
Assim, lá fomos nós, como não podia
deixar de ser, almoçar num restaurante que pudesse contribuir com o clima
vintage. O escolhido foi o Churrasqueto, na 24 de Maio, para lembrar os meus
tempos de militância na UBE (início dos anos 80) cuja sede ficava em frente. Comida
boa (mas exageradamente farta para a capacidade de meu estômogo), preços
honestos, além do clima anos 70 que lhe confere a mesmíssima decoração e os
garçons que lá trabalham desde então. (dtv)