quarta-feira, 15 de julho de 2020

Carta a Giovana Damasceno




Querida Giovana,
Chegou aqui o seu “Alguém para segurar a minha mão” (Penalux, 2020), já há alguns dias. Deixei o envelope na “quarentena” e, quando o abri, deu-se aquele fato estético de que nos fala Borges, não consegui mais fechar. Era noite e mais tarde ficou e eu, livro adentro. Após a 71ª pagina, fui vencida pelo cansaço e tive que aguardar momento mais propício para tomar fôlego para encerrar a leitura, o que ocorreu ontem.
Demos, os que moram aqui comigo, uma trégua no isolamento e fomos para nosso refúgio (quase) secreto, uma casinha perto da serra do mar, cercada de mata atlântica, que já foi minha segunda residência, pois minhas filhas cresceram passando todos os fins-de-semana ali, mas que nos últimos anos deixou de ser. Estava precisada de me reconectar não só com a história do lugar, mas também com a natureza. Esta a 3ª. vez, pois de março a junho, não fui capaz de sair de casa, mas vi que fiz bobagem e, nesse caso, era excesso de zelo.
Levei seu livro e, após o almoço, protegida por toda a energia que dali emana, sentei-me à sombra de uma laranjeira e terminei a leitura. Gostei muitíssimo e digo porquê: primeiro pelo motivo óbvio, você é uma escritora de talento (fato que eu intuía, mas só agora comprovado integralmente);  segundo, porque sempre gostei do gênero “new journalism”, já consagrado por muitos, desde Truman lá,  Euclides aqui, sempre renovado, como neste seu caso, onde realmente o conceito é aplicado de maneira extraordinária, ou seja, o fato jornalístico narrado de forma literária.
Terceiro, porque comecei a me interessar por essa temática, a da “boa morte” desde 2002, quando senti e acompanhei, por mais de dois meses, o sofrimento e agonia de minha mãe, deixada aos cuidados intensivos de um hospital, diante do processo do cuidado “com um corpo”, a meu ver, apenas “um corpo” e o quanto isso trouxe sofrimento a toda a família. Dessa experiência dolorosa, nasceu um pequeno livro, “vestígios” que publiquei um ano depois de cumprido o rito do luto.
Como gostaria, naquele período, ter-me encontrado com alguém como o Dr. José, personagem real do seu livro! Como me senti representada naquelas falas que misturam medicina com espiritualidade e, sobretudo, gestos de muito afeto, delicadeza e humanidade, no respeito ao enfermo e à família! É um tema que me persegue, mas de forma mais aguda, quando tenho que acompanhar alguém próximo naquele lugar funesto, que chamam de UTI. Da última experiência, há dois anos, após uma cirurgia gravíssima e de urgência sofrida por meu marido, com um pós-operatório necessário, sem a mínima possibilidade de cuidados em casa. As anotações daqueles 8 primeiros dias, resultaram num conjunto de poemas que foram enfeixados como encarte no meu último livro, Tempo em Fúria.
Neste tempo que nos cheira a morte (nada natural e possivelmente evitável) e abalado  com ecos, lutos e sofrimentos alheios, fez-me muito bem a leitura do seu livro. Passarei a recomenda-lo a amigos, como forma de reflexão sobre o direito de morrer em paz, com alguém a segurar a sua mão.
Na impossibilidade de redigir uma resenha de seu livro (assim como muitas outras oportunidades de leituras recentes que deixei passar, à espera de um momento mais adequado e que nunca veio por conta da falta de concentração), achei melhor escancarar publicamente  o que senti ao ler seu livro, antes que o impacto passe e, mais uma vez, deixar de dar a conhecer estas impressões de mera leitora.

Grande abraço e admiração, dalila