No dia 29 de novembro de 1957, uma sexta-feira, o “Santa
Maria”, paquete português pertencente à Companhia Colonial de Navegação, atracou
no Porto de Santos. Dentre turistas (na primeira classe) muitos emigrantes (terceira
classe) vinham em “caráter permanente”, como era o caso da família Olival/Agrela,
a minha (Manuel de Jesus Agrela, Maria de Lourdes do Olival, Dalila Isabel
Agrela, José Manuel Agrela, Maria Floripes do Olival Agrela).
29 de novembro de 2017 foi ontem, mas como não me apercebi
da data, celebro hoje os meus 60 anos de Brasil, em forma de abraço fraterno
aos meus irmãos brasileiros e com alguma poesia.
A infância e a travessia foram objeto dos poemas do meu
livro “solidões da memória” (Alpharrabio/Dobra, 2015).
Neste poema, chegada, falo da
viagem e do impacto com a terra prometida.
chegada
Para a frente era só o inavegável
Sob o
clamor de um sol inabitável
Sophia
de Mello Breyner Andresen
onze foram os dias
enjoo, sarna e tédio
terceira classe
paquete santa maria
da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais
aos emigrantes, o
delimitado espaço
do porto, aos turistas
a cidade (entre)vista
do cais
(aos que vinham
para o trabalho
ver o trabalho
era o limite)
via-se
:
corpos gingantes, a estiva
torsos negros azuis suados
e o cheiro despudorado
do abacaxi a anular o resto
(o brasil tinha
cheiro
e era de ananás)
Nota: O navio Santa Maria, construído entre 1952 e 1953, na
Bélgica por encomenda do Governo Português, fazia parte do “Plano de Renovação
da Marinha de Comércio”, tido como “Despacho 100” e implementado por Américo
Tomás, então ministro da Marinha de Portugal. Fez parte desse plano a
construção de 56 navios para a Marinha Mercante portuguesa. Juntamente com o
seu similar, o “Vera Cruz”, construído um pouco antes, esses navios ficaram
conhecidos como “navios do Despacho 100”.
A viagem inaugural do Santa Maria ocorreu em 1953, com
destino ao Brasil, Uruguai e Argentina. Durante sua carreira (1953-1973) fez
carreira regular entre Portugal e as Américas (do Norte, Central e do Sul). Foi
o único paquete português com linhas regulares para portos dos EUA.
Não foi, entretanto, por essa carreira trivial transportando
mercadores e passageiros que o Santa Maria ficou célebre. Em 21 de janeiro de 1961, um grupo de exilados
políticos portugueses e espanhóis, ligados à “Direção Revolucionária Ibérica de
Libertação” que, à época, faziam oposição política aos governos ditatoriais de
Salazar e Franco, sequestrou o navio que
passou a ser chamado de “Santa Liberdade” pelos revolucionários. No comando do
navio sequestrado, ação denominada “Operação Dulcineia”, estavam o Capitão
Henrique Galvão e Jorge de Soutomayor. A lamentar o assassinato do oficial João
José Nascimento Costa, 3º piloto. O sequestro, muito barulho depois, acabaria
no Porto do Recife, no dia 2 de fevereiro. Foi o primeiro sequestro político de
um transatlântico da história contemporânea. O seu final não teve nada de glorioso. Ainda
relativamente novo e navegando, foi
vendido, em 1973, para a China, para desmanche.
Concluindo, não escolhi emigrar, mas escolhi ser brasileira sem deixar patente a minha nacionalidade portuguesa. Sou uma escritora brasileira nascida em Portugal (a minha sintaxe não é a lusitana, como é de se esperar de alguém que saiu de seu lugar de nascença aos 11 anos e vive há 60 noutro, o da escrita). dtv