Cumprindo a promessa e após agregarmos uma proposta complementar de Ciça Lessa, ou seja, de que a tela que dá nome à exposição “Além de superfície”, da Vitória Fogaça, fosse ponto de partida para os textos daquelas e daqueles que não estiveram presentes na visita à exposição no sábado anterior, motivo do meu último post aqui.
O encontro Sábados PerVersos do último sábado, 04.02.23, com a presença de Márcia Plana, Isabela Veras, Rosana Chrispim, Luzia Maninha e Dalila Teles Veras, Deise Assumpção, Paulo Dantas, Mireille Leirner, Andrea Paula Santos, Conceição Bastos e Valdecirio Teles Veras e da própria artista, Vitória, o grupo voltou a comentar sobre o mergulho na exposição “Além da Superfície” e cada um dos presentes mostrou o resultado criativo dessa imersão e diálogo entre artes.Com linguagens, estilos e gêneros diferentes, eis uma pequena mostra do que foi lido e discutido no encontro.
raízes
1.
na pulsação do olho a uApós a imersão, as tarefas da poesia no Sábados PerVersosnha ocre arranha a superfície do quadro um corpo se escamoteia em camadas se desenha em profundidade – paisagem remota de uma floresta ancestral
2.
e tudo o que você tem é um corpo
para dizer sim ou não
ou talvez
um corpo que chove
em todas as estações
e também antes e depois da chuva
3.
os terremotos e incêndios são linhas invisíveis e percorrem as raízes
que pulsam e repousam
em diferentes planos
da paisagem remota
de uma floresta ancestral
Conceição Bastos
Vitória, quase catatônica em frente ao espelho olha para dentro de si e tenta lembrar de sua infância.
Jogos, fitas cassetes, o balanço no quintal, o velho baralho, a cortina da sala que refletia sombras hipnóticas e ao mesmo tempo amedrontadoras. Lembranças soltas como peças jogadas fora do tabuleiro.
Mergulha mais fundo pensando na sua mocidade e se vê em pedaços, nunca completos, resultado da automutilação que tenta ocupar o vazio.
Passa a mão em seus cabelos e já não encontra as tranças que costumavam dançar sobre seus ombros despertando os olhares de terceiros.
Então sacode a cabeça fechando os olhos e saindo do transe se percebe ali, nua e despida de qualquer maquiagem. Gosta daquilo que vê.
Sua aura transcende quando ela toca seu corpo e finalmente se vê completa em todas as camadas. Após anos ruminando as palavras que teimavam em ficar engasgadas, finalmente deixa escoar todo o gozo represado. O que estava ali enterrado germinou e ainda reverbera para muito além da superfície.
Isabela Veras
Além da superfície
importa
menos o perfil delineado
que as camadas de repouso
sedimentos
acúmulos
leitos depositários
da mais leve poeira
do maior escombro
cementados
postos em tela
sugerem
mais vale a fermentação
o reflexo
o eco
deflagrados a correr
na cozinha
no escritório
na sala de estar
conta
em suma o processo
o trajeto
a somatória do
comum com o original
Rosana Chrispim
Corporaturas
Hoje-como-sempre extensão do real eclode na vida acordada de tantas poesias ambulantes sonhos em forma de gente. nunca passarão. Perpétuas. mostravam algo. Vocês e a obra de arte! tinham (se) feito: Perfeitas. nossa própria criação. Éramos formas tridimensionais. Curvas coloridas… Contínhamos mensagens, Imagens, Enigmas. Girávamos. Suspensas no ar. Para lados diferentes… Uma ao lado da Outra. assimetricamente sobrepostas. Como pessoas. Nós Mesmas. No Giro Autônomo nos víamos: Formas Desenhos. Cravadas nas Pedras Símbolos de Culturas Humanas plurais africanas esotéricas indianas tribais indígenas ocidentais/orientais? Não Sei… Sei. Sabemos? nos líamos no movimento Significados que amamos misturados na terra híbridos mudavam e mudavam no Giro de Si. Não cansava de olhar! a arte você, eu, elas se confundiam. um mesmo caleidoscópio não podia ser tocado. Já era toque! Amálgama? Partilha. Um holograma único: nos atravessava éramos substância vocês e a arte em mim nada falávamos não tinha som só o riso silencioso um gozo estranho etéreo elevado algo que paira… ficamos-estamos no sonho do real prolongado pluriverso. flutua diagonal vertical horizontal gira perpendicular em várias direções num mesmo eixo lado alado. claro escuro colorido cheio de sentidos conforme a mirada o riso de bocas desejantes Muda-Permanece de acordo com as partes tocadas olhos-nos-olhos de costas escapamos – medo feliz – voltamos surpresa inquieta. transformamos ali. O tempo todo mudança e sintonia fina! Mudávamos-e-Permanecíamos Fixadas Umas nas Outras. Somos felizes e só? Nossa vida essa Arte Virtual: Criamos recriamos presenciais aparições nossas digitais. No Sorriso-Belo-Perpétuo Nos Olhos-que-Captam. Corporaturas.
Andrea Paula Santos
fôlego
rumina a voz
a voz
a voz
a voz
sem palavras
lavras
lavra
palavras
larvas
células epidérmicas
encarnam-se
rememoram-se
múltiplas partículas de vozes
desprendem-se em fios
líquidos de nós
Márcia Plana
sagrado mistério
eu corpo nu
despida de mim
inundação e escoamento
vozes me perseguem
visto o avesso dos olhos
o eu e o outro
descarnam-se
ser
silêncio e poesia
Márcia Plana
artista em construção
menina, ainda
sussurra
conta
camada por camada
seu corpo jovem
vibra e constrói
corpo-experiências
os recortes ao vento
colam-se
juntam-se
transformam-se
elaboram
outros corpos
sem idade
palimpsesto para o
além de seu tempo
um corpo que não existiu
além da arte
além da poesia
Dalila Teles Veras
ALÉM DA SUPERFÍCIE
a Vitória Fogaça
o corpo robusto
(ainda)
cabeleira branca
presa à cintura
pelos punhos
a manga da camisa
esvoaça de leve ao vento
e guarda o toco de braço
os passos claudicam
na faixa de pedestres
artroses repisam:
a pressa dos tempos
de fábrica
as corridas
atrás da bola
(e os chutes)
as danças frenéticas
(também as lentas)
o esconde-esconde
no parque
(também na casa da avó)
os primeiros passos
incertos
(e os tombos)
haverá uma bengala
depois a cadeira de rodas
talvez
Deise Assumpção
Quando ela deitou
Quando ela deitou, ela sonhou que tinha morrido.
Ouviu o craquelar do seu ser parando, secando.
Assim como exoesqueletos sobrepostos, as camadas de vida se destacaram, cada uma delas querendo ultrapassar a outra arrancava pedaços de momentos das outras e procuravam subir à tona.
Todas as suas vidas estavam lá.
Ou pelo menos as que ela supunha ter.
Pedaços arrancados boiavam num lago etéreo.
Eram pedaços de sua vida boa misturados a fumacentos trapos de dolorosos fatos jogados no fundo do olvidar, bem lá no fundo do esquecimento.
Fediam.
Os cheiros se misturavam...
Quisera ela tirar os grossos chumaços de algodão que lhe foram enfiados pelas narinas até a porta do seu cérebro.
Quisera respirar.
Ouviu o choro de um recém-nascido.
Passou.
Quis ouvir novamente.
Percebeu que não adiantava mais querer alguma coisa.
O seu querer não era mais seu.
As vontades foram desmaiando até o... quase... nada...
- REAJA !
- REAJA !
Abriu os olhos.
Um breu .
Um som da terra tamborilando por cima do caixão.
Mireille Lerner