terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

As tarefas da poesia no Sábados PerVersos




Cumprindo a promessa e após agregarmos uma proposta complementar de Ciça Lessa, ou seja, de que a tela que dá nome à exposição “Além de superfície”, da Vitória Fogaça, fosse ponto de partida para os textos daquelas e daqueles que não estiveram presentes na visita à exposição no sábado anterior, motivo do meu último post aqui.

O encontro Sábados PerVersos do último sábado, 04.02.23, com a presença de Márcia Plana, Isabela Veras, Rosana Chrispim, Luzia Maninha e Dalila Teles Veras, Deise Assumpção, Paulo Dantas, Mireille Leirner, Andrea Paula Santos, Conceição Bastos e Valdecirio Teles Veras e da própria artista, Vitória, o grupo voltou a comentar sobre o mergulho na exposição “Além da Superfície” e cada um dos presentes mostrou o resultado criativo dessa imersão e diálogo entre artes.
Com linguagens, estilos e gêneros diferentes, eis uma pequena mostra do que foi lido e discutido no encontro.

raízes
1.
na pulsação do olho a uApós a imersão, as tarefas da poesia no Sábados PerVersosnha ocre arranha a superfície do quadro um corpo se escamoteia em camadas se desenha em profundidade – paisagem remota de uma floresta ancestral
2.
e tudo o que você tem é um corpo
para dizer sim ou não
ou talvez
um corpo que chove
em todas as estações
e também antes e depois da chuva
3.
os terremotos e incêndios são linhas invisíveis e percorrem as raízes
que pulsam e repousam
em diferentes planos
da paisagem remota
de uma floresta ancestral
                                                  Conceição Bastos


Vitória, quase catatônica em frente ao espelho olha para dentro de si e tenta lembrar de sua infância.

Jogos, fitas cassetes, o balanço no quintal, o velho baralho, a cortina da sala que refletia sombras hipnóticas e ao mesmo tempo amedrontadoras. Lembranças soltas como peças jogadas fora do tabuleiro.

Mergulha mais fundo pensando na sua mocidade e se vê em pedaços, nunca completos, resultado da automutilação que tenta ocupar o vazio.

Passa a mão em seus cabelos e já não encontra as tranças que costumavam dançar sobre seus ombros despertando os olhares de terceiros.

Então sacode a cabeça fechando os olhos e saindo do transe se percebe ali, nua e despida de qualquer maquiagem. Gosta daquilo que vê.

Sua aura transcende quando ela toca seu corpo e finalmente se vê completa em todas as camadas. Após anos ruminando as palavras que teimavam em ficar engasgadas, finalmente deixa escoar todo o gozo represado. O que estava ali enterrado germinou e ainda reverbera para muito além da superfície.

                                                  Isabela Veras


Além da superfície

importa
menos o perfil delineado
que as camadas de repouso
sedimentos
acúmulos
leitos depositários
da mais leve poeira
do maior escombro
cementados
postos em tela
sugerem

mais vale a fermentação
o reflexo
o eco
deflagrados a correr
na cozinha
no escritório
na sala de estar

conta
em suma o processo
o trajeto
a somatória do
comum com o original

                        Rosana Chrispim


Corporaturas

Hoje-como-sempre extensão do real eclode na vida acordada de tantas poesias ambulantes sonhos em forma de gente. nunca passarão. Perpétuas. mostravam algo. Vocês e a obra de arte! tinham (se) feito: Perfeitas. nossa própria criação. Éramos formas tridimensionais. Curvas coloridas… Contínhamos mensagens, Imagens, Enigmas. Girávamos. Suspensas no ar. Para lados diferentes… Uma ao lado da Outra. assimetricamente sobrepostas. Como pessoas. Nós Mesmas. No Giro Autônomo nos víamos: Formas Desenhos. Cravadas nas Pedras Símbolos de Culturas Humanas plurais africanas esotéricas indianas tribais indígenas ocidentais/orientais? Não Sei… Sei. Sabemos? nos líamos no movimento Significados que amamos misturados na terra híbridos mudavam e mudavam no Giro de Si. Não cansava de olhar! a arte você, eu, elas se confundiam. um mesmo caleidoscópio não podia ser tocado. Já era toque! Amálgama? Partilha. Um holograma único: nos atravessava éramos substância vocês e a arte em mim nada falávamos não tinha som só o riso silencioso um gozo estranho etéreo elevado algo que paira… ficamos-estamos no sonho do real prolongado pluriverso. flutua diagonal vertical horizontal gira perpendicular em várias direções num mesmo eixo lado alado. claro escuro colorido cheio de sentidos conforme a mirada o riso de bocas desejantes Muda-Permanece de acordo com as partes tocadas olhos-nos-olhos de costas escapamos – medo feliz – voltamos surpresa inquieta. transformamos ali. O tempo todo mudança e sintonia fina! Mudávamos-e-Permanecíamos Fixadas Umas nas Outras. Somos felizes e só? Nossa vida essa Arte Virtual: Criamos recriamos presenciais aparições nossas digitais. No Sorriso-Belo-Perpétuo Nos Olhos-que-Captam. Corporaturas.

                                                     Andrea Paula Santos



fôlego

rumina a voz
a voz
a voz
a voz

sem palavras
lavras
lavra
palavras
larvas

células epidérmicas
encarnam-se
rememoram-se

múltiplas partículas de vozes
desprendem-se em fios
líquidos de nós

                     Márcia Plana

sagrado mistério

eu corpo nu
despida de mim

inundação e escoamento

vozes me perseguem
visto o avesso dos olhos

o eu e o outro
descarnam-se
ser
silêncio e poesia

                     Márcia Plana

artista em construção

menina, ainda
sussurra
conta
camada por camada
seu corpo jovem
vibra e constrói
corpo-experiências

os recortes ao vento
colam-se
juntam-se
transformam-se
elaboram
outros corpos
sem idade

palimpsesto para o
além de seu tempo

um corpo que não existiu
além da arte
além da poesia

                           Dalila Teles Veras


ALÉM DA SUPERFÍCIE

 

a Vitória Fogaça

 

o corpo robusto

(ainda)

cabeleira branca

 

presa à cintura

pelos punhos

a manga da camisa

esvoaça de leve ao vento

e guarda o toco de braço

 

os passos claudicam

na faixa de pedestres

 

artroses repisam:

 

a pressa dos tempos

de fábrica

 

as corridas

atrás da bola

(e os chutes)

 

as danças frenéticas

(também as lentas)

 

o esconde-esconde

no parque

(também na casa da avó)

 

os primeiros passos

incertos

(e os tombos)

 

haverá uma bengala

depois a cadeira de rodas

talvez


                Deise Assumpção

 


Quando ela deitou

Quando ela deitou, ela sonhou que tinha morrido.
Ouviu o craquelar do seu ser parando, secando.
Assim como exoesqueletos sobrepostos, as camadas de vida se destacaram, cada uma delas querendo ultrapassar a outra arrancava pedaços de momentos das outras e procuravam subir à tona.
Todas as suas vidas estavam lá.
Ou pelo menos as que ela supunha ter.
Pedaços arrancados boiavam num lago etéreo.
Eram pedaços de sua vida boa misturados a fumacentos trapos de dolorosos fatos jogados no fundo do olvidar, bem lá no fundo do esquecimento.
Fediam.
Os cheiros se misturavam...
Quisera ela tirar os grossos chumaços de algodão que lhe foram enfiados pelas narinas até a porta do seu cérebro.
Quisera respirar.

Ouviu o choro de um recém-nascido.
Passou.

Quis ouvir novamente.
Percebeu que não adiantava mais querer alguma coisa.
O seu querer não era mais seu.
As vontades foram desmaiando até o... quase... nada...
- REAJA !
- REAJA !
Abriu os olhos.

Um breu .

Um som da terra tamborilando por cima do caixão.

                                                Mireille Lerner

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Cuiabá x Sábados PerVersos – Imersão poética

"Rua sem saída”, anuncia a placa no início da rua, na cidade de Santo André. Só que não é bem assim.

Adentrando a porta da última casa da rua Cuiabá, a de número 153, local onde a arte habita, penetra-se também no mistério e no encantamento. Se o visitante (que só poderá visitar o ateliê-casa mediante agendamento prévio), mostrar-se delicado, interessado e interessante, a proprietária do local, acabará por lhe mostrar a passagem secreta para o quintal/garagem e, finalmente, a saída para outra rua. Uma placa, portanto, nunca diz tudo. 

A Cuiabá 153 é um portal para um mundo a descobrir. Tudo ali respira criação e um certo ar de mistério.

Para os que acompanham a história do local e a rebeldia que ali ocorre há cerca de uma década, essa sensação já está introjetada. Chegam como quem é “da casa”, a rua (con)fundida ao Cuiabá 153 – Galeria, Espaço Cultural, Casa ateliê da artista visual Sueli de Moraes, ou simplesmente, Suca, como é conhecida e reconhecida.

Tudo ali começou com reuniões “descompromissadas” entre pares, depois, em 2014, veio a ideia da parceria com  um projeto realizado na França, Les Fenètres qui parlent”, onde reside uma de suas filhas. Assim, em diálogo com as janelas francesas, nasceu “Portões que Falam”, uma extraordinária instalação de arte pública, promovida em anos diferentes, por quatro edições, a pandemia atrapalhando no meio delas.  

A cada dois anos, Suca e os participantes da ação de arte pública, vão de casa em casa, não só da rua Cuiabá, mas em várias outras ao redor. Na última edição foram sete ruas. Conversam com os vizinhos, tentando convencê-los a ceder seus respectivos portões para a realização da intervenção. Foi difícil, mas ela e aqueles que toparam ser seus pares, conseguiram, tanto que na última mostra, 2022, participaram mais de oitenta artistas envolvendo o mesmo número de residências que cederam espaço para as intervenções.

Pois bem, feita essa longa introdução, necessária, no meu modesto modo de ver, para falarmos do que aconteceu ali no último sábado, 28 de janeiro.

O coletivo Sábados PerVersos, ligado à livraria e espaço cultural Alpharrabio, há oito  anos ininterruptos unido por suas reuniões mensais no espaço físico da livraria e outros locais, inclusive, virtuais, como nos dois primeiros anos da pandemia,  recebeu um sedutor convite de Suca que foi alegremente aceito.










A ideia era visitar a exposição “Além da superfície”, a primeira individual da jovem artista Vitória Fogaça, instalada e aberta à visitação de 02.12.22 a 04.02.23. Mas não seria uma visita qualquer. A sugestão foi de uma imersão poético-visual na mostra, ou seja, um diálogo entre as obras expostas e as possíveis leituras das visitantes, Vanessa Molnar, Rosana Chrispim, Ciça Lessa, Márcia Plana, Nathaly Felipe Alves, Isabela Agrela T. Veras, Luzia Maninha Teles Veras e a autora deste texto, além, naturalmente, das anfitriãs, Suca e Vitória. Dez mulheres, muitas histórias a se cruzarem. Muitos questionamentos e reflexões.

Após uma monitoria da curadora Suca, logo à chegada e da apreciação individual das obras expostas, seguiu-se uma imersão gastronômica em sabores e cheiros, a título de intervalo para almoço. 





A própria Suca, que entre as muitas habilidades, além de sua formação em arte, também é graduada em gastronomia e hábil na alquimia de sabores, foi para a cozinha que, diga-se, faz pare do ambiente. Preparou “nhoque” ou inhoque ou gnocco, em italiano, acompanhado de um espesso e perfumado molho de tomate e ervas secretas, mais uma saladinha e água aromatizada com folhas de manjericão, vinda dos canteiros laterais da casa.  Aproveitamos a ocasião festiva e abrimos umas garrafas de vinho, também para celebrar o aniversário de uma das visitantes presentes, Márcia Plana, que generosamente preparou um bolo de sabores igualmente misteriosos, para servir na sobremesa.


Plenas de ver, saborear e ouvir, fizemos uma roda de conversa com a Vitória, autora das 12 obras da mostra, em técnicas e materiais diversos.

Vitória nos disse que, a princípio, o trabalho nasceu numa pesquisa que vinha realizando sobre o corpo, presença e ausências; fases da infância, entre outras. Durante a primeira fase, uma série de inusitados desenhos em papel, que tiveram partes recortadas, no sistema calcogravura. Os pedaços recortados, foram colados a outros desenhos dando-lhes outros sentidos, numa segunda obra. 
















A artista também falou do uso do grafismo em meio aos desenhos, como “uma forma de complementar o que a imagem não sustenta”.  Durante o período de um ano, as ideias foram anotadas em cadernos, efetuadas, refeitas. Um longo processo que incluía conversas e trocas com a curadora Suca. 

Por fim, a aniversariante Márcia decidiu tirar uma selfie com cada uma das amigas presentes, ou quase.










A poeta tenta capturar o momento pós-imersão


A tarde caía sobre os paralelepípedos da Cuiabá, quando cada uma das presentes rumou para seus respectivos destinos, com a promessa de transformar essa experiência em arte ou qualquer outra coisa, um poema, uma crônica, um artigo, neste meu caso, dando por cumprida a imersão e vindo à tona com a promessa cumprida.

Dalila Teles Veras, início de fevereiro de 2023