sexta-feira, 12 de junho de 2015

São... São... Paulo(s) - cidades dentro da cidade - II

Parte II - a segunda cidade, a da vieille cuisine

Seguindo o roteiro, vamos à busca da "segunda cidade", a da velha e honesta gastronomia paulistana, ou seja, restaurantes sem firulas, sem "música ambiente", sem "música ao vivo", mas com uma cozinha honesta, desgourmetizada, garçons que gostam do que fazem. Locais onde se vai não só para saciar a fome imediata, mas também com o sentido do rito.
Não é muito fácil encontrar essas velhas casas. As poucas que existem, resistem bravamente, graças a clientes fiéis.



Um bacalhau grelhado, acompanhado de brócolis, batatas, cebola, ovo, cozidos no vapor, regado com muito azeite. Itamarati (1949), no Largo de São Francisco, bem em frente à velha Academia de Direito.



Pastas de berinjela e homus, coalhada e pão sírio de entrada. Kafta grelhado com  cuscuz marroquino de prato principal. Almanara (1950) na Rua Basílio da Gama (uma ruazinha quase clandestina, que sai da Pça. da República e acaba em lugar nenhum.)



Um filé no Girondino (2005, mas inspirado no Café do mesmo nome, instalado em 1875 na rua 15 de Novembro e que existiu até os anos 20). Rua Boa Vista, esquina com Largo de São Bento. Lamentavelmente, ao menos para mim, não vale mais a pena. Virou "modinha" e a boa cozinha desapareceu. Os preços altos a substituíram. Vale o ambiente, a vista para o Mosteiro e o (ainda) muito bom café.


Um café no Café Floresta (1977), no edifício Copan (Niemeyer). O café é excelente (esta é uma loja do produtor) e o "clima" dos velhos Cafés é convidativo. Apesar de não gostar de tomar um café em pé, este é um dos poucos locais que topo fazer isso, pelos motivos expostos.

Nesta cidade múltipla, há cardápios para todos os gostos, preços para todos os bolsos, ambientes para todos as exigências.

Anotações do diário de bordo:

em silêncio
auscultar as narrativas que a cidade oferece
(o imaginário coletivo e seus sentidos)



a memória pessoal
(autobiografia)
em construção
permanente

saguão Biblioteca Mário de Andrade - sem identificação de autoria


O que a cidade "escreveu" e esqueceu
é também a minha escrita
minha singularidade
na multiplicidade
(intercambiáveis)


quarta-feira, 10 de junho de 2015

São... São... Paulo(s) - cidades dentro da cidade

Parte I - a primeira cidade

Quadro dias hospedados em um hotel, um feriado espremido ao meio, em pleno centro (o velho) de São Paulo, exatamente a 22 km de casa. Uma viagem, garanto (na própria terra).

Proposta: flanando, mapear algumas dessas "cidades"  dentro da megalópole.

A primeira atração da viagem: o próprio hotel. Ícone da arquitetura modernista, com uma história (histórias) fantástica que se confunde com a cidade em toda a segunda metade do Século XX.



Projetado pelo arquiteto alemão Franz Heep sobre um projeto já existente desde 1946, da família Mesquita, para abrigar o jornal O Estado de São Paulo, a rádio Eldorado e o hotel Jaraguá no então chamado Centro Novo. O ousado edifício foi concluído em 1954 em plenas festividades do IV Centenário da cidade, recebendo em suas instalações os participantes da primeira edição do Festival Internacional de Cinema ocorrido naquele ano.  A partir daí, tornou-se uma referência internacional. Personalidades ligadas ao mundo das artes, do cinema, chefes de estado, empresários, heróis, reis e rainhas, passaram por ali. A instalação de hotéis concorrentes nos arredores e, posteriormente, a ida das grandes redes hoteleiras para o "novo centro", ou seja, Av. Paulista e entorno, contribuíram para que o hotel entrasse em decadência e consequente fechamento em 1998. Bem antes, o próprio jornal O Estado de São Paulo já havia saído de lá.
Já com novos proprietários, o edifício sofre uma reforma interna radical. A parte externa e os murais artísticos (Di Cavalcanti e Clóvis Graciano) ficaram inalterados, pois são tombados como Patrimônio Histórico Estadual.




Uma pena que, para sobreviver, o hotel desta história toda, tenha se submetido aos desígnios dos novos tempos, ou seja, voltado para o turismo de "negócios" deixando poucos vestígios do glamour dos turistas que viajam pelo prazer da viagem. Uma pena que hoje, esse turistas (brasileiros e estrangeiros) também não sejam informados do quanto aquele então "Centro Novo" e hoje chamado de "Centro Velho" pode ainda oferecer em termos de atrativos.
(Mais detalhes arquitetônicos desse edifício, bem como de suas circunstâncias histórias podem ser obtidos, AQUI . Trata-se de um trabalho apresentado pela arquiteta urbanista Carmem Alvarez, em 2007, no Seminário "O Moderno já Passado / O Passado no Moderno", em Porto Alegre.  Vale a pena conhecer.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas, ainda assim, com uma boa dose de imaginação e sentido da história, o viajante da atualidade poderá entrar no clima do vivido alheio e usufruir do clima do momento do qual sempre se pode extrair encantamento, uma vez que é composto de gente e gente, como queria o poeta, é para brilhar.

Durante os dias que lá estivemos, assistimos, como ocorre em hotéis de grande circulação no mundo inteiro, tanto ao café da manhã quanto simplesmente sentados no hall de entrada a fingir que se lê o jornal do dia, mas atentos ao espetáculo de culturas, através dos viajantes que ali ficam hospedados em Congressos e Seminários internacionais, do qual tiramos muitas destas informações.

Dois grandes grupos (um indiano e outro senegalês) chamavam atenção pela beleza física e trajes de suas mulheres. No lugar da Rainha Elizabeth que por lá passou nos anos 50, uma incógnita (ao menos para mim) rainha africana que, ao lado do seu belo par e do alto de seus 1,80m, circulava com uma colorida e segura leveza que deixava tudo ao redor em suspenso. Os brilhos dos panos das indianas, com seu andar manso mas decidido também iluminavam os espaços comuns. O espetáculo de cores e sorrisos era todo comandado por elas, na sua grande maioria, ladeadas de homens opacos, amarrados com crachás de identificação ao peito,  semblantes sombrios.
A recusa ao crachá - essência da revolução feminista, não tenho dúvidas.

excertos do diário de bordo:



quem, antes entrou?


quem antes se viu?
quem antes se deitou?

quem, à janela deste 23º andar
                mirou tantas outras janelas?
que cenas anotou?




Sair e ver de perto o que de cima é irreal

(anotar as sombras)