Ao caminhar numa área arborizada do condomínio onde resido, notei que, após os ventos de ontem, a grama ficou salpicada de azuis. Essa imagem e o aroma que ali reinava, abriram mais uma das frestas na minha já tão gasta memória. Sentei-me num dos bancos embaixo do altíssimo jacarandá, fechei os olhos, e vi-me a caminhar pelas ruas do Funchal, minha cidade natal. A memória olfativa aliada aos azuis destravou o trinco e abriu-se a janela armadilha para capturar rizomas.
Em 1999, quando escrevia uma coluna semanal para um jornal de minha região (O Diário do Grande ABC), publiquei a crônica que transcrevo a seguir e que, mais tarde, integrou meu livro “A Vida Crônica”. Desculpem, mas é que fiquei nostálgica, sentimento bem mais português do que a saudade.
JANELAS DA MEMÓRIA
Folheio, com a
devida reverência, um alfarrábio de 76 anos
(Antologia de poemas, de
Augusto Gil, 1923 – Livraria Bertrand, Lisboa) publicado ainda em vida do então
muito popular escritor português. A simples leitura do título do poema Balada na Neve abre-me uma grande janela
na memória.
“Batem leve,
levemente,
Como quem chama por
mim...
Será chuva? Será
gente?
Gente não é
certamente
E a chuva não bate
assim...”
Inexplicavelmente e
com facilidade, posso dizer de cor estes e os outros versos do poema. Vejo,
ainda, a cena da infância evocada com uma clareza assustadora: fim do ano
letivo. Festa. Presença dos pais e autoridades (diretoria da escola, pároco,
professores) A menina de 8 ou 9 anos, sobe ao palco e recita Augusto Gil
“É talvez a
ventania;
Mas há pouco, há
poucochinho,
Nem uma agulha bulia
Na quieta melancolia
Dos pinheiros do
caminho...
Quem bate assim
levemente,
Com tão estranha
leveza
Que mal se ouve, mal
se sente?...
Não é chuva, nem é
gente,
Nem é vento, com
certeza.
Fui ver a neve caia,
Do azul cinzento do
céu,
Branca e leve,
branca e fria...
-Há quanto tempo a
não via!
E que saudade, Deus
meu!
Olho-a através da
vidraça
Pôs tudo da cor do
linho.
Passa gente e,
quando passa,
Os passos imprime e
traça
Na brancura do
caminho...
Fico olhando esses
sinais
Da pobre gente que
avança,
E noto, por entre os
mais,
Os traços
miniaturais
Duns pezitos de
criança...
E descalcinhos,
doridos”...
Chorando
copiosamente, a menina não consegue terminar o poema. O pároco acode, sobe ao
palco, dizendo-se emocionado com a emoção da menina que continua a chorar...
Vingada, a memória
apagou de vez o poema. Nem título, nem autor, nem um só verso puderam ser
lembrados nos posteriores 40 e poucos anos. Agora, como se um disquete fosse
inserido na memória, o poema ressurge, verso, após verso, mas... (e aqui entra
o fator que só ao humano pertence) só até o exato trecho que provocou aquela
emoção menina diante do infortúnio infantil.
Busco no livro a
parte final que a memória novamente recusa
“E descalcinhos,
doridos...
A neve deixa inda
vê-los,
Primeiro bem
definidos ,
-Depois em sulcos
compridos,
Porque não podia
ergue-los
Que quem já é
pecador
Sofra tormentos...
enfim!...
Mas as crianças,
Senhor,
Porque lhes dais
tanta dor?!...
Porque padecem
assim?!...
E uma infinita
tristeza,
Uma funda turbação
Entra em mim, fica
em mim presa,
ai neve na
natureza...
E cai no meu
coração.”
Apagaram-se alguns
versos na memória, mas a menina ficou irremediavelmente fatalizada para a
poesia.