sexta-feira, 29 de abril de 2016

À espera dos bárbaros

Antes que este 29 de abril se finde, quero evocar aqui esta data em que nasceu e morreu o poeta grego Konstantínos Kaváfis (29 de abril de 1863 – 29 de abril de 1933, Alexandria, Egito).


Nos poucos bocados roubados ao dia de hoje, reli os poemas do volume Poemas (Seleção, estudo crítico, notas e tradução direta do grego por José Paulo Paes), Editora Nova Fronteira, 2ª. edição, 1982.
No valioso estudo introdutório, Paes traça um paralelo entre Kaváfis e Pessoa. O primeiro ponto de contato a ser lembrado é o fato de ambos terem vivido mais ou menos contemporaneamente em colônias inglesas da África: um no seu extremo norte, em Alexandria, Egito; o outro no seu extremo meridional, em Durban, África do Sul e acrescenta: “é particularmente significativo que tanto a poesia de Kaváfis como a de Pessoa só viessem a ser conhecidas do grande público após a morte de seus autores” (...) Mas nem por haverem levado uma obscura existência de burocratas, falta de lances de maior brilho ou dramaticidade, e nem por ter a sua obra ficado praticamente desconhecida enquanto viveram, deixaram Kaváfis e Pessoa de ser afinal reconhecidos como os grandes poetas que são. Tão grandes que não os pôde prender o círculo de giz das literaturas a que pertencem; eles o ultrapassaram para se impor no contexto mais rico e mais amplo da Weltliteratur (como Goethe a imaginou)
Muito me impressiona o frescor deste poema que tão bem me “serve” para hoje. Apreciem

Á ESPERA DOS BÁRBAROS
O que esperamos na ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?

Ah! eles eram uma solução.
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domingo, 10 de abril de 2016

sufragistas pós-sufrágio

É mesmo de impressionar que em pleno Século XXI homens (e o que é espantoso, mulheres) ainda exerçam o asqueroso discurso machista, sexista e misógino, vigente no século XIX.

Assisti, com bastante atraso, ao filme As Sufragistas (2015, dirigido pela inglesa Saraha Gavron) e não há como não remeter o desprezível tratamento (doméstico e social) dado às mulheres e às humilhantes condições de trabalho a que eram submetidas na Inglaterra no ano 1912, ao Brasil de hoje. 


Numa cena do filme, uma mulher que vai a uma manifestação a favor do voto feminino é achincalhada por seus (e suas) colegas de trabalho (quase escravo, diga-se)  e recebe o tratamento de “vaca” e “vagabunda”. Após mais de um século de intermináveis lutas para que a mulher seja respeitada e valorizada, com espanto, pesar e vergonha, vejo/ouço diariamente uma mulher, que ocupa o mais alto posto de uma nação, ela própria uma legítima representante dessa luta, ser enxovalhada diariamente com uma fúria que só pode ser atribuída ao simples fato de ser mulher e, crime dos crimes, não se curvar.

A “guerra” iniciada pelas sufragistas de há 100 anos ficou incompleta e, em pleno Século XXI, quem diria, a desobediência civil das sufragistas faz-se, mais do que nunca, necessária. Muitas pedras nas vitrinas, muitas explosões nas comunicações até que alguma luz se faça, pós-sufrágio.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Para Semíramis Corrêa, em forma de despedida

Ontem, abril 07, quarta-feira, Outono com luz e temperatura de Verão: a notícia da morte anunciada cortou a tarde ao meio, raio indejado. Semiramis, a amiga Semiramis Corrêa morreu.

No mesmo momento, o retorno há 23 anos, maio de 1993. Santo André vivenciava uma cultura do desmanche. Após uma gestão progressista na cultura, Governo Celso Daniel, o recém-empossado Prefeito Newton Brandão, simplesmente “desmancha” tudo que fora construído na gestão anterior (Casa da Palavra, Casa do Olhar e outros importantes espaços da cidade). Um Grupo de cerca de 100 pessoas, produtores culturais, artistas, intelectuais, resolvem se manifestar com atividades de rua que culminaram com a realização do Seminário Cidadania & Cultura.  Convidados como José Mindlin, Teixeira Coelho, ......, aceitaram o convite para e o Seminário transformou-se num verdadeiro acontecimento cultural. A cidade de Santo André mostrava que não mais aceitava a velha política do clientelismo que Celso Daniel havia derrubado e que insistia em se reinstalar na cidade, retomando velhas e mofadas práticas de compadrio.

Numa dessas manifestações, um sarau no calçadão da Rua Oliveira Lima comandado pelo poeta Artur Gomes,  chamou minha atenção (e de outras pessoas) a presença entusiasmada de  uma senhora de cabelos tingidos de vermelho que entra na ciranda, recitando poemas e proferindo palavras de ordem. Não tive dúvidas, entreguei a ela um cartão da Livraria Alpharrabio, dizendo que ali era um lugar em que ela se sentiria em casa.

Logo no sábado seguinte, Semiramis Corrêa comparece à livraria e a todos cativa com sua contagiante simpatia.




Falante, bem disposta, alegre. Cinéfila e leitora voraz desejosa de compartilhar suas leituras. Já havia lido e relido por incontáveis vezes os 7 volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, assim como  todos os franceses do XIX. Fora casada com um português e era evidente o seu fascínio pela cultura portuguesa, acentuado após ter percorrido Portugal com toda a família durante um longo período. Leu Eça de Queiroz, Torga, Saramago, Pessoa e tantos. Quando me falou que era apaixonada por Fado e Amália Rodrigues, em especial, estabeleceu-se o elo de amizade que percorreu os últimos 23 anos. Convívio estreito que nos revelou um ser humano ímpar, de bem com a vida e com os seres humanos ao seu redor. Celebrava a vida diariamente com um bom humor raro, sacadas inteligentes.

Trouxe uma “alpha” de primeira hora, que “vestia” a camisa do Alpharrabio e ali “batia ponto” todas as sextas-feiras e sábados. A certa altura nos revelou que possuía uma pequena gaveta de guardados, poeta e cronista bissexta. Trouxe alguns originais e Luzia Maninha os enfeixou num volumezinho da coleção micro, denominado “o uivo da loba”, do qual transcrevo os 3 poemas abaixo.  


Fragmento de felicidade

Tarde.
Silêncio quebrado
Por um fado de Amália
Café quente
Sabor de gergelim.

Naquele tempo um trem atravessava o escuro da madrugada. Sempre dentro do horário, seu apito longo era tão fatal como o dia que viria. A pequena cidade dormia mansa enquanto ele passava, apitando, apitando. Entre os muros brancos do cemitério os mortos se ajeitavam felizes.


Eu tinha uma capa de chuva ampla como uma barraca. Ela era azul-claro nos ombros, descia escurecendo até tornar-se plúmbea. Caía solta em torno de meu jovem corpo magro, parecendo sempre que eu me molhava naquelas águas rápidas que o verão forjava.





Uma pena não ter se dedicado com mais afinco à poesia. Preferiu viver e celebrar.

Ao voltar de seu sepultamento, hoje pela manhã, pensei que a melhor maneira de homenageá-la seria tomar uma cerveja, bebida que ela tanto gostava ou, melhor, um Porto de honra, porque eu prefiro e ela igualmente o apreciava. É o que farei agora à noite, quando o corpo estará um pouco menos doído pelo choque da despedida. Bem haja! querida e inesquecível Semiramis. R.I.P. (dalila teles veras)