Atenção: isto não é um roteiro turístico. É só para reforçar
algo que sempre constato em minhas viagens pelo Brasil, mas que muita gente ainda não se deu conta: São Paulo não é o Brasil (apesar
do amor que devoto a este estado onde vivo desde os 11 anos) e não é a
"força da grana que ergue e destrói coisas belas" que caracteriza
este país, mas o seu povo e a incrível diversidade de sua cultura.
Esta não é a primeira vez que visito a Bahia, mas como há
sempre o que descobrir nas inúmeras Bahias existentes na Bahia, desta feita, estabeleci
meu QG na cidade de Cachoeira (110km de Salvador), no chamado Recôncavo baiano.
E se conto é porque sempre volto inconformada por constatar que o Brasil é um
país magnífico, vocacionado para o turismo, com atrações históricas, culturais
e paisagens deslumbrantes, mas que ainda é subestimado pelos próprios brasileiros
e descuidado por quem dele deveria cuidar.
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Cachoeira Vista da Casa Ateliê Hansen Bahia, em São Félix, cidades nas margens opostas do Paraguaçu e ligadas pela Ponte Imperial D. Pedro II |
Antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da
Cachoeira, chamada de a Heróica,
título que lhe foi concedido por D. Pedro I, em abril de 1826, como reconhecimento
à campanha pela emancipação do país, a cidade Cachoeira foi um importante
entreposto comercial. Próspera e rica vila do Recôncavo, considerada a maior
cidade baiana depois da capital e um dos mais importantes centros urbanos
brasileiros do Século XIX. Sua "descoberta" oficial data do ano de
1526 e era o ponto de acesso ideal para penetração do interior. Ali, na altura
da bacia de Iguape ("lagomar") encerra-se a parte navegável do rio.
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Um rio que tem marés e ondas - Bacia do São Francisco - Rio Paraguaçu |
Tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Nacional
(IPHAN), a cidade reúne um impressionante e inestimável conjunto arquitetônico
do estilo barroco na Bahia.
A Identificação foi imediata: vistas a partir do rio
Paraguaçu, as cidades de Cachoeira e São Félix (desta falarei depois), ligadas
pela "Imperial Ponte D. Pedro II, (1865) sobre o Rio Paraguaçu,
muito se assemelham à geografia de minha cidade natal, Funchal e, muito em
especial, quando iluminadas, à noite. Tanto aqui como lá, à margem do rio
estas, à margem do oceano aquela, suas imagens são de um verdadeiro presépio.
Dali, onde nos
hospedamos numa pousada instalada num autêntico Convento do Século XVIII, parte
do admirável conjunto do Carmo![]() |
Pátio Interno da Pousa do Carmo (antigo Convento) visto do primeiro andar (todas as janelas dão para o interior) |
passamos à "exploração" local. Além da navegação pelo Rio Paraguaçu (que nasce na Chapada Diamantina e deságua em Salvador, após percorrer 600km)
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Ponte Imperial D. Pedro II que liga Cachoeira a São Félix, vista do barco |
cidades circunvizinhas, como São Félix, Muritiba, Santo Amaro da Purificação, Maragogipe, Iguape.
Um Brasil profundo, negro, mestiço, europeu, africano, sincretismo cultural único, carregado de histórias e com visíveis marcas da História, ainda que, em muitos casos, o descaso crônico com o nosso Patrimônio Histórico seja tão dolorosamente constatado e lamentado. Aqui e ali, mobilizações populares provocam "milagres" e meritórios restauros.
Sem nenhuma intenção de traçarmos aqui nenhum roteiro de
viagem, destaco alguns dos inúmeros e surpreendentes monumentos históricos
daquela região tão pouco divulgados, mas que merecem e precisam ser melhor conhecidos
e fruídos. Além do casario, muitas edificações em excelente estado, outros
tantas em completa degradação, topamos, de surpresa em surpresa, com estes:
Igreja de N. Sra. de
Belém e o padre voador
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Frontispício da Torre da Igreja de Belém, onde se inscreve a data de sua fundação: 1686 |
- Contando com a luxuosa visita guiada do pároco de Cachoeira, Pe. Helio Vilas Boas, visitamos a Igreja de Nossa Senhora de Belém, edificada em 1686 dentro de uma aldeia indígena (o frontispício atual é do Séc. XIX, e o interior da igreja passa por um grande processo de restauro). Aprendi que essa Igreja fez parte de um antigo Seminário (que já não existe) onde estudaram Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro, e o famoso Pe. Bartolomeu Lourenço de Gusmão, conhecido como padre voador, criador da mítica "passarola" e, para quem se lembra, personagem do romance Memorial do Convento, de José Saramago.
Pois bem, o Pe. Bartolomeu, começou ali sua carreira de inventor, criando uma
maquineta que elevava a água de um brejo 100 metros abaixo da edificação que
veio facilitar a vida dos que ali viviam. A Igreja de Nossa Senhora de Belém,
hoje é um Santuário de Peregrinação. Arrepiante pisar o solo dessas histórias.
Conjunto do Carmo -
Igreja N. Sra. do Carmo
O chamado conjunto arquitetônico do Carmo é composto pela
Igreja da Ordem Terceira do Carmo, pelo
Convento (hoje transformado em Pousada) e pela Casa de Oração Ordem Terceira do
Carmo (transformada em Centro de Convenções). De um valor histórico
incalculável, a Construção, de estilos e épocas diversas (1696-1747) é
realmente admirável. A Igreja tem seu interior revestido de ouro e maravilhosos
painéis de azulejos portugueses. Na Sacristia, um impressionante conjunto de imagens
de madeira trazidas de Macau que representam a Paixão de Cristo. As magníficas
figuras, em tamanho natural, possuem traços orientais e cabeça raspada
(disseram-me que é uma "versão" oriental de que os condenados à morte
na cruz, à época de Jesus, tinham suas cabeças raspadas). As imagens são únicas
e impressionam de fato, além dos armários onde estão colocadas, com pinturas
autênticas nas portas e interiores, também de Macau. Muitos outros tesouros,
sabe-se, foram saqueados por quadrilhas que percorrem o Brasil de ponta a ponta
com essa finalidade. Sem a mínima segurança, o que restou de toda essa riqueza
é "zelado", via de regra, voluntariamente e de forma precária, por
cidadãos da comunidade que, organizados em "irmandades", se revezam e esforçam como podem. Vez ou
outra, por pressão desses mesmos abnegados cidadãos, restauros são realizados,
mas sempre são insuficientes pelo fato de que a conservação é precária. Uma
realidade que nos entristece e que precisa com urgência ser revertida.
Igreja Matriz N. Sra.
do Rosário do Porto de Cachoeira
O Oh! de admiração continua ao entrarmos na Igreja Matriz N.
Sra. do Rosário, Prédio do Século XVIII, igualmente de riquíssimo interior com
a surpresa maior: novo e muito maior conjunto de azulejos portugueses, da época
da edificação, muito bem conservados que, dizem, ser o maior conjunto do gênero
existente no Brasil e um dos maiores fora de Portugal. Uma Sacristia com um
belíssimo teto de pintura "ilusionista" do italiano José Theófilo de
Jesus.
Passeio e encontro
com a Regata Aratu-Maragogipe
No passeio pelo Rio Paraguaçu, a surpresa da chegada das
embarcações e dos tradicionais saveiros, da 46ª Regata Aratu-Maragojipe. E
dá-lhe Samba suor e cerveja, dentro das próprias embarcações que reproduzem cenas de blocos carnavalescos (os participantes de cada uma delas com seus uniformes/abadás)
No largo atrás da Igreja, o samba de roda anima a multidão
dia e noite afora. A multidão aumenta a cada momento.

Os baianos não andam, dançam, gingam e demonstram uma
indiscutível sensualidade. Não falam, cantam.
Finalmente, no dia 24, dia do
Santo, os atos religiosos são celebrados, não sem antes, uma boa salva de
fogos.

Como se vê, a Noite de São Bartolomeu nos trópicos nada tem
a ver (e ainda bem) com aquela outra no Século XVI, em Paris, que tingiu o Sena
de sangue, consequência de disputas de poder e desvario de monarcas e altas
patentes. A noite aqui é do povo que celebra sua mestiçagem e fé sincrética.
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Fundação Hansen Bahia - Galeria (Cachoeira) |
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Casa Museu Ateliê onde viveu Hansen Bahia (São Félix) |
O
Museu biográfico Parque Histórico Castro Alves - PHCA, em Cabaceiras, onde
nasceu o poeta Castro Alves
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Fazenda Cabaceiras |
O Convento de Santo Antônio do Paraguaçu, da Ordem religiosa Franciscana, é o primeiro a ser estabelecido no Brasil, impressionante edificação (1658-1686), às margens do Paraguaçu, no povoado de São Francisco do Paraguaçu, pertencente a Cachoeira. Essa maravilha, infeliz e incompreensivelmente, encontra-se, ao menos externamente (não encontramos naquele momento o "guardador" do local e, desconhecemos seu interior) encontra-se quase em ruínas.
A Irmandade da Boa Morte composta só por mulheres negras, em Cachoeira:
e a lindíssima e rica Igreja do Monte com seu adorável casario colonial ao redor, também em Cachoeira:
e a surpreendente descoberta do Instituto Roque Araujo, com seu museu de cinema e audiovisual, em Cachoeira:
e a fábrica de charutos artesanais Danemann, verdadeiras obras de arte, localizada em São Félix:
e a Igreja de Santo Amaro da Purificação, o Solar de Dona Canô e as marcas de seus dois filhos ilustres:
e a inesquecível lembrança da imagem noturna de Cachoeira, com a lua ao fundo, vista do corredor do 1º andar da minha Pousada:
e outros e tantos e tão apaixonantes que talvez volte a falar deles por aqui. (dtv)