domingo, 15 de novembro de 2015

Mísia e Amália, Amália e Mísia – pelas trilhas do sentir



Já faz alguns dias que ouço os CDs deste encantatório álbum. Ouço, ouço e tento compreender as razões do enorme prazer estético que me proporcionam. Ao contrário da esfinge grega que prometia devorar aquele que não a decifrasse, o desafio que Mísia nos propõe é de outra ordem, caminha pelas trilhas dos sentidos e dos seus significados simbólicos ali presentes.  

Sem arcabouço técnico que possa me valer para uma análise musical, este meu comentário, caminha justamente por essas trilhas (do sentir).

Comecemos pelo “sentir” táctil do objeto. A capa, a produção gráfica do primoroso encarte  e verificaremos que nada aqui,  dos meticulosos e pensados detalhes de todo este delicado e, ao mesmo tempo, grandioso trabalho, está posto por acaso. Em cada minúcia, a marca e o bom gosto de Mísia, desde o conceito, a produção e a direção artística.

Desde o piano às tradicionais guitarras. Desde as participações especiais (Maria Bethânia, Martírio e Rogério Samora) à cuidadosa escolha dos fados, desde os inéditos, compostos especialmente para esta homenagem, quanto os que a própria Amália cantou, os mesmos, mas já outros. Sim, pois, assim como Amália, Mísia é artista única. Inimitável, jamais repete nem imita, faz de cada canção que interpreta a “sua” canção, ainda que a intenção, como neste caso, seja a de “homenagear”, como, de fato, homenageia.

Mísia nos diz que, mais do que um tributo, trata-se de “uma prenda” para Amália Rodrigues, que há 16 anos não está fisicamente entre nós, mas cuja “biografia continua a escrever-se” e permanece cada vez mais viva não só no coração dos que a amaram ao redor do mundo, mas no imaginário cultural e identitário do povo português. Uma prenda há anos acalentada e que agora, no seu tempo, é concluída. No seu tempo... Aquele tempo em que a maturidade atinge a dramaticidade e vivências requeridas. Um tempo que só poderia ser este, o de agora, que reafirma esta extraordinária artista como a voz de Portugal hoje.

Prosseguimos por esta senda e verificamos que a marca portuguesa é levada a tamanha altura que, por isso mesmo, atinge a universalidade. Num mundo perversamente globalizado, as culturas locais cada vez mais representam a diferença e a resistência, sem deixarem de pertencer a toda a humanidade, como é o caso do próprio Fado que, muito antes do reconhecimento oficial pela UNESCO, já o era.

Ouço e sinto: o piano (Maestro Fabrizio Romano, responsável também pelos arranjos),  ganha e empresta  sutilezas insuspeitas. Vai das quase imperceptíveis levezas à mais alta carga dramática, cujo exemplo maior está em “Tive um coração, perdi-o”, fado que inicia cantado à capela, já a indicar a intensa dramaticidade que virá a seguir. Mais do que um “acompanhamento”, neste caso específico, o piano é uma extensão da canção, ampliando o que a voz extraordinária de Mísia já diz.

Ponto também para Bethânia e Martírio que não se esforçam para “parecer” portuguesas, mas, sendo o que são (brasileira, espanhola, particulares e grandiosas) emprestam uma dignidade tamanha a esta participação que expande ainda mais os sentidos daquilo que cantam.

Confira aqui o clip do CD, dirigido por Maria de Medeiros, no qual Mísia canta este arrepiante fado:

https://www.youtube.com/watch?v=bZ5G0JFkBbw

Ouço e o que ouço me sugere que neste “Para Amália”, não há concessões (nem comerciais muito menos nas tais facilidades tão ao gosto da indústria cultural que sempre nos quer convencer de que o que é bom “não vende”). Contrariando também esta lógica, este é bom e, pelo que nos chega, está vendendo muito bem.

Para aqueles que, desafortunadamente ainda não sabem, Mísia é uma cantora portuguesa, com uma consolidada carreira internacional, iniciada em 1991. Desde então, já apresentou, além de Portugal, nas mais prestigiadas salas ao redor do mundo. Em seu  sofisticado repertório, constam poemas de grandes nomes da literatura portuguesa, como Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, António Lobo Antunes e muitos outros. Alguns desses poemas foram escritos especialmente para sua voz.

Mísia virá ao Brasil nos próximos dias 19 (SP) e 20 (RJ) para recitais com repertório deste seu novo trabalho, “Para Amália”, um algum duplo, lançado simultaneamente em Portugal, Brasil e outros países e, desde o dia 31 de outubro, vem obtendo grande repercussão de público e de crítica. Ao que tudo indica, caminha para ficar marcado como o acontecimento musical do ano.

Não estarei em São Paulo no dia 19.11 e, desconsoladamente triste, não a verei no Teatro J. Safra. Guardarei comigo, à espera da próxima oportunidade, dois especiais momentos em que a vi cantar em São Paulo e fiquei rendida pelo hipnótico carisma de alguém que não canta apenas com a voz, mas com todo o corpo. Mais do que dizer e interpretar, significa. Para consolo próprio, seguirei ouvindo este Para Amália, além da dezena de outros CDs que ao longo dos últimos 10 anos tenho, incansavelmente ouvido,  desde que, de forma fortuita,  fui “convidada” a ouvir “Paixões Diagonais”, CD que “descobri”, sem nenhuma informação prévia, perdido numa gôndola de supermercado. Sedução à primeira vista, à primeira audição.

Para quem, por ventura, tenha se interessado, deixo aqui, mais informações (preciosas), copiadas do site oficial de Mísia:
“trata-se de um álbum duplo, gravado em Lisboa no final de 2014, ano em que se cumpriram os 15 anos da desaparição física de Amália Rodrigues. “Para Amália” foi construído não só com o repertório amaliano mas também com temas inéditos criados especialmente para este trabalho.
O primeiro disco, piano e voz, é constituído por músicas na sua maioria de Alain Oulman mas também de Carlos Gonçalves, Fontes Rocha. Poemas de David Mourão Ferreira, Amália, Afonso Lopes Vieira, Pedro Homem de Mello, etc.
O segundo disco, guitarras de Fado, tem um ambiente musical mais tradicional, incluindo Fados muito populares e um tema de folclore.
Textos inéditos de Amélia Muge, Tiago Torres da Silva, Mário Cláudio e Mísia escritos em tributo a Amália Rodrigues.
Neste álbum participam a grande  intérprete  brasileira Maria Bethânia cantando com Mísia “Amália Sempre e Agora”, um dos 4 inéditos deste disco (Música Mário Pacheco e poema de Amélia Muge), o actor Rogério Samora alternando com a voz cantada de Mísia diz magistralmente o poema “Amor sem Casa”  de Teresa Rita Lopes e a  carismática cantora espanhola Martírio  num dueto com  Mísia  interpreta  “Maria La Portuguesa” canção que Carlos Cano, compôs,  dedicada  a Amália  Rodrigues. De salientar o talento musical do maestro napolitano  Fabrizio Romano nos arranjos de todos os  temas do  CD1.
Em concerto, “Para Amália" pode apresentar-se em 2 versões: uma mais intimista, piano e voz, outra completa, na qual as guitarras se juntam ao piano. Em ambas, um efeito visual da projecção em loop da jóia preferida de Amália Rodrigues, vai pulsando em várias cores palavras chave do Fado: destino, voz, saudade, mulher, etc.
"Amália tornou-se eterna e está mais viva do que nunca. O Tempo contido na sua obra e o youtube trabalham nesse sentido”. Mísia”




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Cozinha e literatura ou das sincronicidades do espírito


Por estes dias, pousou em minha escrivaninha um pacote postado no Porto, algum tempo antes (a travessia atlântica, no que se refere a pacote enviado através dos correios, parece ter, por vezes, voltado ao ritmo das caravelas) por José Viale Moutinho, ilustre escritor meu conterrâneo e, o que é melhor, meu amigo.


Nada menos do que 5 livros saíram dali e vieram enriquecer a minha prateleira vialemoutiniana (“o diabo coxo – ocasionário fabuloso”, “Contos Populares das Ilhas da Madeira e do Porto Santo”; “Portugal Lendário – tesouro da tradição popular” uma obra monumental publicada pelo Círculo de Leitores, com 524 pgs.;  “Entre Povo e Principais”, uma novela, em 2ª. edição, com Prefácio de Agustina Bessa-Luís, que diz : “Viale Moutinho é um dos últimos românticos do bem-dizer (....) Faz bem aos nervos lê-lo; faz bem à alma viver com os seus homens duros, os generais cravejados de medalhas, os caçadores atrás das lebres (...)”; o quinto e, para mim, mais importante (e já digo porquê) “Um jantar de escritores – seleção de textos e notas epicuristas”.
À alegria indescritível de sempre, a de abrir pacotes, saboreando de antemão o prazer estético de fruir seus conteúdos, juntou-se o sentimento de surpresa que reafirma a crença naquilo que Jung chamou de sincronicidade, ou seja, acontecimentos que se relacionam por seus próprios significados e não meramente pela causalidade.
É que no exato momento da chegada do pacote, estava eu dedicada à pesquisa sobre o papel da gastronomia na literatura, ou melhor, como é que a comida é “tratada” na ficção e na poesia de alguns escritores (naquele momento debruçava-me sobre Eça de Queiroz, o exemplo mais evidente na minha memória literária e valia-me do exaustivo trabalho de Dário Moreira de Castro Alves em “Era Tormes e Amanhecia – Dicionário gastronômico cultural de Eça de Queirós”). Preparava-me, com isso, para atender a um convite que recebi para integrar uma mesa de diálogo no Congresso Metodista, sob o tema  “Comida, Educação e Arte”, da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, no próximo dia 11. É evidente que ao me deparar com este “Um jantar de escritores – seleção de textos e notas epicuristas” estabeleceu-se de imediato a tal sincronicidade e, de quebra, muito contribuiu com minha pesquisa que, diga-se, não era do conhecimento de seu autor.
Neste, literalmente, saboroso livrinho, além do inevitável Eça, entra também o Camilo, sobre quem Viale Moutinho já publicou “Camilo e o Garfo” e uma farta mesa de banquetes da boa literatura portuguesa, passando pela poesia de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almeida Garrett, Bocage, António Nobre e Cesário Verde, bem como por romances e crônicas de Bulhão Pato, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão,  e tantos outros.

E viva a sincronicidade do espírito! Bem haja o Zé Viale, prolífico e original escritor, com sua generosidade transatlântica.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Uma visita ao Recôncavo Baiano e algumas descobertas

Atenção: isto não é um roteiro turístico. É só para reforçar algo que sempre constato em minhas viagens pelo Brasil, mas que muita gente ainda não se deu conta: São Paulo não é o Brasil (apesar do amor que devoto a este estado onde vivo desde os 11 anos) e não é a "força da grana que ergue e destrói coisas belas" que caracteriza este país, mas o seu povo e a incrível diversidade de sua cultura.

Esta não é a primeira vez que visito a Bahia, mas como há sempre o que descobrir nas inúmeras Bahias existentes na Bahia, desta feita, estabeleci meu QG na cidade de Cachoeira (110km de Salvador), no chamado Recôncavo baiano. E se conto é porque sempre volto inconformada por constatar que o Brasil é um país magnífico, vocacionado para o turismo, com atrações históricas, culturais e paisagens deslumbrantes, mas que ainda é subestimado pelos próprios brasileiros e descuidado por quem dele deveria cuidar.

Cachoeira Vista da Casa Ateliê Hansen Bahia, em São Félix, cidades nas
margens opostas do Paraguaçu e ligadas pela Ponte Imperial D. Pedro II

Antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, chamada de a Heróica, título que lhe foi concedido por D. Pedro I, em abril de 1826, como reconhecimento à campanha pela emancipação do país, a cidade Cachoeira foi um importante entreposto comercial. Próspera e rica vila do Recôncavo, considerada a maior cidade baiana depois da capital e um dos mais importantes centros urbanos brasileiros do Século XIX. Sua "descoberta" oficial data do ano de 1526 e era o ponto de acesso ideal para penetração do interior. Ali, na altura da bacia de Iguape ("lagomar") encerra-se a parte navegável do rio.

Um rio que tem marés e ondas - Bacia do São Francisco - Rio Paraguaçu

Tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Nacional (IPHAN), a cidade reúne um impressionante e inestimável conjunto arquitetônico do estilo barroco na Bahia. 

A Identificação foi imediata: vistas a partir do rio Paraguaçu, as cidades de Cachoeira e São Félix (desta falarei depois), ligadas pela "Imperial Ponte D. Pedro II,  (1865) sobre o Rio Paraguaçu, muito se assemelham à geografia de minha cidade natal, Funchal e, muito em especial, quando iluminadas, à noite. Tanto aqui como lá, à margem do rio estas, à margem do oceano aquela, suas imagens são de um verdadeiro presépio.

Dali,  onde nos hospedamos numa pousada instalada num autêntico Convento do Século XVIII, parte do admirável conjunto do Carmo


Pátio Interno da Pousa do Carmo (antigo Convento) visto do primeiro andar (todas as janelas dão para o interior)
 

passamos à "exploração" local. Além da navegação pelo Rio Paraguaçu (que nasce na Chapada Diamantina e deságua em Salvador, após percorrer 600km)

Ponte Imperial D. Pedro II que liga Cachoeira a São Félix, vista do barco


cidades circunvizinhas, como São Félix, Muritiba, Santo Amaro da Purificação, Maragogipe, Iguape.

Um Brasil profundo, negro, mestiço, europeu, africano, sincretismo cultural único, carregado de histórias e com visíveis marcas da História, ainda que, em muitos casos, o descaso crônico com o nosso Patrimônio Histórico seja tão dolorosamente constatado e lamentado. Aqui e ali, mobilizações populares provocam "milagres" e meritórios restauros.

Sem nenhuma intenção de traçarmos aqui nenhum roteiro de viagem, destaco alguns dos inúmeros e surpreendentes monumentos históricos daquela região tão pouco divulgados, mas que merecem e precisam ser melhor conhecidos e fruídos. Além do casario, muitas edificações em excelente estado, outros tantas em completa degradação, topamos, de surpresa em surpresa, com estes:


Igreja de N. Sra. de Belém e o padre voador

Frontispício da Torre da Igreja de Belém, onde se inscreve a data de sua fundação: 1686


- Contando com a luxuosa visita guiada do pároco de Cachoeira, Pe. Helio Vilas Boas, visitamos a Igreja de Nossa Senhora de Belém, edificada em 1686 dentro de uma aldeia indígena (o frontispício atual é do Séc. XIX, e o interior da igreja passa por um grande processo de restauro). Aprendi que essa Igreja fez parte de um antigo Seminário (que já não existe) onde estudaram Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro, e o famoso Pe. Bartolomeu Lourenço de Gusmão, conhecido como padre voador, criador da mítica "passarola" e, para quem se lembra, personagem do romance Memorial do Convento, de José Saramago. 




Pois bem, o Pe. Bartolomeu, começou ali sua carreira de inventor, criando uma maquineta que elevava a água de um brejo 100 metros abaixo da edificação que veio facilitar a vida dos que ali viviam. A Igreja de Nossa Senhora de Belém, hoje é um Santuário de Peregrinação. Arrepiante pisar o solo dessas histórias.


Conjunto do Carmo - Igreja N. Sra. do Carmo



O chamado conjunto arquitetônico do Carmo é composto pela Igreja da Ordem Terceira do Carmo,  pelo Convento (hoje transformado em Pousada) e pela Casa de Oração Ordem Terceira do Carmo (transformada em Centro de Convenções). De um valor histórico incalculável, a Construção, de estilos e épocas diversas (1696-1747) é realmente admirável. A Igreja tem seu interior revestido de ouro e maravilhosos painéis de azulejos portugueses. Na Sacristia, um impressionante conjunto de imagens de madeira trazidas de Macau que representam a Paixão de Cristo. As magníficas figuras, em tamanho natural, possuem traços orientais e cabeça raspada (disseram-me que é uma "versão" oriental de que os condenados à morte na cruz, à época de Jesus, tinham suas cabeças raspadas). As imagens são únicas e impressionam de fato, além dos armários onde estão colocadas, com pinturas autênticas nas portas e interiores, também de Macau. Muitos outros tesouros, sabe-se, foram saqueados por quadrilhas que percorrem o Brasil de ponta a ponta com essa finalidade. Sem a mínima segurança, o que restou de toda essa riqueza é "zelado", via de regra, voluntariamente e de forma precária, por cidadãos da comunidade que, organizados em "irmandades",  se revezam e esforçam como podem. Vez ou outra, por pressão desses mesmos abnegados cidadãos, restauros são realizados, mas sempre são insuficientes pelo fato de que a conservação é precária. Uma realidade que nos entristece e que precisa com urgência ser revertida.


Igreja Matriz N. Sra. do Rosário do Porto de Cachoeira





O Oh! de admiração continua ao entrarmos na Igreja Matriz N. Sra. do Rosário, Prédio do Século XVIII, igualmente de riquíssimo interior com a surpresa maior: novo e muito maior conjunto de azulejos portugueses, da época da edificação, muito bem conservados que, dizem, ser o maior conjunto do gênero existente no Brasil e um dos maiores fora de Portugal. Uma Sacristia com um belíssimo teto de pintura "ilusionista" do italiano José Theófilo de Jesus.   


Passeio e encontro com a Regata Aratu-Maragogipe

No passeio pelo Rio Paraguaçu, a surpresa da chegada das embarcações e dos tradicionais saveiros, da 46ª Regata Aratu-Maragojipe. E dá-lhe Samba suor e cerveja, dentro das próprias embarcações que reproduzem cenas de blocos carnavalescos (os participantes de cada uma delas com seus uniformes/abadás)








A Bahia é festa o ano todo. A Regata faz parte das festividades de São Bartolomeu em Maragogipe. E o sincretismo cultural, a mistura do profano e do religioso, mais uma vez,  se faz presente. No dia seguinte à regata, baianas vestidas a caráter saem em cortejo do Terreiro Banda Lecongo até as escadarias da Igreja do Santo Padroeiro (fechada nessa altura) para a tradicional lavagem.



No largo atrás da Igreja, o samba de roda anima a multidão dia e noite afora. A multidão aumenta a cada momento.


Os baianos não andam, dançam, gingam e demonstram uma indiscutível sensualidade. Não falam, cantam. 


Finalmente, no dia 24, dia do Santo, os atos religiosos são celebrados, não sem antes, uma boa salva de fogos.





Como se vê, a Noite de São Bartolomeu nos trópicos nada tem a ver (e ainda bem) com aquela outra no Século XVI, em Paris, que tingiu o Sena de sangue, consequência de disputas de poder e desvario de monarcas e altas patentes. A noite aqui é do povo que celebra sua mestiçagem e fé sincrética.

E há ainda o Museu e a Casa Museu Ateliê de Hansen Bahia

Fundação Hansen Bahia - Galeria (Cachoeira)

Casa Museu Ateliê onde viveu Hansen Bahia (São Félix)

O Museu biográfico Parque Histórico Castro Alves - PHCA, em Cabaceiras, onde nasceu o poeta Castro Alves

Fazenda Cabaceiras


O Convento de Santo Antônio do Paraguaçu, da Ordem religiosa Franciscana, é o primeiro a ser estabelecido no Brasil, impressionante edificação (1658-1686), às margens do Paraguaçu, no povoado de São Francisco do Paraguaçu, pertencente a Cachoeira. Essa maravilha, infeliz e incompreensivelmente, encontra-se, ao menos externamente (não encontramos naquele momento o "guardador" do local e, desconhecemos seu interior) encontra-se quase em ruínas.




A Irmandade da Boa Morte composta só por mulheres negras, em Cachoeira:



e a lindíssima e rica Igreja do Monte com seu adorável casario colonial ao redor, também em Cachoeira:



e a surpreendente descoberta do Instituto Roque Araujo, com seu museu de cinema e audiovisual, em Cachoeira:


e a fábrica de charutos artesanais Danemann, verdadeiras obras de arte, localizada em São Félix:


e a Igreja de Santo Amaro da Purificação, o Solar de Dona Canô e as marcas de seus dois filhos ilustres:





e a inesquecível lembrança da imagem noturna de Cachoeira, com a lua ao fundo, vista do corredor do 1º andar da minha Pousada:


e outros e tantos e tão apaixonantes que talvez volte a falar deles por aqui. (dtv)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

São... São... Paulo(s) - cidades dentro da cidade - II

Parte II - a segunda cidade, a da vieille cuisine

Seguindo o roteiro, vamos à busca da "segunda cidade", a da velha e honesta gastronomia paulistana, ou seja, restaurantes sem firulas, sem "música ambiente", sem "música ao vivo", mas com uma cozinha honesta, desgourmetizada, garçons que gostam do que fazem. Locais onde se vai não só para saciar a fome imediata, mas também com o sentido do rito.
Não é muito fácil encontrar essas velhas casas. As poucas que existem, resistem bravamente, graças a clientes fiéis.



Um bacalhau grelhado, acompanhado de brócolis, batatas, cebola, ovo, cozidos no vapor, regado com muito azeite. Itamarati (1949), no Largo de São Francisco, bem em frente à velha Academia de Direito.



Pastas de berinjela e homus, coalhada e pão sírio de entrada. Kafta grelhado com  cuscuz marroquino de prato principal. Almanara (1950) na Rua Basílio da Gama (uma ruazinha quase clandestina, que sai da Pça. da República e acaba em lugar nenhum.)



Um filé no Girondino (2005, mas inspirado no Café do mesmo nome, instalado em 1875 na rua 15 de Novembro e que existiu até os anos 20). Rua Boa Vista, esquina com Largo de São Bento. Lamentavelmente, ao menos para mim, não vale mais a pena. Virou "modinha" e a boa cozinha desapareceu. Os preços altos a substituíram. Vale o ambiente, a vista para o Mosteiro e o (ainda) muito bom café.


Um café no Café Floresta (1977), no edifício Copan (Niemeyer). O café é excelente (esta é uma loja do produtor) e o "clima" dos velhos Cafés é convidativo. Apesar de não gostar de tomar um café em pé, este é um dos poucos locais que topo fazer isso, pelos motivos expostos.

Nesta cidade múltipla, há cardápios para todos os gostos, preços para todos os bolsos, ambientes para todos as exigências.

Anotações do diário de bordo:

em silêncio
auscultar as narrativas que a cidade oferece
(o imaginário coletivo e seus sentidos)



a memória pessoal
(autobiografia)
em construção
permanente

saguão Biblioteca Mário de Andrade - sem identificação de autoria


O que a cidade "escreveu" e esqueceu
é também a minha escrita
minha singularidade
na multiplicidade
(intercambiáveis)


quarta-feira, 10 de junho de 2015

São... São... Paulo(s) - cidades dentro da cidade

Parte I - a primeira cidade

Quadro dias hospedados em um hotel, um feriado espremido ao meio, em pleno centro (o velho) de São Paulo, exatamente a 22 km de casa. Uma viagem, garanto (na própria terra).

Proposta: flanando, mapear algumas dessas "cidades"  dentro da megalópole.

A primeira atração da viagem: o próprio hotel. Ícone da arquitetura modernista, com uma história (histórias) fantástica que se confunde com a cidade em toda a segunda metade do Século XX.



Projetado pelo arquiteto alemão Franz Heep sobre um projeto já existente desde 1946, da família Mesquita, para abrigar o jornal O Estado de São Paulo, a rádio Eldorado e o hotel Jaraguá no então chamado Centro Novo. O ousado edifício foi concluído em 1954 em plenas festividades do IV Centenário da cidade, recebendo em suas instalações os participantes da primeira edição do Festival Internacional de Cinema ocorrido naquele ano.  A partir daí, tornou-se uma referência internacional. Personalidades ligadas ao mundo das artes, do cinema, chefes de estado, empresários, heróis, reis e rainhas, passaram por ali. A instalação de hotéis concorrentes nos arredores e, posteriormente, a ida das grandes redes hoteleiras para o "novo centro", ou seja, Av. Paulista e entorno, contribuíram para que o hotel entrasse em decadência e consequente fechamento em 1998. Bem antes, o próprio jornal O Estado de São Paulo já havia saído de lá.
Já com novos proprietários, o edifício sofre uma reforma interna radical. A parte externa e os murais artísticos (Di Cavalcanti e Clóvis Graciano) ficaram inalterados, pois são tombados como Patrimônio Histórico Estadual.




Uma pena que, para sobreviver, o hotel desta história toda, tenha se submetido aos desígnios dos novos tempos, ou seja, voltado para o turismo de "negócios" deixando poucos vestígios do glamour dos turistas que viajam pelo prazer da viagem. Uma pena que hoje, esse turistas (brasileiros e estrangeiros) também não sejam informados do quanto aquele então "Centro Novo" e hoje chamado de "Centro Velho" pode ainda oferecer em termos de atrativos.
(Mais detalhes arquitetônicos desse edifício, bem como de suas circunstâncias histórias podem ser obtidos, AQUI . Trata-se de um trabalho apresentado pela arquiteta urbanista Carmem Alvarez, em 2007, no Seminário "O Moderno já Passado / O Passado no Moderno", em Porto Alegre.  Vale a pena conhecer.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas, ainda assim, com uma boa dose de imaginação e sentido da história, o viajante da atualidade poderá entrar no clima do vivido alheio e usufruir do clima do momento do qual sempre se pode extrair encantamento, uma vez que é composto de gente e gente, como queria o poeta, é para brilhar.

Durante os dias que lá estivemos, assistimos, como ocorre em hotéis de grande circulação no mundo inteiro, tanto ao café da manhã quanto simplesmente sentados no hall de entrada a fingir que se lê o jornal do dia, mas atentos ao espetáculo de culturas, através dos viajantes que ali ficam hospedados em Congressos e Seminários internacionais, do qual tiramos muitas destas informações.

Dois grandes grupos (um indiano e outro senegalês) chamavam atenção pela beleza física e trajes de suas mulheres. No lugar da Rainha Elizabeth que por lá passou nos anos 50, uma incógnita (ao menos para mim) rainha africana que, ao lado do seu belo par e do alto de seus 1,80m, circulava com uma colorida e segura leveza que deixava tudo ao redor em suspenso. Os brilhos dos panos das indianas, com seu andar manso mas decidido também iluminavam os espaços comuns. O espetáculo de cores e sorrisos era todo comandado por elas, na sua grande maioria, ladeadas de homens opacos, amarrados com crachás de identificação ao peito,  semblantes sombrios.
A recusa ao crachá - essência da revolução feminista, não tenho dúvidas.

excertos do diário de bordo:



quem, antes entrou?


quem antes se viu?
quem antes se deitou?

quem, à janela deste 23º andar
                mirou tantas outras janelas?
que cenas anotou?




Sair e ver de perto o que de cima é irreal

(anotar as sombras)

sábado, 16 de maio de 2015

Manhã de Maio

A luz desta manhã de maio me convidou a andar. Anotar a cidade e suas passagens, um exercício adorável, mas que tenho praticado pouco.
Agora, luz natural já apagada, reabro um livro de um poeta que andei a reler nos últimos dias, Edimilson de Almeida Pereira, mineiro/brasileiro/universal.
Como poesia (a boa poesia) jamais envelhece, copio aqui um dos poemas, de uma página aberta ao acaso, lido com o frescor deste dia.


POROS

Maio convida a passeios.
Tudo exposto como se alguém
deixasse a luz acesa.
Sorri um crime de besouros,
um filho chega à janela.
O homem antevê seu chapéu.
Nomes não chamam ninguém
mas costuram o mundo.
Se a ferrugem floresce,
abre incêndios nas calhas.
O que é permanência dura
um eclipse

in As Coisas Arcas, obra poética 4, Funalfa Edições, 2003


sábado, 25 de abril de 2015

Mísia - Fado, portugueses em São Paulo, 25 de Abril

Chegamos cedo. A noite tépida outonal convidava e a espera aguçava a curiosidade.


Teríamos um "show de fados - Mísia e Pedro Moutinho" em "Comemoração do 41º aniversário do 25 de Abril a revolução dos Cravos que restaurou a democracia em Portugal - Apresentação dos cantores Mísia e Pedro Moutinho.", anunciavam os cartazes (sic).
A Casa de Portugal ocupa um belo, mas sombrio edifício, no chamado centro velho de São Paulo, região igualmente bela e sombria. Está lá há 80 anos e tem histórias relevantes nessa trajetória luso-brasileira. Trata-se, portanto, de uma respeitável senhora entrada em anos a quem devemos relegar eventuais falhas e faltas. Como ali não se faz nada que não seja, antes, acompanhado de acepipes, lá estavam os bolinhos de bacalhau,  alheiras e vinho. Não sem alguma ternura, observo, enquanto espero,  fisionomias "familiares" sem que lhes conheça nomes ou sobrenomes. "Familiares" porque, afinal,  nos une a condição de "emigrantes" que para esta megalópole vieram e "brasileiros", como eu, se tornaram. Estão ali, não pelos pastéis, alheiras ou vinho. Ali vieram para resgatar um elo, frágil que seja, que a pátria primeira insiste em ligar suas memórias. A mesa e a memória dos sabores primevos é o primeiro impulso, depois vem a memória sonora, aquela que estabelece o elo estético, por mais rude que tenha sido a infância de muitos deles. Vieram, viram, venceram, ficaram. E como o retornado de Camilo, acalentaram por muitos anos o sonho do retorno, mas jamais voltaram e, se ocasionalmente o fizeram, foi para se reconhecerem naquilo que um dia foram e que não são mais, ainda que marcas indeléveis do rizoma insistam e forneçam sinais e, por vezes, provoquem dores não identificáveis.
Muitos cabelos brancos, algumas bengalas, próstatas que obrigam a levantar algumas vezes durante o espetáculo. Pouco importa, é preciso estar ali para identificar ou tentar identificar o que se foi/é. É fado? Vamos! E foram, muitos. E não sabiam, ao menos grande parte deles, sequer quem era Misia, mas era fado... Foram.
Com todo o meu carinhoso respeito e que me desculpe o jovem fadista que abriu o espetáculo, mas quando Misia subiu ao palco, com seu elegante vestido negro e uma enorme rosa vermelha ao peito, silhueta de bailaora andaluz, mas de legítima essência lusitana, toda a memória do que ali se passara antes, simplesmente desapareceu (ao menos para mim que ali estava, mais uma vez, rendida).  
Até a fúria inicial dos celulares (essa odiosa prática dos nossos dias) foi amainada, tamanha era esta nova "fúria", a da arte de Misia, que ali se instalava. O primeiro número foi, eu diria, revestido de uma certa "neutralidade" de ambas as partes, momento de reconhecimento entre palco e plateia. Já no intervalo entre este e o segundo número, Misia evoca Amália com reverência e justiça, referindo-se ao coro da plateia que fora ouvido momentos antes, ao entoar,  junto ao Pedro Moutinho, o fado "Nem às paredes confesso", pontuando que "Amália está cada vez mais viva e o coro é prova disso".
A partir daí, a empatia acontece e sua presença passa a preencher todos os espaços, do palco à plateia e a invadir todos os sentidos. Simplesmente hipnótico. Quando sua poderosa voz, antes mesmo da introdução da guitarra, à capela, ecoou naquela sala quase centenária, soube-se que não se estava diante de apenas mais uma fadista, mas de uma quase entidade, expressão legítima de um sentimento genuinamente português. Ali estava alguém que parecia não ser dali, mas ao mesmo tempo pertencia a todos que ali estavam.
Misia, uma vez mais, demonstrou que jamais esgota suas possibilidades interpretativas, não só interpreta o Fado de uma maneira única, como também reflete e faz refletir sobre esta canção tão urbana, tão portuguesa/universal e, diga-se, depois de Amália e Mísia, tão literária. Nada nela é linear ou sossego. Nada em Misia faz concessões à facilidade, mas ao desassossego. Mas, por mais paradoxal que seja, tudo nela é tão claro e luminoso que essa complexidade torna-se tão natural para o receptor que a empatia torna-se imediata, dando-nos a sensação de isso é "tão simples" e "natural". Misia vai com muita facilidade desse enganosamente simples ao dramático extremo e, nisso é imbatível. Primeiro porque há que se ter o fado nas entranhas, o que se vem a chamar de talento, depois, porque é preciso chão e vivências para chegar ao grau de dramaticidade a que chegou esta artista. Tudo nela é representação e, por essa imensa capacidade de estar no palco e representar, é que tudo nela, afinal, é verdadeiro, dramaticamente verdadeiro.
Estávamos, portanto, diante de um patrimônio da língua e da cultura portuguesa, uma artista que, como ninguém, representa para o mundo o moderno Portugal, sem jamais deixar de estabelecer conexão com a tradição.
Sem jamais abrir mão do Fado Menor, no qual é simplesmente inigualável, passa por inúmeros outros gêneros, apropriando-se de culturas outras (espanholas, francesas, brasileiras), ora transformando-as em fado, ora mantendo-as em suas tradições às quais introduz um toque misiano (e fadista) inconfundível.
Lá pelo meio do inesquecível recital, no qual Misia cantou literatura (Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luiz, Fernando Pessoa, Saramago, dentre outros) veio o grande tributo a Amália. De forma emocionada e emocionante, interpreta "Tive um coração, perdi-o", versos da própria Amália e música de José Fontes Rocha. Foi aí que se deu o que Amália chamava de "Acontecimento". O Acontecimento, ou seja, as alturas a que podia chegar e a que Mísia, ao homenagear sentidamente Amália, chegou. Para quem  atentamente acompanhava o recital, não foi difícil perceber que naquele momento o "Acontecimento" se deu, a ponto da visível emoção da intérprete, fio condutor mais do que perfeito, conectar com a plateia, igualmente emocionando-a. Culminância dos sentidos e do ato de cantar e comungar. Momento único em que a discreta lágrima da artista, ao final do número, comprovou.
O último número veio com a boa notícia de um novo trabalho, para Amália e com Amália, a sair em outubro. Para ilustrar e aguçar a expectativa, um fado de Mário Cláudio para Amália, em absoluta primeira vez. No bis, insistentemente solicitado por uma plateia já cativada, uma canção brasileira de um dos mais brasileiros dos nossos compositores, Dorival Caymmi (uma canção de 1941, em parceria com Jorge Amado, inspirada no romance deste último, Mar Morto), a bela "É doce morrer no mar", já agora Fado, na voz e interpretação de Misia.
Estava cumprido o propósito do espetáculo alusivo ao 25 de Abril, sem que uma só palavra da artista o tivesse dito. Mas o Portugal pós 25 de Abril ali estava, o Portugal moderno e democrático, mesmo com todos os percalços, rupturas, equívocos, desvios, esquecimentos dos ideais daqueles já distantes anos. Uma noite para não esquecer.

Em tempo: abaixo, uma gravação do bis (amadora), por um agente secreto por mim contratado (licença poética sem fins comerciais), que roubartilho.





domingo, 29 de março de 2015

Retorno, licença poética e lembrete de Vieira

Texto originalmente publicado no Facebook:

12 dias licenciada  da rede. Uma licença poética, literalmente.
Experiência Detox pela poesia. Poesia todos os dias, na veia, em doses cavalares.
Retorno porque toda dieta é assim, provisória. Desintoxica para intoxicar novamente.
Para completar a desintoxicação, desci a serra. Mergulhar o corpo na água salgada. O costumeiro verde mata atlântica, nesta época, todo salpicado de rosa e branco (os manacás). Exuberância de Outono. Eficiência comprovada da receita.

Nesse meio tempo, os deuses cibernéticos derramaram sua vingança sobre mim e me brindaram com uma épica gripe. Não tive como evitar uma analogia com os dois personagens de Sarapalha, sua febre terçã e sua recusa a sair do lugar ("Ir para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai!.."). Trêmula, pensava neles enquanto soprava a xícara de chá fervente. Entre tremores e zumbido no ouvidos, entupidos (eles de quinino, eu de chá de alho com limão), irmãos nas maleitas humanas.
Nesta pausa de silêncio e leituras notei o seguinte:

- A vida fora do FB é bem menos frenética. Não se ouvem tantas vozes ao mesmo tempo, as pessoas seguem seu cotidiano, vão ao supermercado, ao açougue, ao cabeleireiro, à livraria, ao shopping, trabalham, descansam e a vida urbana segue sem tantos especialistas, vida feita de gente de carne osso, remelas, coceiras, febres, torções e, claro, sorrisos e gestos de bem querer.

- O FB pode ser, sim, interessante. Confesso que senti falta de balizar minhas opiniões com as de gente que respeito e admiro. Ainda que de maneira um tanto quanto oblíqua, entrei diariamente por aqui, pois a comunicação via email está gradativamente desaparecendo. Na suposição de que estamos on-line diuturnamente, as mensagens, em sua esmagadora maioria, são enviadas pelo "messenger" do FB. Mas resisti e cumpri a licença à risca.

Termino, com Pe. Antonio Vieira, relido também nestes dias, que me alertou sobre o Facebook: "A maior graça da natureza, e o maior perigo da graça, são os olhos. (...)  o maior perigo e o maior laço são os olhos alheios. E por quê: Porque sendo tão natural do homem o desejo de ver, o apetite de ser visto é muito maior. (...) Tão imortal é nos mortais o desejo de ser vistos!" ("Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma - Pregado na Misericórdia de Lisboa, no Ano de 1669", in "Sermões", organização Alcir Pécora, 2 volumes, Ed. Hedra, tomo 1, 2001)


domingo, 8 de março de 2015

Mulheres


O Dia Internacional da Mulher deveria ser lembrado (e não o é) pelo que verdadeiramente evoca, ou seja, um ato bestial cometido contra 109 operárias, em 1908, em Nova York, que foram queimadas vivas pela polícia na fábrica têxtil Cotton, onde trabalhavam. Tinham reivindicado a diminuição da jornada de 14 para 10 horas, aumento salarial e melhoria nas péssimas condições em que viviam. Conta-se que, algumas delas, chegavam a ter os filhos dentro da fábrica. Como não foram atendidas em nenhum de seus pedidos, ocuparam a fábrica e a solução encontrada pelos policiais foi matá-las. A partir daí comemora-se essa data mundialmente em homenagem a essas mulheres.

Passados mais de 100 anos daquele fatídico episódio,  pouco ou nada mudou, nem no mundo do trabalho, muito menos no universo doméstico. A mulher  ainda não recebe salário igual ao dos homens para funções iguais. Surpreendentemente, a sociedade, mostra-se cada vez mais machista com a consequente e inaceitável violência praticada diuturnamente contra as mulheres de todos os níveis sociais, violência não apenas física, como também moral. Bom exemplo disso são os repugnantes comerciais de cerveja (carros, turismo e outros) que insistem em associar a imagem da mulher a mercadoria saborosa e de fácil consumo. 

Refletir sobre o significado desse dia e do seu universo simbólico é também rejeitar as "homenagens" de políticos, comerciantes e eventuais desavisados que, ao contrário dos tais comerciais, associam a imagem da mulher a uma flor, à beleza, à ternura e outras baboseiras que da mesma forma só disfarçam o machismo institucionalizado.

Muito conquistamos, muito ainda nos falta. Trocar os presentes deste dia 08, por ações diárias e permanentes é a proposta. Sem perder a ternura, vá lá...

Alô, alô, mulherada que vai à luta, aquele abraço...

Alô, alô, mulherada que pensa, aquele abraço...

Alô, alô, mulherada que protesta e sabe dos porquês, aquele abraço...

Alô, alô, mulherada parideira, criadeira, educadora, provedora, profissional de todas as funções e artes do universo, aquele abraço...

"deram-lhe um dia
apenas um dia
(devem-lhe séculos)

Na tentativa de remissão
as flores constrangidas
(homenagem tardia)"

         dtv

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

70 anos sem Mário

Há 70 anos morria Mário de Andrade, admirável escritor e intelectual brasileiro, sempre adiante de seu tempo. Atuou como pesquisador da arte, da música e da cultura brasileira, praticou (com fins de pesquisa) a fotografia e o diário de viagem. Publicou romances e poemas centrais na literatura brasileira.  Pensou o Brasil através da cultura, mapeando a cultura musical e popular de Norte a Sul do país. Foi também um imprescindível gestor público de cultura. Primeiro Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, criador da Biblioteca Municipal que hoje leva o seu nome. Mário foi trezentos e o foi em altíssimo grau. Não dá para compreender a vida cultural e literária brasileira (política, social e artisticamente falando) da primeira metade do Século XX sem passar por sua obra, inclusive a epistolografia, que praticou de forma admirável e com uma generosidade para com seus pares pouco vista até os dias de hoje. Um homem manso que, quando cutucado, sabia se enfurecer.
O poema "Ode ao burguês" (de Paulicéia Desvairada" - copiei de meu exemplar de "Poesia Completas"Círculo do Livro, 1976) é bem um exemplo dessa "fúria". Ele sabia muito bem do que falava, pois frequentava, apesar de pobre - vivia de suas aulas de música - os salões literário da alta roda paulistana.
Deixo aqui também um link para uma leitura igualmente "enfurecida" do ator, meu amigo, Ayrton Salvanini, que faz parte de um bom programa televisivo em homenagem a Mário de Andre. Bom proveito: Bom proveito:

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tilburi!
 Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
 — Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!..

https://www.youtube.com/watch?v=41BXXBUiwAY




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Tejo em versos de Sebastião

O Tejo desde o Castelo de São Jorge (foto dtv, 2012)

Dia destes, o amigo Luís Avelima postou em sua TL do Facebook um poema de Sebastião da Gama, seguido de pertinentes comentários sobre aquele poeta português, inexplicavelmente quase desconhecido entre nós (não conheço nenhuma edição brasileira de seus poemas - tenho-os na coleção "Obras de Sebastião da Gama" das Edições Ática (Lisboa), em 7 volumes).
Como (quase) todos aqueles a quem os deuses amam, viveu pouquíssimo o nosso poeta (1924-1947 - 23 anos apenas) e deixou uma obra que mereceu elogios de inúmeros dos mais altos poetas seus contemporâneos.
Lembrei-me, assim, de revisitá-lo e, com encanto e enorme prazer estético, fui folheando a esmo, o diário, os poemas e não tive como não lembrar da amiga Isa Ferreira, em companhia de quem tive, por algumas vezes, a alegria de percorrer esses mesmos lugares onde nasceu e viveu o poeta (Azeitão, Serra da Arrábida, Setúbal, lugares banhados pelo rio Sado que ele tão bem cantou). A certa altura, dou com este poema (Canção do Tejo), que deixo aqui em homenagem à amiga que mora à beira-Tej, mais precisamente, numa de suas "banheiras", e como o poeta, tanto ama e canta (e fotografa) esse rio-mar que ele tantas vezes também contemplou e o atravessou:

Canção do Tejo

Quem não tem saudades tuas
não é homem nem é nada!

Meu Tejo, que eu já não via
vai pra lá de uma semana,
com tuas barcas à vela,
tuas margens com teus prédios
batidos de Sol em glória,
rever-te foi encontrar-me,
como se andara perdido
por becos de alma estrangeiros.

Ai as saudades que eu tinha
de quanto é para mim,
ribeira de Bernandim,
águas santas de Camões!
Nem as saudades me cabem
na linha torta do verso.
Pudesses vê-las nos olhos,
meu Tejo!, com que te vejo...

Pudésseis, águas!, notar
o lindo amor que vos tenho,
que tão lindo, que é tamanho

porque já nele anda Mar.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Brincante - o filme ou a arte de brincar a sério

Domingo 08, hoje, mês do Carnaval. O baixo Augusta fervia. Gente, muita gente. A estação Consolação despejava umas 1000 pessoas por minuto, jovens e coloridos, na sua maioria, que desciam rua abaixo, cerveja na mão e diversão na cabeça (ops... não seria no pé?). De túmulo do samba, para a capital dos blocos, São Paulo, é a cidade que  sempre surpreendente.
Como não aprendi a dançar nem a seguir bloco e já sem paciência para começar e muito menos pernas pra aguentar maratonas, refugiei-me, como de hábito, no cinema. Oscar? Coisa nenhuma. Primeiro, porque as sessões dos filmes concorrentes ao prêmio já estavam todas lotadas com muita antecedência. Segundo, porque gosto sempre que possa de prestigiar o cinema nacional. Acertamos, desta feita, em cheio, Brincante, um filme de Walter Carvalho sobre e com o grande artista Antônio Nóbrega. Nada mais apropriado do uma hora e meia de puro lirismo dançante para este mês de samba.
Walter Carvalho (Central do Brasil, Amarelo Manga, etc. e tal) arrasa nas tomadas, na luz, na ousadia dos incríveis enquadramentos. Mais do que um adorável passeio pelo universo fantástico da arte desse múltiplo artista, constituído pelo amálgama da erudição e da cultura popular brasileira que por sua vez vai lá atrás beber do trovadorismo e do nosso imaginário, o filme é uma grande homenagem a São Paulo, onde mais de metade do filme é ambientado, cidade onde o artista fixou residência e montou o já lendário Instituto Brincante (à beira do despejo e do desprezo local).
O diretor optou por um documentário que não é exatamente um documentário, mas também não é exatamente uma ficção (vale-se de personagens de ficção encarnados pelo próprio Nóbrega) e dispensa praticamente a palavra. A história desse artista é contada através de sua própria arte. Um artista que "brinca" a sério. A viagem da "fubica", uma velha camionete que serve de casa, palco e teatro sobre rodas, por ele mesmo conduzida, sempre acompanhado de sua parceira na vida e na arte (a atriz Rosane Almeida) é metáfora dessa trajetória. Inicia percorrendo cidades estradas de terra do Estado de Pernambuco (Nóbrega, como se sabe é pernambucano), entra e se fixa, como ele mesmo se fixou, na cidade de São Paulo.
A paisagem interna (o palco, o recolhimento do estúdio) vai se alternando com a externa (a dança de rua), ora no alto dos edifícios e viadutos, ora nos parques, no vão livre do MASP, na Av. Paulista e muitos outros locais, apropriando-se da cidade, palco a céu aberto cenário de belíssima coreografias. A trilha sonora, criada em processo colaborativo, é a cara disso tudo, a cara do Brasil.  
Suassuna teria adorado ver seu pupilo ali, na telona, em pleno vigor de seus mais de 60 anos, arte nordestina/brasileira nas veias, talento levado às alturas.

Como disse, na estreia, o diretor Walter Carvalho, "cinema não é pra ganhar Oscar, mas para emocionar pessoas". Emocionei-me, voltei mais leve e com mais orgulho desta terra que elegi como minha. (dtv)


sábado, 7 de fevereiro de 2015

Uma confissão e um convite à reflexão

Sou filha legítima do pós-guerra (1946). Conheci, em criança, numa Europa devastada, a penúria da escassez, aprendi economia pela obrigatória necessidade cotidiana de poupar e não por números hiperbólicos midiáticos que o meu cotidiano não alcançava e nem quer alcançar.

(Sobre)vivi a um regime de exceção, 20 anos de tempos escuros, sob medos e incertezas.

(Sobre)vivi durante 15 anos a uma inflação de 3 dígitos, quando tínhamos que correr a depositar minguadas quantias no banco porque dinheiro em mãos representava desvalorização diária. Época em os funcionários de supermercados usavam uma famigerada maquininha etiquetadora para alterar os preços das mercadorias diariamente.

(Sobre)vivo ao massacre midiático (e histeria "moral" coletiva) atual que, a todo custo quer me convencer, sem sucesso, que vivo num país à beira do caos e da banca rota.  
Enquanto os tubarões se engolem, as piabas (os trabalhadores) e o trabalho seguem.

O Brasil é maior que o buraco e que os seus predadores. Apesar da praga (sempre condenável) de ordem moral e ética que nos assola (e desde sempre nos assolou), os cidadãos de bem são em maior número e sobreviverão a mais esta turbulência.

Toda esta minha digressão é para, nestes nossos tempos de "apocalipse", com toda a gente fazendo uso de jargões do economês e à beira de um ataque de nervos, recomendar que, serena e atentamente, se assista este expressivo trabalhador brasileiro que discorre, com muita propriedade e conhecimento de causa, sobre a sua realidade dentro da maior empresa de petróleo do mundo (sim, é brasileira, produz, dá lucro e começa com P). Afianço que vale a pena perder/ganhar os 10 minutinhos.


Trabalhador da Petrobras defende a empresa | Conversa Afiada

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Mini-fábula dos dias que passam ou Biologia, literatura, história e política, matérias necessárias para entender o Brasil,

Mini-fábula dos dias que passam ou
Biologia, literatura, história e política, matérias necessárias para entender o Brasil,

"Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são." Mário de Andrade, 1893-1945 (in Macunaíma - 1928)

Saúva: designação comum a formigas (há cerca de 200 espécies no Brasil). Conhecidas como cortadeiras e carregadeiras, alimentam-se dos fungos criados pelos folhas que carregam. Uma das nossas maiores pragas agrícolas, dizem os dicionários

"Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil" A. Saint Hilaire,  naturalista,1779-1853.

Em pleno Século XXI, o Brasil, posso assegurar, não acabou com elas, mas também não se acabou, nem acabará.

Assim ocorre com as chamadas saúvas humanas, cortam e carregam, cortam e carregam, sem que os donos ou cuidadores das "folhas verdes" o percebam. Quando menos se espera os "fungos" cobrem o que não deviam e é aquela gritaria. Gritam todos e, nessa confusão, não se sabe quem é saúva nem quem não é.
Há centenas de espécies delas e habitam estas terras desde o Império. Sim, não apareceram agora, abundam em todos os canteiros, são predatórias e não há inseticida que dê jeito.
Para nossa mínima esperança, o Brasil é sempre (tem sido) maior que o buraco que nossa maior praga cava. São muitas, mas sempre haverá quem as combata.