quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Paixão movida por compromisso - SETENTA anos, poemas, leitores - comentário crítico por Rubens Shirassu Júnior

Reproduzo abaixo, uma leitura crítica da minha antologia SETENTA anos, poemas, leitores, por Rubens Shirassu Júnior, publicada em seu blog: http://rubensshirassujr.blogspot.com.br/

Paixão movida por compromisso
  
“Meus poemas têm fome de humanidade e, contrariando o poeta, podem dizer o que penso ainda que eu, através do artifício da linguagem, induza o leitor a pensar que é ele que assim pensa. A função do poema, originada nas fomes, é justamente provocar outras fomes. Meus poemas têm fome do mundo que me cerca e das coisas que, de alguma forma, me perturbam e desassossegam.”

( Da entrevista Sobre poesia, ainda: Dalila Teles Veras, do blog Contra tanto silêncio, de Tarso de Melo. )


Rubens Shirassu Júnior


            Para comemorar sua vida e obra, a poeta Dalila Teles Veras lançou Setenta - Anos, Poemas, Leitores (Alpharrabio Edições, 110 páginas, Santo André, São Paulo - 2016). Uma antologia de setenta poemas escolhidos dos quinze títulos publicados pela escritora ao longo de 34 anos de intensa vida artística e ativismo cultural. Os textos que ilustram as páginas foram carinhosamente escolhidos por 70 convidados (escritores e amigos da poeta) de diferentes idades (desde o neto de Dalila de oito anos a outros com mais de oitenta) e de formações e interesses diversos.
            O cabedal lírico da poeta foi reforçado pela leitura de muitos poetas portugueses e brasileiros. Trinta poemas do livro trazem uma epígrafe de referência, a exemplo de Vias Oblíquas e Abismos na pequena seleta abaixo. Princípios, temporais, horizontes, altitudes – assim Dalila equaciona sua viagem, numa só voz. As epígrafes são pequenas interferências, pausa para que os poemas respirem a diferença, que os conjuga, os irmana, tanto quanto alguns poemas aparentemente isolados, tornam-se paradigmáticos por excelência. Um estudo das epígrafes na poesia brasileira moderna teria muito a dizer dos caminhos e descaminhos de nossa lírica – mas isto é uma outra conversa, para outra hora, outro espaço.
            Dalila Teles Veras, gosta de exprimir, de modo conciso, o que vê e sente em poemas que oscilam entre a inquietação, o tédio, a angústia e uma grande lucidez e capacidade analítica, junto ao lirismo e à afetividade e, acima de tudo, à paixão movida pelo comprometimento.
            No entanto, Dalila é voz mais que solitária em sua geração; voz condenada, diga-se de passagem, a uma feliz solidão. A sua erudição e a sua, se assim posso chamar, desenvoltura rítmica a mantém isolada dos grupos mais recentes. Neles, a artificialidade, o excessivo das paráfrases e das colagens, que nos últimos anos têm tornado a poesia um exercício cansativo e repetitivo, sem força e sem rumo, fizeram de nossa paisagem poética um campo desolado. Foi exatamente a publicação de Setenta, que reverte esse quadro. Com esse livro recuperamos o ânimo de celebração, atualmente tão pouco presente em nossa poesia, e que só era mantido pelo vasto grupo que estreara nos anos 50 e 60, contrário a todos os ismos do período (sem contar com alguns remanescentes desse mesmo grupo, já nos anos 70 e 80, poetas ainda à espera de uma reavaliação à altura de sua importância), Dalila, talvez seja o nome que mais se destaque na geração que tem hoje de 60 a 70 anos de idade.
            Com ela, estamos de volta à terra magnética da poesia, da poesia genuína e eterna. Seu espírito, claro, é totalmente avesso ao neoparnasianismo disfarçado de neossimbolismo que é moeda vigente entre os novos, má prosa disposta em versos, ou das degenerescências pós-concretistas ou pós-cabralinas que assolam um vasto segmento da poesia contemporânea. Há exceções aí, mas são raríssimas.
            Para a poeta crivada de sons, rostos, imagens, aromas e paladares, a palavra é carnal, é volúpia do verbo, é encontro e pulsação. A palavra a serviço da poesia, uma poesia que raia o mediúnico, onde Dalila é a pastora da iluminação do verbo. A sua inteligência, a sua erudição e o seu fascínio pelo que há de humano na história do homem a aproximam da verdade das coisas mais simples. São atributos que em poeta de baixa voltagem fatalmente serviriam apenas de adorno. Sobretudo porque a simplicidade, em poesia e em tudo o mais, é trunfo só dos grandes.


III

Solitária garça
mergulha no rio
solitário homem
atira a tarrafa
fatalistas, bem sabem ambos
da incerteza do gesto

( Página 69 )

8 de março

Deram-lhe um dia
apenas um dia
(devem-lhe séculos)

 Na tentativa de remissão
as flores constrangidas
(homenagem tardia)

 ( Página 54 )

 Mater dolorosa
  
ventre crescido de miséria
murcho ventre – lembrança
sexo destituído de prazer
ventre inflado de ausências
ventre que não mais protege
ventre que não mais alimenta
sua própria matéria
  
( Página 67 )


As faxineiras do edifício

Surpreendentemente
(não obstante, os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus,
os oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as
quatrocentas e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à
espera de variação, transporte e limpeza)
cantam...

( Página 38)

 Elemento em fúria

 Ao pé das antigas tabuletas
grafitadas de sangue e esperma
foi desatrelada a canga
- campo de palha e fel

campesina
despiu as presunções
sobraçou as certezas
deter
minou
  
indignar-se
riscar o fósforo
centelha restauradora
- campo de figos e mel.

 ( Página 57 )

 Vias oblíquas

 “Porque parte tudo um dia
O que nos lábios ardia
até não sermos ninguém”

Paixões Diagonais, Miguel Ramos / João Monge


depois que a mulher voejou
levando consigo a
claridade dos cômodos e
décadas coabitadas, o
marido, no escuro
ensimesmado
deixou o cabelo crescer, o
mato tomar conta dos
canteiros o
pó cobrir móveis e assoalhos


sete luas após a mulher
levar consigo a sonoridade
da alcova, o marido
às claras e resoluto
reagiu
engaiolou dez pássaros e
registrou em cartório o
certificado de propriedade
dos novos moradores com
direito a concertos privados
  
( Página 37 )

Abismos

“Dizem as velhas da praia que não voltas
São loucas!
São loucas!”
      Barco Negro, David Mourão-Ferreira / Caco Velho / Piratini

diante de seus medos
um homem
com toda a fragilidade
de um homem
  
(na esquina do viver onde
a luz encontra as trevas e
prenuncia tormentas)

 um homem
que se recusa
assistir ao embarque
protagonizar a despedida

em desespero, agarrado
ao cordão, em vias de
um homem e seus abismos
incontornáveis

 ( Página 30 )
  
Bordadeira

É de risco esse teu ofício
urdindo pontos e riso
a conversa andando à roda
e os planos traçados no bastidor

Florista do tecido
enfias sonhos na agulha
traças linhas no destino
fatal e premeditado fiar
A vida! Será ela em ponto cheio?
ou pespontada de sombras e granitos?

 ( Página 60 )

SETENTA
anos, poemas, leitores
Dalila Teles Veras
Poesia Brasileira
Alpharrabio Edições
112 Páginas
Santo André – São Paulo

2016