Em novembro último, estive no Funchal, minha cidade natal, na Ilha da Madeira. Desta feita, foi uma temporada literária, sem deixar, entretanto, de ser igualmente afetiva, da qual voltarei a dar notícias.
A convite do CEHA - Centro de Estudos de História do Atlântico, participei do Colóquio Mobilidades Madeirenses - em 2016 dedicado ao Brasil, sob tema "As Mobilidades no Espaço e no Tempo". Com muito atraso, é verdade, deixo aqui a versão condensada do meu depoimento (a que li durante o Colóquio). A versão integral, que constará dos anais do Encontro, poderá ser lida no meu site www.dalila.telesveras.nom.br
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imagem: luzia maninha |
EMIGRAÇÃO, MEMÓRIA E AS TAREFAS DA POESIA
Antes de tudo, minha palavra de agradecimento ao dr.
Alberto Vieira pelo honroso convite que fez com que esta poeta atravessasse o Atlântico
para pisar e celebrar, uma vez mais, sua terra natal. Um honra e uma alegria
estar aqui.
Sou filha de um lavrador, neta de um tanoeiro,
bisneta de um ferreiro, ofícios nobres imortalizados na toponímia do Funchal.
nomear é jamais
apagar
na toponímia do funchal
a história
(da cidade, dos meus, a minha)
na pedra grafada
branco sobre negro
as placas contam
(vozes de cinco séculos)
o que ali se passou
os que ali habitaram
o que por ali se fez
na rua dos tanoeiros
leio homenagem oculta
ao anônimo artífice de barris
meu avô
que ali trabalhou e, morto
não foi apagado, vive
à vista dos passantes
branco sobre negro
a lembrar
Minha mãe, a mãe e a avó
de minha mãe eram costureiras, mas todas sabiam igualmente bordar, habilidades
inerentes às mulheres madeirenses.
BORDADEIRA
É de risco esse teu ofício
urdindo pontos e riso
a conversa andando à roda
e os planos traçados no bastido.
Florista do tecido
enfias sonhos na agulha
traças linhas no destino
fatal e premeditado fiar.
A vida? Será ela em ponto cheio? / ou pespontada de
sombras e granitos?
Meu ofício é a palavra. Gosto que me chamem de poeta e os
poemas que acabo de ler são de minha autoria. De minhas memórias também faço
poesia e crônica e diário e... Tudo é palavra. Este poema fala disso:
rizoma
a infância e a memória
da infância, submersa
na líquida travessia
vez por outra
o atlântico deposita
ossos datados
nas terras do exílio
(a menina antiga
recebe os sinais
códigos esquecidos
legendas para o lembrar
- revivências)
a memória da infância
é a memória possível
(e só à poesia cabe recriar).
O pai de meu pai, o avô de meu pai, o bisavô de meu pai
eram homens do campo. Arco da Calheta é seu lugar. Ali pegaram de galho e ali
permaneceram.
SAGA
Ao pé dos semi-circulares montes
logo abaixo da Lombada
onde António por Isabel enlouqueceu
nasceu meu pai
o pai de meu pai
o pai do pai do meu pai.
Cavaram a terra, regaram-na
estacaram a vinha e os cachos de banana
colheram filhos e respeito
- a palavra por um fio de bigode.
Não bastou ao filho do meu avô
a placidez das regas
o banhar-se em oceânicas águas
o mergulho à busca de lapas e caramujos
atravessou-as – eterna busca
apelo nômade de árabe
ilhoa inquietação.
A América o engoliu
em seus múltiplos caminhos
devoradores de sonhos.
E a filha do filho do meu avô
tenta reconstituir a saga
e o sonho do regresso.
Após esta introdução, como se
viu, com licenças poéticas, tentarei cumprir a orientação do honroso convite,
ou seja, contar sobre a História da emigração de minha família e da minha afirmação
no Brasil, país onde resido desde 1957. Uma autobiografia e, desde já,
peço-lhes a devida paciência e compreensão. Este testemunho, sublinho, não
obedecerá a nenhum rigor cronológico. Antes, Seguirá o fluxo das lembranças que
ora recuam, ora avançam no tempo que, diga-se, jamais é linear.
Os poemas são pausa
poética/ilustrativa, já que minhas memórias, transfiguradas e recriadas, foram objeto
de partida para muitos poemas, em especial nos livros “Madeira: do vinho à
saudade”; “estranhas formas de vida” e, o mais recente, “solidões da memória”,
uma espécie de “trilogia das raízes”. Também porque a poesia é a forma em que
melhor me expresso.
Pois bem... Dalila Isabel
Agrela foi o nome que me deram ao nascer, aqui mesmo, no Funchal, em Santa
Maria Maior, onde vivi até os 11 anos, quando embarquei com meus pais e irmãos
para o Brasil. Agrela vem do Arco da Calheta, onde nasceu meu pai. Faltou o
Olival materno que o machismo da época, inconsciente, acredito, assim como também
perdoo, não permitiu incorporar. Vem lá da Freguesia de Santa Cruz onde nasceu
o meu avô, pai de minha mãe. A estes, por amor, incluí o Teles Veras brasileiro,
que também possui origem remota lusitana e que uso como sobrenome literário.
Meu pai, Manuel de Jesus
Agrela, filho de pequenos proprietários rurais, nasceu no Arco da Calheta onde
residiu e trabalhou no campo com seus pais até os 21 anos de idade, quando de
lá saiu para servir o Exército, em 1941. Após o cumprimento do período
obrigatório do serviço militar, cumprido em boa parte nos Açores, durante a II
Guerra Mundial, retornou à Madeira em 1945. Homem de poucas letras, enfrenta,
como é de se imaginar, toda sorte de dificuldades para seu sustento. Não queria
voltar para o campo, onde seus pais viviam, pois apaixonara-se por minha mãe,
Maria de Lourdes, uma menina nascida e residente no Funchal e era aqui que
desejava também residir. Teimoso, decidiu ficar e empregou-se no comércio como
empregado de mesa (no já extinto Café Riviera, na Av. Arriaga e no Café Apolo,
ainda hoje em funcionamento. Em julho de 1946, nascia eu, sua primeira filha, concebida
antes mesmo do casamento, decorrido em abril daquele ano, pecado inconfessável,
a ser escondido a sete chaves durante décadas. Quinze meses depois de meu
nascimento, ou seja, em setembro de 1947, nascia meu irmão, José Manuel.
A Europa devastada daquele
período pós-guerra não oferecia, como sabemos, qualquer perspectiva para os
menos favorecidos. A esperança, para alguns, estava no novo mundo. Em fins de
1949, à busca das acenadas oportunidades de trabalho, meu pai decide embarcar
para a Venezuela, onde já estavam estabelecidos irmãos, cunhados e primos.
Deixou minha mãe grávida do terceiro filho (minha irmã, Maria Floripes) e
partiu, com o dinheiro da passagem emprestado por um irmão e a garantia de um
teto, ou melhor, um catre nos fundos do estabelecimento comercial onde foi
trabalhar.
Lá ficou por quase cinco anos,
quando, com algum dinheiro amealhado e já proprietário de um pequeno comércio
em Caracas, retorna à Madeira, adquirindo uma casa no Funchal. Volta logo a
seguir à Venezuela, novamente sozinho, onde permanece por mais um ano, com a
finalidade de juntar mais alguma coisa. Adquire um pequeno comércio no Funchal.
Aparentemente, a vida,
finalmente, corria serena, mas nele volta a instalar-se algum tipo de vírus
insular que impele o ilhéu para além do líquido horizonte e... A ilusória
placidez pouco dura. Em 1957 meu pai
pede a um primo residente em São Paulo, uma “carta de chamada” para emigrar
para o Brasil. Vende a casa e todos os pertences e, mesmo sob os protestos de
minha mãe, embarca no paquete “Santa Maria” com destino ao Brasil (Santos),
levando desta feita, a mulher e os três filhos. Era novembro e nos dezembros do
resto de suas vidas, não voltariam a ver o fogo da passagem do ano no Funchal.
Para a criança, tudo, no
entanto, era novidade e expectativa do novo, inclusive, toda aquela azáfama da embalagem dos
pertences considerados essenciais, (uma máquina de costura, alguma louça, uma
espiriteira a álcool para cozinhar, algumas roupas de cama e mesa, roupas
pessoais) e, agora sei, uma história de vida deixada para trás.
Embarcamos e a partir daí, a
ruptura e o inevitável apagamento de toda uma história, esta, da qual agora
lembro e relato.
Constituem viva lembrança
minhas férias de verão passadas na casa dos meus avós paternos, no Arco da
Calheta, onde chegava após a “longa” viagem de “horário” ou de barco, o Gavião,
se bem me lembro, a de minha preferência. Minha mãe não se adaptava aos
costumes do campo, mas a menina batia o pé que queria e queria e... lá ía eu,
sozinha. Minha mãe entregava-me a um passageiro qualquer que lhe parecesse confiável, pedindo-lhe que
fizesse o favor de olhar a menina até a Calheta, onde uma das tias a
aguardaria.
Dos cheiros do verão, tenho
presente o dos figos, das ameixas, das uvas, dos tabaibos, das anonas, mas
nenhum deles supera o do pão a assar no forno da chamada loja, cômodo no rés do
chão da casa assobradada, que servia de cozinha e dispensa. As tardes longas ao
lado das tias em roda a bordar e bilhardar. Sim, na ausência de grandes
acontecimentos, bilhardar em período de trabalho, era a fuga necessária à
mesmice dos dias. Além das crianças e do meu avó paterno, já velho, sempre
silencioso e que jamais saiu do lugar, não me recordo da presença de outros
homens ali. Esse avô, Manuel como meu pai, além de trabalhar em sua própria
terra, também trabalhou a vida toda no alambique do Engenho do Arco da Calheta.
Do campo, guardo também os
sons das levadas e a rega da fazenda, por vezes na madrugada. A festa do Loreto
e a participação, como mascote dançante do Grupo Folclórico da Calheta fazia
parte das minhas atividades de férias. Sempre quis e sonhei dançar, mas,
adulta, desaprendi. Com exceção da obrigatoriedade da reza coletiva do terço
antes de dormir, suprema tortura, ali havia a liberdade que a cidade negava à
criança.
Do Funchal, dentre outras,
está bem fixada na janela da minha memória, a escola Visconde Cacongo, no Bom
Sucesso. Talvez para amenizar o medo imposto pela obediência e rígida
disciplina ou, quem sabe, cometer um imperceptível ato de rebeldia pela poesia,
candidatava-me a recitar Augusto Gil nas comemorações cívicas (“Batem leve,
levemente, / como quem chama por mim... / Será chuva? Será gente? / Gente não é certamente / E a
chuva não bate assim...”). De nada adiantou a demonstração da veia poética da
apaixonada declamadora mirim. Quando menos esperava, a implacável prof. Laurinda
de Albuquerque, ergue a palmatória e aplica meia dúzia de bolos em cada uma das
frágeis mãos da menina, mágoa jamais superada. O episódio foi recriado neste
poema:
Fragmento
A palmatória crescia, crescia...
o pânico dos meus olhos assustados
o ódio por detrás dos óculos
e do rosto afogueada da professora
Dinastia Filipina? Dinastia Filipina?
A palmatória a crescer... a crescer...
eu tinha apenas 10 anos
e tentava compreender
que relação poderia haver
entre invasão espanhola
e aqueles vergões vermelhos
em alto relevo desenhados
nas palmas de minhas mãos.
A austeridade daqueles tempos
era quebrada com raros passeios, incluindo aí algumas romarias. Não havia
brinquedos, além de uma ou outra boneca de pano feita pela mãe. Inventava-se e
tudo servia, como bichinhos feitos com semilhas e palitos, o jogo de pedrinhas.
Gostava de fabricar joeiras com meu irmão e soltá-las em dia de vento. A
primeira e única boneca, comprou-a meu pai nas Canárias, onde o barco que o
trouxe da Venezuela fez escala. Um verdadeiro prodígio, estrondoso sucesso na
vizinhança, que também virou poema.
Voltemos para a nova terra, a
nova vida, através deste poema:
chegada
onze foram os dias
enjoo, sarna e
tédio
terceira classe
paquete santa maria
da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais
aos emigrantes, o
delimitado espaço
do porto, aos turistas
a cidade
(entre)vista
do cais
(aos que vinham
para o trabalho
ver o trabalho
era o limite)
via-se
:
corpos gingantes, a estiva
torsos negros azuis suados
e o cheiro despudorado
do abacaxi a anular o resto
(o brasil tinha
cheiro
e era de ananás)
Ainda que a língua fosse a
mesma, o choque cultural foi inevitável. Para além da diferença abissal da
paisagem e da cultura, o constrangimento de cinco pessoas diante da nova
situação, ou seja, o abrigo provisório num cômodo da casa de um primo. Depois,
dois quartos alugados num porão úmido, até que a pequena casa fosse construída.
Decorrido um ano, ainda sem
trabalho estável, pois a tal “carta de chamada”, uma espécie de contrato
exigido pelo governo brasileiro para entrada legal de emigrantes no país era,
naturalmente, regida por algumas regras. Uma delas era a exigência do trabalho “no
campo”, detalhe que meu pai, na ansiedade da partida, não havia percebido
antes. Assim, a ele não era permitido que se estabelecesse como comerciante na
cidade, conforme era seu intento.
Uma vez mais, a recusa em ir
para o campo, muito lhe custou. O dinheiro auferido na venda do pequeno
patrimônio na Madeira fora gasto com passagens, construção da casa própria, além
dos gastos com os chamados “despachantes” que cobravam altas taxas dos
emigrantes para legalizar sua situação na cidade. Finalmente, documentos em
mãos vazias de dinheiro, meu pai novamente é obrigado a vender a casa, morar de
aluguel para, com o valor da venda, adquirir um pequeno comércio onde trabalhou
por mais de duas décadas até sua aposentadoria.
Minha mãe, peça chave dessa
saga, ainda que permanentemente lamentasse o que considerava uma decisão
desastrada de meu pai, ou seja, a emigração para o Brasil, enfrentou, sempre com
muita coragem, as mais dramáticas situações. Novamente, a contragosto, deixou o
trabalho da costura para ajudar meu pai no que aqui (e lá também), chamava-se
de “venda”. Jamais tiveram empregados. Com sua fluência em leitura e rapidez
nos cálculos, era ela quem cuidava da contabilidade, da compra de mercadorias,
do financiamento bancário e ajudava nas vendas, além de exercer a dupla jornada
de trabalho destinada às mulheres, ou seja, cuidar da casa, da alimentação e
dos filhos, assim como mandava/manda o patriarcado.
E lá íamos, aclimatando-nos
aos trópicos. Alvos de curiosidade, eu e meus irmãos, em poucos meses,
falávamos já como brasileiros. O receio de “ser diferente” e o desejo infantil
de nos “igualarmos”, inclusive para não sofrer o preconceito que, sim, existia
e existe. Menos agora do que antes, é bem verdade. O português era visto como
um ser pouco dotado de inteligência e alvo de muitas piadas.
As dificuldades iniciais, à
medida que os mais jovens abriam caminho para a família adentrar aos hábitos e costumes
da nova terra, foram superadas.
Uma curiosidade: minha mãe gostava
de fazer e de recitar trovas populares. Tinha por hábito criar uma trova para
cada ocasião festiva. Certa feita, na tentativa de ajudá-la a superar uma
depressão, pedi que anotasse aquelas que sabia de cor. Em pouco tempo, havia
anotado mais de 150 trovas que organizei e publiquei num livreto, sob o título “trovas
populares madeirenses”. Gostava muito de ler e também citava provérbios. Muitos
deles, eu, meus irmãos e minhas filhas, recordamos até hoje.
Do lado paterno, 6 dos 8
irmãos, aí incluído meu pai, emigraram para o Brasil. Todos para São Paulo.
Minha avó, já viúva e com mais de 80 anos, também foi para o Brasil, juntar-se
aos filhos e lá morreu, já perto dos 90 anos. Os descendentes desses tios somam
hoje mais de uma centena de pessoas. Todos se conhecem e se relacionam. Como
era de hábito no Arco da Calheta, ainda os chamamos por “fulano” de “fulano”,
ou seja, o José da Conceição, a Maria do Antonio, etc. Os outros três irmãos
ficaram no Arco da Calheta onde, hoje, ainda vive boa parte de seus
descendentes.
Minha mãe, na última década de
sua vida, enfrentou uma doença cardíaca grave que a levaria à morte aos 77
anos. Meu pai, quatro anos mais velho, a ela sobreviveu, vindo a falecer poucos
meses antes de completar 90 anos. Sempre gozou de excelente saúde e disposição.
Ambos retornaram à Madeira, por apenas duas vezes, já em idade avançada.
Aos 16 anos, tendo concluído
um curso prático de “Secretariado”, outro de datilografia e cursando a língua
inglesa, fui trabalhar num pequeno escritório no centro da cidade de São Paulo.
Dali, para a Federação das Indústrias de São Paulo e, três anos após, para o
escritório de uma indústria metalúrgica na então efervescente cidade de São
Bernardo do Campo, região metropolitana de SP. No início dos anos 60, a
Indústria Automobilística encontrava-se em acelerado desenvolvimento. Era um
tempo de pleno emprego. Quem possuísse bons conhecimentos de língua portuguesa,
estenografia, datilografia, e, no caso de empresa estrangeira, conhecimento
razoável da língua inglesa, recebia, como foi o meu caso, excelente salário.
Tive uma carreira profissional exitosa, chegando a secretária executiva de
Diretoria numa empresa multinacional.
Em abril de 1971, 25 anos
incompletos, empreendo uma viagem de retorno à terra natal, sozinha, refazendo,
pelo ar, o trajeto que, menina, fizera por mar, 14 anos antes. Durante esse
período, a comunicação com os parentes que aqui ficaram, foi mantida de forma
intensa. Nessa primeira visita, encontrei vivos, meu avô materno e seus dois
filhos, meus tios Alice e João Elmano, que residam no Funchal. No Arco da
Calheta, dois tios, João e Gabriela, e seus descendentes, todos, tios e primos,
com suas respectivas proles, que sempre me acolheram com afeto e viva simpatia.
Durante aqueles primeiros 14
anos de ausência da pátria primeira, e por muitos outros, até a chegada da
comunicação virtual, as cartas, manuscritas, com aqueles adoráveis envelopes
adornados com bandeiras coloridas, cruzavam o Atlântico. Falavam do cotidiano, da saúde, do emprego, da
situação financeira, dos que emigraram e retornaram, dos que não mais
retornaram, enfim. Guardo uma boa quantidade delas comigo e noto que havia
sempre muitas queixas. Pouco se falava de alegrias. Fotos, antes do advento da
fotografia digital eram mais raras, mas, vez ou outra, eram trocadas. Assim, de
carta a carta, de telefonema a telefonema, de abraço a abraço, fomos mantendo
os laços e os afetos.
A minha chegada à Madeira
naquele já distante ano de 1971 foi recebida com muita surpresa e curiosidade.
Fui uma das primeiras da família a retornar. Disse-me um primo, aqui há uns poucos anos,
que o Arco da Calheta ficou em polvorosa quando pela primeira vez ali chegou
uma mulher (eu), a conduzir um automóvel.
Em 1972, aos 26 anos, casei-me
com o então recém-formado advogado Valdecirio Teles Veras, que viera do Piauí,
seu estado natal, no Nordeste, estudar em SP onde se radicou. Hoje, é cidadão
português, por direitos legalmente adquiridos e afinidades eletivas. É meu
companheiro eterno de incontáveis viagens e meu incentivador em todos os
quesitos da existência. Como é tradição, hoje também aqui presente, ao lado de
sua irmã mais nova, Luzia, que tenho na conta de filha e que pela primeira vez
visita a Madeira. Temos 3 filhas, Carolina, Isabela e Alice, e quatro netos,
Filipe, André, Murilo e Iara. Todas as filhas com formação universitária e
carreiras consolidadas.
A ausência de formação superior
formal não me impediu a busca por conhecimento que sempre foi o meu objetivo.
Não só o conhecimento instrumental, destinado ao trabalho, mas o referente às
humanidades, sempre foi e é alvo de minha curiosidade e interesse. Nessa
empreitada, tive no hábito da leitura, meu maior aliado. Sou feita, portanto,
do que li. Desde muito cedo descobri
minha vocação para as letras. Colaborei em publicações literárias. Assinei
coluna em um jornal diário por vários anos. Publiquei meu primeiro livro aos 36
anos. Sou autora de mais de duas dezenas de livros, nos gêneros poesia, ensaio,
crônica e diário literário. Dedico-me também há mais de três décadas ao
ativismo e à promoção cultural. Por essa minha atuação pública, em 2004, a
Câmara Municipal de minha cidade outorgou-me o título de cidadã honorária. Há 4
anos integro, a convite, o Comitê de Extensão Universitária da Universidade
Federal do ABC, assim como integrei em outras ocasiões comitês e comissões em
outras universidades.
Após 45 anos de
residência no Brasil, optei por requerer a chamada dupla cidadania. Vários
motivos levaram-me a tomar tal decisão: havia já componentes de “brasilidade”
que incluía minha participação ativa e “militante” na vida cultural e política
de minha cidade e região. A burocracia oficial fazia questão
de me lembrar da condição de estrangeira, ou seja, a renovação periódica do meu documento
brasileiro de identidade. As longas e demoradas filas dos guichês reservados
aos “estrangeiros” nos aeroportos brasileiros. "Estrangeiro aqui como em
toda a parte", habitante de "pátria incerta" lembrava-me o nosso
Poeta. Nem de lá, nem de cá e, neste
caso, a língua me servia apenas de teto, faltava-me verdadeiramente uma pátria,
na qual pudesse exercer efetivamente minha cidadania.
Após
um ano de certidões e burocracias consulares, finalmente obtenho, em 2002, o
“certificado de igualdade e de outorga do gozo de direitos políticos”, sem abrir
mão da minha naturalidade portuguesa. Ato contínuo, cuidei de tirar o meu
“título de eleitor” para, enfim, exercer minha cidadania (quase) plena. Para
minha decepção, sou informada de que a obtenção da dupla cidadania não me
concedia o direito a um passaporte brasileiro. Portugal concede passaporte
português aos brasileiros que a requerem e o Brasil não faz o mesmo em relação
aos portugueses. A contrapartida da “dupla cidadania” não é verdadeira. Jamais
me conformei com isso. Munida de meu passaporte português, do qual, diga-se,
muito me orgulho, passei a me dirigir apenas às filas destinadas a brasileiros
nos aeroportos do Brasil e, ainda com alguns problemas, jamais fui barrada.
Finalmente, há muito pouco tempo decidiram que os cidadãos com dupla cidadania
entrariam no Brasil pela porta da frente.
A propósito desta minha
pequena história que é a de tantos, e já encerrando, gostaria de lembrar que
vivemos tempos difíceis e violentos, absurdos tempos de intolerâncias e
xenofobias planetárias. . Em regime de urgência, precisamos aprender a conviver
com alteridades, exercer a fraternidade com os que vieram de longe por
contingências as mais diversas e, muitas vezes, dramáticas. Os portugueses, e
os madeirenses em particular, por essa incalculável diáspora pelo mundo, mais
do que ninguém e mais do que nunca, precisam acolher aqueles que aqui chegam à
busca das mesmas oportunidades que os seus antepassados igualmente foram buscar
em outros tempos e lugares.
Encerro com este poema, que,
sinteticamente, talvez diga mais de mim do que todo este longo e maçante
depoimento. O poema faz parte do meu livro “solidões da memória”, recentemente
publicado no Brasil, inteiramente composto por poemas que evocam minha infância
na Madeira, falam também da ruptura da travessia e do olhar crítico no retorno
à ilha. Em síntese, aquilo que aqui evoquei.
Confidência da
madeirense
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste,
orgulhoso: de ferro.
Carlos Drummond de
Andrade, o maior poeta brasileira do séc.XX,
bisneto de madeirenses
alguns anos vivi na madeira
principalmente nasci na madeira
por isso sou melancólica, teimosa: urze
de nascença, em luta frente às intempéries
(do solo, do vento e das vagas marítimas)
alma em permanente desassossegar
da madeira nada de material veio comigo
e não há nada que eu possa ofertar
mas da madeira vem este ar atrevido
a língua maldicente e áspera
e o hábito de tudo reclamar
atavismos que a consciência, por vezes
rejeita
a madeira não é apenas fotografias
é a memória real dos precipícios
e das vertigens
encordoamento
do que não
parecia lembrado
mas é
a memória do que não foi
mas poderia
e sequer dói
Obrigada
Funchal 10.11.2016
dalila teles veras