quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Apresentação do livro “solidões da memória” no Funchal


As trocas com a sempre gentil e disposta poeta, produtora artística e militante cultural Maria Fernandes existiam já há um bom tempo. Como responsável pela revista virtual A.Poética, propôs e, claro, pronta e vivamente aceitei, uma apresentação do meu livro solidões da memória na minha cidade natal, o Funchal, onde vivi até os 11 anos de idade.

O livro, que tem por tema a memória de minha infância, não poderia encontrar lugar mais propício para sua apresentação. A memória que retorna, em suporte de papel e poesia, ao local de sua gênese.
Foi assim que o evento aconteceu, no âmbito do belo e meritório projeto A.Poética, no dia 12 de novembro de 2016, na galeria Porta33, um lugar simplesmente espetacular.


Maria Fernandes, em nome da A.Poética

Maria cuidou de tudo, desde a busca do local para a apresentação e, nisso, foi muito feliz, dado que a Porta33, espaço ímpar, há 25 anos  é lugar de arte e de encontros, graças à paixão com que o casal Cecília Vieira de Freitas e Maurício P. Reis o conduz e que prontamente aceitou, sem quaisquer ônus, ceder suas instalações para o evento.


Maurício Reis, o anfitrião, abrindo o evento

Cecília Vieira de Freitas, a anfitriã, e a celebração com Madeira

Maria também cuidou do convite a três mulheres sensacionais que muito me honraram em apresentar o livro, cada uma à sua maneira e todas em altíssimo grau de competência intelectual e literária :   ; Irene Lucília Andrade, professora, compositora e escritora, autora de vastíssima e reconhecida obra literária). 


Ana Salgueiro, docente e pesquisadora na Universidade da Madeira

O mergulho crítico no "rizoma", a análise literária e honrosa da Dra. Ana 
Irene Lucília Andrade: Apontamentos poéticos de poeta para poeta


Teresa Jardim, poeta, professora e artista plástica: atentas anotações "plásticas/poéticas" 


e após os três surpreendentes estudos de sua obra, só restou à poeta poucas palavras (o essencial havia sido dito) e a leitura de um poema






Tudo isso, mais o comparecimento de um expressivo e, para mim, inesperado público, transformou aquela apresentação, em tarde ensolarada de Outono quase inverno, num memorável encontro.

E vieram os autógrafos



  





E as conversas e as trocas

e os afagos

e os abraços que foram muitos mas nem todos registrados

e a eternização da antiga e nova amizade, ambas tão importantes
E faltou registrar, graças também ao trabalho de divulgação da valorosa Maria Fernandes), a excelente repercussão na mídia local (jornais impressos, rádio e TV).

entrevista à RTP

Bem hajam todos!
O registro destas imagens devo à Luzia Maninha, a quem muito agradeço por isto e, ela sabe, muito mais. (dtv)






Breve depoimento, em forma de homenagem à Sra. Maria Letícia Rocco Casa


            Breve depoimento, em forma de homenagem à Sra. Marisa Letícia

            Vim para o ABC em 1967, trabalhar no setor administrativo de uma indústria multinacional de auto-peças, em São Bernardo do Campo. Ali, encontrei a possibilidade de ouvir (e, sobretudo, analisar) simultaneamente os discursos dos chamados “capitães da indústria”, meus patrões e os dos “Peões do ABC”, os que trabalhavam no chão da fábrica. Entre ambos, eu, menina analfabeta política ou politicamente equivocada que, por força do (bom) salário, tinha por obrigação “vestir a camisa” da empresa, valendo-me de um discurso que, obviamente, não era o meu. 
            Na virada dos anos 70 para os 80, O ABC demonstra uma grande capacidade de mobilização popular. A luta nas ruas estende-se também para os movimentos grevistas da indústria metalúrgica, alcançando conquistas de direitos trabalhistas de há muito sonhados que viria culminar na conquista da redemocratização brasileira em 1985.
            Aquela agudíssima consciência dos peões do ABC que lotavam o estádio da Vila Euclides, carregando seu líder nos ombros, despertou a minha consciência social, consciência política, de classes.
            É preciso sublinhar o importante papel das mulheres em todo esse período, em especial nas longas, exaustivas e desgastantes greves. Mulheres, que foram à luta em pé de igualdade com os homens, mulheres que lutaram por creches e outros direitos, mulheres que, juntas, e em seus múltiplos e estratégicos papéis, sustentaram de forma decisiva a manutenção das greves, tanto na resistência quanto na retaguarda das lutas.  Mulheres que a história tentou silenciar, mas não conseguiu e que estão recontando sua história nos últimos anos, através de pesquisas, depoimentos, livros, Congressos, Encontros e Seminários.
            Ainda assim, há todo um caminho por trilhar no sentido de resgatar o papel histórico da mulher. Lembro do meu querido e saudoso amigo Antonio Possidonio Sampaio (ao lado do meu marido Valdecirio, meus mestres nessa matéria de lutas e conscientização) que me dizia que era precisa incentivar o estudo da história dessas mulheres.
            A Sra. Marisa Letícia Lula da Silva, nascida Marisa Letícia Rocco Casa, de família de imigrantes italianos que veio para São Bernardo do Campo, SP, e deu nome ao bairro onde ela nasceu, “Bairro dos Casa”, foi uma dessas mulheres. É preciso sublinhar aqui que Marisa não foi uma mera dona de casa (ainda que o fosse também e com todo o respeito às donas de casa), mas uma militante política e sindical. Inesquecível a Marcha pela libertação dos sindicalistas, organizada por ela em SBC. Milhares de mulheres caminhavam ao lado de tanques, cavalaria, soldados fortemente armados. A praça da Matriz em SBC, transformada em verdadeiro campo de guerra. Por cima, helicópteros vigiavam seus passos. Não se intimidaram, seguiram.
              Casada com um líder inconteste, de projeção internacional, que chegou à Presidência da República e foi reeleito com uma então popularidade jamais vista por aqui, a Sra. Marisa Letícia tinha que ficar (ou foi obrigada a ficar), por conta do papel histórico que a prática da política e do poder sempre reservaram às mulheres, ou seja, na sombra. Ainda que na sombra (será?), foi força, conselho, esteio e jamais se prestou a nenhum papel decorativo. Foi o que foi, uma mulher digna e forte. Neste breve depoimento público, deixo a ela minha sincera e sentida homenagem. 
                        Nestes tempos, novamente tristes e sombrios, mas sem a mesma capacidade de luta e muito menos de consciência política e social, vejo, com grande pesar, as odiosas, machistas e misóginas manifestações que achei não tivessem mais lugar em plena segunda década do Século XXI. E fico triste de não ter jeito.



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Emigração, Memória e as Tarefas da Poesia - Dalila Teles Veras, no CEHA

Em novembro último, estive no Funchal, minha cidade natal, na Ilha da Madeira. Desta feita, foi uma temporada literária, sem deixar, entretanto, de ser igualmente afetiva, da qual voltarei a dar notícias.

A convite do CEHA - Centro de Estudos de História do Atlântico, participei do Colóquio  Mobilidades Madeirenses - em 2016 dedicado ao Brasil, sob tema "As Mobilidades no Espaço e no Tempo". Com muito atraso, é verdade, deixo aqui a versão condensada do meu depoimento (a que li durante o Colóquio). A versão integral, que constará dos anais do Encontro, poderá ser lida no meu site www.dalila.telesveras.nom.br

imagem: luzia maninha


EMIGRAÇÃO, MEMÓRIA E AS TAREFAS DA POESIA 

Antes de tudo, minha palavra de agradecimento ao dr. Alberto Vieira pelo honroso convite que fez com que esta poeta atravessasse o Atlântico para pisar e celebrar, uma vez mais, sua terra natal. Um honra e uma alegria estar aqui.

Sou filha de um lavrador, neta de um tanoeiro, bisneta de um ferreiro, ofícios nobres imortalizados na toponímia do Funchal.

nomear é jamais apagar
      
na toponímia do funchal
a história
(da cidade, dos meus, a minha)
na pedra grafada 

branco sobre negro
as placas contam
(vozes de cinco séculos)
o que ali se passou
os que ali habitaram
o que por ali se fez

na rua dos tanoeiros
leio homenagem oculta
ao anônimo artífice de barris
meu avô
que ali trabalhou e, morto
não foi apagado, vive
à vista dos passantes
branco sobre negro
a lembrar

Minha mãe, a mãe e a avó de minha mãe eram costureiras, mas todas sabiam igualmente bordar, habilidades inerentes às mulheres madeirenses. 

BORDADEIRA

É de risco esse teu ofício
urdindo pontos e riso
a conversa andando à roda
e os planos traçados no bastido.

Florista do tecido
enfias sonhos na agulha
traças linhas no destino
fatal e premeditado fiar.

A vida? Será ela em ponto cheio? / ou pespontada de sombras e granitos?
Meu ofício é a palavra. Gosto que me chamem de poeta e os poemas que acabo de ler são de minha autoria. De minhas memórias também faço poesia e crônica e diário e... Tudo é palavra. Este poema fala disso:

rizoma
    
a infância e a memória 
da infância, submersa
na líquida travessia

vez por outra
o atlântico deposita
ossos datados
nas terras do exílio

(a menina antiga
recebe os sinais
códigos esquecidos
legendas para o lembrar
- revivências)

a memória da infância
é a memória possível
(e só à poesia cabe recriar).

O pai de meu pai, o avô de meu pai, o bisavô de meu pai eram homens do campo. Arco da Calheta é seu lugar. Ali pegaram de galho e ali permaneceram.

SAGA

Ao pé dos semi-circulares montes
logo abaixo da Lombada
onde António por Isabel enlouqueceu
nasceu meu pai
o pai de meu pai
o pai do pai do meu pai.
Cavaram a terra, regaram-na
estacaram a vinha e os cachos de banana
colheram filhos e respeito
- a palavra por um fio de bigode.
Não bastou ao filho do meu avô
a placidez das regas
o banhar-se em oceânicas águas
o mergulho à busca de lapas e caramujos
atravessou-as – eterna busca
apelo nômade de árabe
ilhoa inquietação.
A América o engoliu
em seus múltiplos caminhos
devoradores de sonhos.
E a filha do filho do meu avô
tenta reconstituir a saga
e o sonho do regresso.

Após esta introdução, como se viu, com licenças poéticas, tentarei cumprir a orientação do honroso convite, ou seja, contar sobre a História da emigração de minha família e da minha afirmação no Brasil, país onde resido desde 1957. Uma autobiografia e, desde já, peço-lhes a devida paciência e compreensão. Este testemunho, sublinho, não obedecerá a nenhum rigor cronológico. Antes, Seguirá o fluxo das lembranças que ora recuam, ora avançam no tempo que, diga-se, jamais é linear.

Os poemas são pausa poética/ilustrativa, já que minhas memórias, transfiguradas e recriadas, foram objeto de partida para muitos poemas, em especial nos livros “Madeira: do vinho à saudade”; “estranhas formas de vida” e, o mais recente, “solidões da memória”, uma espécie de “trilogia das raízes”. Também porque a poesia é a forma em que melhor me expresso.

Pois bem... Dalila Isabel Agrela foi o nome que me deram ao nascer, aqui mesmo, no Funchal, em Santa Maria Maior, onde vivi até os 11 anos, quando embarquei com meus pais e irmãos para o Brasil. Agrela vem do Arco da Calheta, onde nasceu meu pai. Faltou o Olival materno que o machismo da época, inconsciente, acredito, assim como também perdoo, não permitiu incorporar. Vem lá da Freguesia de Santa Cruz onde nasceu o meu avô, pai de minha mãe. A estes, por amor, incluí o Teles Veras brasileiro, que também possui origem remota lusitana e que uso como sobrenome literário.

Meu pai, Manuel de Jesus Agrela, filho de pequenos proprietários rurais, nasceu no Arco da Calheta onde residiu e trabalhou no campo com seus pais até os 21 anos de idade, quando de lá saiu para servir o Exército, em 1941. Após o cumprimento do período obrigatório do serviço militar, cumprido em boa parte nos Açores, durante a II Guerra Mundial, retornou à Madeira em 1945. Homem de poucas letras, enfrenta, como é de se imaginar, toda sorte de dificuldades para seu sustento. Não queria voltar para o campo, onde seus pais viviam, pois apaixonara-se por minha mãe, Maria de Lourdes, uma menina nascida e residente no Funchal e era aqui que desejava também residir. Teimoso, decidiu ficar e empregou-se no comércio como empregado de mesa (no já extinto Café Riviera, na Av. Arriaga e no Café Apolo, ainda hoje em funcionamento. Em julho de 1946, nascia eu, sua primeira filha, concebida antes mesmo do casamento, decorrido em abril daquele ano, pecado inconfessável, a ser escondido a sete chaves durante décadas. Quinze meses depois de meu nascimento, ou seja, em setembro de 1947, nascia meu irmão, José Manuel.

A Europa devastada daquele período pós-guerra não oferecia, como sabemos, qualquer perspectiva para os menos favorecidos. A esperança, para alguns, estava no novo mundo. Em fins de 1949, à busca das acenadas oportunidades de trabalho, meu pai decide embarcar para a Venezuela, onde já estavam estabelecidos irmãos, cunhados e primos. Deixou minha mãe grávida do terceiro filho (minha irmã, Maria Floripes) e partiu, com o dinheiro da passagem emprestado por um irmão e a garantia de um teto, ou melhor, um catre nos fundos do estabelecimento comercial onde foi trabalhar.

Lá ficou por quase cinco anos, quando, com algum dinheiro amealhado e já proprietário de um pequeno comércio em Caracas, retorna à Madeira, adquirindo uma casa no Funchal. Volta logo a seguir à Venezuela, novamente sozinho, onde permanece por mais um ano, com a finalidade de juntar mais alguma coisa. Adquire um pequeno comércio no Funchal.

Aparentemente, a vida, finalmente, corria serena, mas nele volta a instalar-se algum tipo de vírus insular que impele o ilhéu para além do líquido horizonte e... A ilusória placidez pouco dura.  Em 1957 meu pai pede a um primo residente em São Paulo, uma “carta de chamada” para emigrar para o Brasil. Vende a casa e todos os pertences e, mesmo sob os protestos de minha mãe, embarca no paquete “Santa Maria” com destino ao Brasil (Santos), levando desta feita, a mulher e os três filhos. Era novembro e nos dezembros do resto de suas vidas, não voltariam a ver o fogo da passagem do ano no Funchal.

Para a criança, tudo, no entanto, era novidade e expectativa do novo, inclusive,  toda aquela azáfama da embalagem dos pertences considerados essenciais, (uma máquina de costura, alguma louça, uma espiriteira a álcool para cozinhar, algumas roupas de cama e mesa, roupas pessoais) e, agora sei, uma história de vida deixada para trás.

Embarcamos e a partir daí, a ruptura e o inevitável apagamento de toda uma história, esta, da qual agora lembro e relato.  

Constituem viva lembrança minhas férias de verão passadas na casa dos meus avós paternos, no Arco da Calheta, onde chegava após a “longa” viagem de “horário” ou de barco, o Gavião, se bem me lembro, a de minha preferência. Minha mãe não se adaptava aos costumes do campo, mas a menina batia o pé que queria e queria e... lá ía eu, sozinha. Minha mãe entregava-me a um passageiro qualquer  que lhe parecesse confiável, pedindo-lhe que fizesse o favor de olhar a menina até a Calheta, onde uma das tias a aguardaria.

Dos cheiros do verão, tenho presente o dos figos, das ameixas, das uvas, dos tabaibos, das anonas, mas nenhum deles supera o do pão a assar no forno da chamada loja, cômodo no rés do chão da casa assobradada, que servia de cozinha e dispensa. As tardes longas ao lado das tias em roda a bordar e bilhardar. Sim, na ausência de grandes acontecimentos, bilhardar em período de trabalho, era a fuga necessária à mesmice dos dias. Além das crianças e do meu avó paterno, já velho, sempre silencioso e que jamais saiu do lugar, não me recordo da presença de outros homens ali. Esse avô, Manuel como meu pai, além de trabalhar em sua própria terra, também trabalhou a vida toda no alambique do Engenho do Arco da Calheta.

Do campo, guardo também os sons das levadas e a rega da fazenda, por vezes na madrugada. A festa do Loreto e a participação, como mascote dançante do Grupo Folclórico da Calheta fazia parte das minhas atividades de férias. Sempre quis e sonhei dançar, mas, adulta, desaprendi. Com exceção da obrigatoriedade da reza coletiva do terço antes de dormir, suprema tortura, ali havia a liberdade que a cidade negava à criança.  

Do Funchal, dentre outras, está bem fixada na janela da minha memória, a escola Visconde Cacongo, no Bom Sucesso. Talvez para amenizar o medo imposto pela obediência e rígida disciplina ou, quem sabe, cometer um imperceptível ato de rebeldia pela poesia, candidatava-me a recitar Augusto Gil nas comemorações cívicas (“Batem leve, levemente, / como quem chama por mim... / Será chuva?  Será gente? / Gente não é certamente / E a chuva não bate assim...”). De nada adiantou a demonstração da veia poética da apaixonada declamadora mirim. Quando menos esperava, a implacável prof. Laurinda de Albuquerque, ergue a palmatória e aplica meia dúzia de bolos em cada uma das frágeis mãos da menina, mágoa jamais superada. O episódio foi recriado neste poema:


Fragmento

A palmatória crescia, crescia...
o pânico dos meus olhos assustados
o ódio por detrás dos óculos
e do rosto afogueada da professora
Dinastia Filipina? Dinastia Filipina?
A palmatória a crescer... a crescer...
eu tinha apenas 10 anos
e tentava compreender
que relação poderia haver
entre invasão espanhola
e aqueles vergões vermelhos
em alto relevo desenhados
nas palmas de minhas mãos.


A austeridade daqueles tempos era quebrada com raros passeios, incluindo aí algumas romarias. Não havia brinquedos, além de uma ou outra boneca de pano feita pela mãe. Inventava-se e tudo servia, como bichinhos feitos com semilhas e palitos, o jogo de pedrinhas. Gostava de fabricar joeiras com meu irmão e soltá-las em dia de vento. A primeira e única boneca, comprou-a meu pai nas Canárias, onde o barco que o trouxe da Venezuela fez escala. Um verdadeiro prodígio, estrondoso sucesso na vizinhança, que também virou poema.



Voltemos para a nova terra, a nova vida, através deste poema:  


chegada
         
onze foram os dias
enjoo,  sarna e tédio
terceira classe
paquete santa maria

da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais

aos emigrantes, o
delimitado espaço
do porto, aos turistas
a cidade  (entre)vista
do cais

(aos que vinham
para o trabalho
ver o trabalho
era  o limite)

via-se
:
corpos gingantes, a estiva
torsos negros azuis suados

e o cheiro despudorado
do abacaxi a anular o resto

 (o brasil tinha cheiro
e era de ananás)

Ainda que a língua fosse a mesma, o choque cultural foi inevitável. Para além da diferença abissal da paisagem e da cultura, o constrangimento de cinco pessoas diante da nova situação, ou seja, o abrigo provisório num cômodo da casa de um primo. Depois, dois quartos alugados num porão úmido, até que a pequena casa fosse construída.

Decorrido um ano, ainda sem trabalho estável, pois a tal “carta de chamada”, uma espécie de contrato exigido pelo governo brasileiro para entrada legal de emigrantes no país era, naturalmente, regida por algumas regras. Uma delas era a exigência do trabalho “no campo”, detalhe que meu pai, na ansiedade da partida, não havia percebido antes. Assim, a ele não era permitido que se estabelecesse como comerciante na cidade, conforme era seu intento.

Uma vez mais, a recusa em ir para o campo, muito lhe custou. O dinheiro auferido na venda do pequeno patrimônio na Madeira fora gasto com passagens, construção da casa própria, além dos gastos com os chamados “despachantes” que cobravam altas taxas dos emigrantes para legalizar sua situação na cidade. Finalmente, documentos em mãos vazias de dinheiro, meu pai novamente é obrigado a vender a casa, morar de aluguel para, com o valor da venda, adquirir um pequeno comércio onde trabalhou por mais de duas décadas até sua aposentadoria.

Minha mãe, peça chave dessa saga, ainda que permanentemente lamentasse o que considerava uma decisão desastrada de meu pai, ou seja, a emigração para o Brasil, enfrentou, sempre com muita coragem, as mais dramáticas situações. Novamente, a contragosto, deixou o trabalho da costura para ajudar meu pai no que aqui (e lá também), chamava-se de “venda”. Jamais tiveram empregados. Com sua fluência em leitura e rapidez nos cálculos, era ela quem cuidava da contabilidade, da compra de mercadorias, do financiamento bancário e ajudava nas vendas, além de exercer a dupla jornada de trabalho destinada às mulheres, ou seja, cuidar da casa, da alimentação e dos filhos, assim como mandava/manda o patriarcado.

E lá íamos, aclimatando-nos aos trópicos. Alvos de curiosidade, eu e meus irmãos, em poucos meses, falávamos já como brasileiros. O receio de “ser diferente” e o desejo infantil de nos “igualarmos”, inclusive para não sofrer o preconceito que, sim, existia e existe. Menos agora do que antes, é bem verdade. O português era visto como um ser pouco dotado de inteligência e alvo de muitas piadas.

As dificuldades iniciais, à medida que os mais jovens abriam caminho para a família adentrar aos hábitos e costumes da nova terra, foram superadas.

Uma curiosidade: minha mãe gostava de fazer e de recitar trovas populares. Tinha por hábito criar uma trova para cada ocasião festiva. Certa feita, na tentativa de ajudá-la a superar uma depressão, pedi que anotasse aquelas que sabia de cor. Em pouco tempo, havia anotado mais de 150 trovas que organizei e publiquei num livreto, sob o título “trovas populares madeirenses”. Gostava muito de ler e também citava provérbios. Muitos deles, eu, meus irmãos e minhas filhas, recordamos até hoje.

Do lado paterno, 6 dos 8 irmãos, aí incluído meu pai, emigraram para o Brasil. Todos para São Paulo. Minha avó, já viúva e com mais de 80 anos, também foi para o Brasil, juntar-se aos filhos e lá morreu, já perto dos 90 anos. Os descendentes desses tios somam hoje mais de uma centena de pessoas. Todos se conhecem e se relacionam. Como era de hábito no Arco da Calheta, ainda os chamamos por “fulano” de “fulano”, ou seja, o José da Conceição, a Maria do Antonio, etc. Os outros três irmãos ficaram no Arco da Calheta onde, hoje, ainda vive boa parte de seus descendentes.

Minha mãe, na última década de sua vida, enfrentou uma doença cardíaca grave que a levaria à morte aos 77 anos. Meu pai, quatro anos mais velho, a ela sobreviveu, vindo a falecer poucos meses antes de completar 90 anos. Sempre gozou de excelente saúde e disposição. Ambos retornaram à Madeira, por apenas duas vezes, já em idade avançada.

Aos 16 anos, tendo concluído um curso prático de “Secretariado”, outro de datilografia e cursando a língua inglesa, fui trabalhar num pequeno escritório no centro da cidade de São Paulo. Dali, para a Federação das Indústrias de São Paulo e, três anos após, para o escritório de uma indústria metalúrgica na então efervescente cidade de São Bernardo do Campo, região metropolitana de SP. No início dos anos 60, a Indústria Automobilística encontrava-se em acelerado desenvolvimento. Era um tempo de pleno emprego. Quem possuísse bons conhecimentos de língua portuguesa, estenografia, datilografia, e, no caso de empresa estrangeira, conhecimento razoável da língua inglesa, recebia, como foi o meu caso, excelente salário. Tive uma carreira profissional exitosa, chegando a secretária executiva de Diretoria numa empresa multinacional.  

Em abril de 1971, 25 anos incompletos, empreendo uma viagem de retorno à terra natal, sozinha, refazendo, pelo ar, o trajeto que, menina, fizera por mar, 14 anos antes. Durante esse período, a comunicação com os parentes que aqui ficaram, foi mantida de forma intensa. Nessa primeira visita, encontrei vivos, meu avô materno e seus dois filhos, meus tios Alice e João Elmano, que residam no Funchal. No Arco da Calheta, dois tios, João e Gabriela, e seus descendentes, todos, tios e primos, com suas respectivas proles, que sempre me acolheram com afeto e viva simpatia.

Durante aqueles primeiros 14 anos de ausência da pátria primeira, e por muitos outros, até a chegada da comunicação virtual, as cartas, manuscritas, com aqueles adoráveis envelopes adornados com bandeiras coloridas, cruzavam o Atlântico.  Falavam do cotidiano, da saúde, do emprego, da situação financeira, dos que emigraram e retornaram, dos que não mais retornaram, enfim. Guardo uma boa quantidade delas comigo e noto que havia sempre muitas queixas. Pouco se falava de alegrias. Fotos, antes do advento da fotografia digital eram mais raras, mas, vez ou outra, eram trocadas. Assim, de carta a carta, de telefonema a telefonema, de abraço a abraço, fomos mantendo os laços e os afetos.

A minha chegada à Madeira naquele já distante ano de 1971 foi recebida com muita surpresa e curiosidade. Fui uma das primeiras da família a retornar.  Disse-me um primo, aqui há uns poucos anos, que o Arco da Calheta ficou em polvorosa quando pela primeira vez ali chegou uma mulher (eu), a conduzir um automóvel.

Em 1972, aos 26 anos, casei-me com o então recém-formado advogado Valdecirio Teles Veras, que viera do Piauí, seu estado natal, no Nordeste, estudar em SP onde se radicou. Hoje, é cidadão português, por direitos legalmente adquiridos e afinidades eletivas. É meu companheiro eterno de incontáveis viagens e meu incentivador em todos os quesitos da existência. Como é tradição, hoje também aqui presente, ao lado de sua irmã mais nova, Luzia, que tenho na conta de filha e que pela primeira vez visita a Madeira. Temos 3 filhas, Carolina, Isabela e Alice, e quatro netos, Filipe, André, Murilo e Iara. Todas as filhas com formação universitária e carreiras consolidadas.

A ausência de formação superior formal não me impediu a busca por conhecimento que sempre foi o meu objetivo. Não só o conhecimento instrumental, destinado ao trabalho, mas o referente às humanidades, sempre foi e é alvo de minha curiosidade e interesse. Nessa empreitada, tive no hábito da leitura, meu maior aliado. Sou feita, portanto, do que li.  Desde muito cedo descobri minha vocação para as letras. Colaborei em publicações literárias. Assinei coluna em um jornal diário por vários anos. Publiquei meu primeiro livro aos 36 anos. Sou autora de mais de duas dezenas de livros, nos gêneros poesia, ensaio, crônica e diário literário. Dedico-me também há mais de três décadas ao ativismo e à promoção cultural. Por essa minha atuação pública, em 2004, a Câmara Municipal de minha cidade outorgou-me o título de cidadã honorária. Há 4 anos integro, a convite, o Comitê de Extensão Universitária da Universidade Federal do ABC, assim como integrei em outras ocasiões comitês e comissões em outras universidades.

Após 45 anos de residência no Brasil, optei por requerer a chamada dupla cidadania. Vários motivos levaram-me a tomar tal decisão: havia já componentes de “brasilidade” que incluía minha participação ativa e “militante” na vida cultural e política de minha cidade e região. A burocracia oficial fazia questão de me lembrar da condição de estrangeira, ou seja, a renovação periódica do meu documento brasileiro de identidade. As longas e demoradas filas dos guichês reservados aos “estrangeiros” nos aeroportos brasileiros. "Estrangeiro aqui como em toda a parte", habitante de "pátria incerta" lembrava-me o nosso Poeta.  Nem de lá, nem de cá e, neste caso, a língua me servia apenas de teto, faltava-me verdadeiramente uma pátria, na qual pudesse exercer efetivamente minha cidadania.

Após um ano de certidões e burocracias consulares, finalmente obtenho, em 2002, o “certificado de igualdade e de outorga do gozo de direitos políticos”, sem abrir mão da minha naturalidade portuguesa. Ato contínuo, cuidei de tirar o meu “título de eleitor” para, enfim, exercer minha cidadania (quase) plena. Para minha decepção, sou informada de que a obtenção da dupla cidadania não me concedia o direito a um passaporte brasileiro. Portugal concede passaporte português aos brasileiros que a requerem e o Brasil não faz o mesmo em relação aos portugueses. A contrapartida da “dupla cidadania” não é verdadeira. Jamais me conformei com isso. Munida de meu passaporte português, do qual, diga-se, muito me orgulho, passei a me dirigir apenas às filas destinadas a brasileiros nos aeroportos do Brasil e, ainda com alguns problemas, jamais fui barrada. Finalmente, há muito pouco tempo decidiram que os cidadãos com dupla cidadania entrariam no Brasil pela porta da frente.
A propósito desta minha pequena história que é a de tantos, e já encerrando, gostaria de lembrar que vivemos tempos difíceis e violentos, absurdos tempos de intolerâncias e xenofobias planetárias. . Em regime de urgência, precisamos aprender a conviver com alteridades, exercer a fraternidade com os que vieram de longe por contingências as mais diversas e, muitas vezes, dramáticas. Os portugueses, e os madeirenses em particular, por essa incalculável diáspora pelo mundo, mais do que ninguém e mais do que nunca, precisam acolher aqueles que aqui chegam à busca das mesmas oportunidades que os seus antepassados igualmente foram buscar em outros tempos e lugares.

Encerro com este poema, que, sinteticamente, talvez diga mais de mim do que todo este longo e maçante depoimento. O poema faz parte do meu livro “solidões da memória”, recentemente publicado no Brasil, inteiramente composto por poemas que evocam minha infância na Madeira, falam também da ruptura da travessia e do olhar crítico no retorno à ilha. Em síntese, aquilo que aqui evoquei.

 Confidência da madeirense

                      Alguns anos vivi em Itabira.
                      Principalmente nasci em Itabira.
                      Por isso sou triste,
                      orgulhoso: de ferro.
                             Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileira do séc.XX,
                                                                                                   bisneto de madeirenses

alguns anos vivi na madeira
principalmente nasci na madeira
por isso sou melancólica, teimosa: urze
de nascença, em luta frente às intempéries
(do solo, do vento e das vagas marítimas)
alma em permanente desassossegar

da madeira nada de material veio comigo
e não há nada que eu possa ofertar
mas da madeira vem este ar atrevido
a língua maldicente e áspera
e o hábito de tudo reclamar
atavismos que a consciência, por vezes
                                 rejeita

a madeira não é apenas fotografias
é a memória real dos precipícios
                            e das vertigens
encordoamento 
        do que não parecia lembrado
                             mas é
a memória do que não foi
                       mas poderia
                       e sequer dói

Obrigada

Funchal 10.11.2016
dalila teles veras