domingo, 16 de outubro de 2016

Mulheres, Ressignificações e outras PerVersidades urgentes


Sábados PerVersos – a poesia em questão”  é um projeto que opera “milagres”.  Desde novembro de 2014, um grupo de interessados, reúne-se mensalmente, para ler e discutir poesia criticamente. A cada mês, um coordenador diferente, provoca os participantes, trazendo poemas à sua escolha e, eventualmente, textos críticos que, após lidos, são comentados e analisados. Ninguém arreda pé e as conversas, iniciadas pela manhã, estendem-se tarde afora. Em algumas das edições, a poesia de autoria feminina foi pesquisada, analisada, discutida. Hoje, Lenir Viscovini, professora, pesquisadora e socióloga (poeta também, ainda que não me deixe chama-la assim...), assídua frequentadora e colaboradora desses encontros, disse-me o seguinte:
“Refletindo ainda sobre aquele sábado perverso... Penso que considerar a ESCRITA FEMININA como resistência ao todo cultural, que deixa as mulheres às margens da cultura, é um posicionamento político, portanto, ideológico do feminismo. Como pensar que possa existir realmente uma cultura diferenciada sem repensar a história literária e poética, e nesse aspecto poder redimensionar qual é a posição que as mulheres têm ocupado? Acho isso tarefa de todas as mulheres comprometidas com uma poesia e uma escrita realmente libertária. Daí vejo ser fundamental a ressignificação do lugar ocupado como forma de resistência, posicionamento e auto-afirmação.”



Pois bem, ao receber essa mensagem, eu acabara de ler o romance de Micheliny Verunschk, “nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida” (Editora Patuá, 2014) e encontrava-me em estado de choque, como, aliás, sempre me acontece (e é desejável) ao fim da leitura de cada bom livro, caso contrário...  Nocauteada, estonteada, cética, fé cada vez mais cambaleante, tentei recompor os sentidos, lembrando que foi assim quando li, para ficar num tema análogo, o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago.  Em ambos, três dias sem dormir, os demônios todos a me cutucarem com seus arpões untados de martirizantes questões, como religião, fé, memória, história, mas, sobretudo, o grande prazer estético de uma narrativa bem construída e escrita com originalidade.


Como não ser tocada pela proposta da Lenir? Como não pensar na questão da “Escrita Feminina”, quando lembro que foi assim também com o romance “Quarenta Dias” (Ed. Alfaguara, 2014), de Maria Valéria Rezende, leitura da qual saí rendida e transformada. Ainda sob o impacto da leitura, escrevi uma resenha no meu blog, sob o título “Quarenta dias em dois dias” que terminava assim:
“escrito na forma de diário e memória, o romance possui um ritmo que obriga o leitor a, ofegante, acompanhar os passos da personagem pelos subterrâneos de uma cidade e de uma mulher, ambos à beira do colapso e da ruína. Um romance que, por força de uma poderosa narrativa, nos põe diante de uma tela na qual pode-se assistir ao que se lê. E que ninguém se iluda com a linguagem (quase) coloquial, aparentemente desprovida de "trabalho". Ser simples desse jeito requer uma vida inteira de dedicação e muito, mas muito trabalho."


Foi assim, recentemente, também com o romance “Véspera de Lua” (Editora Penalux, 2a. edição, 20'5), de Rosângela Vieira Rocha, uma narrativa poderosa que mergulha no universo feminino, escrita com o corpo e sobre o corpo. Corpo de mulher, corpo que “parece não caber em si”, corpo que fala da dor e do desejo, de homossexualidade, das miudezas cotidianas, da miséria humana. Um romance que entrega a chave ao leitor apenas no seu final. Um romance escrito por uma mulher e que só poderia ter sido escrito do ponto de vista de uma mulher.

Não por acaso, os três romances foram justamente premiados, lidos e elogiados. Três socos no estômago, recebidos, para minha sorte, em momentos diferentes, caso contrário o impacto teria graves consequências físicas na combalida leitora.

Foi assim também com a poesia de Wislawa Szymborska, de Yu Xuanji, Anna Akhmátova, Sophia de Mello Breyner Andresen, Orides Fontela e tantas mulheres, minhas contemporâneas ou não, que só posso mesmo dar razão a Lenir e seguirmos na discussão e tentativa de “ressignificação do lugar ocupado” por elas, as mulheres e sua escrita. 

sábado, 8 de outubro de 2016

Lugares da Memória

Neste sábado, 08, a memória e suas consequências artísticas, ocupou a Casa do Olhar Luiz Sacilotto, em Santo André. Maura de Andrade e Teodoro Vieira, protagonistas do projeto “Lugares da Memória" .
Foi assim, o casal, inspirado na expedição dos colonizadores portugueses do Século XV no Brasil, resolveram refazer o caminho de Martim Afonso, na Capitania de São Vicente, João Ramalho, na Vila de Santo André da Borda do Campo, seguindo até a Vila de São Paulo de Piratininga, que hoje correspondem às cidades de São Vicente, Santo André (incluindo a Vila de Paranapiacaba), São Bernardo do Campo e São Paulo. Os caminhos, reais, foram percorridos durante 10 meses, sobre uma poderosa motocicleta. Anotações, fotografias e sensações foram se transformando pela arte, em gravuras, xilogravuras e fotogravuras. A esses juntaram-se textos, deles e de três convidados, residentes no caminho percorrido (São Vicente, São Paulo, Santo André, Roberto Grün, Marcos Atanásio e Dalila Teles Veras. Tudo isso virou uma exposição ("Lugares da Memória & sua Poética Visual" e o livro, “Lugares da Memória”.  A exposição foi aberta hoje e permanecerá aberta ao público até 29 de outubro, na Rua Campos Sales, 414, Centro Santo André, nos seguintes horários: terça a sexta-feira, das 10h às 17h, sábados das 10h às 15h. Na ocasião, também houve o lançamento do livro que foi distribuído aos visitantes. 



Aqui, o meu texto que integra o livro:

Do porto ao planalto – a memória dos lugares

O preparo para a aventura. O pai, desbravador de horizontes, ordenou: - vamos. Ele, a mulher e os três filhos. Eu, a mais velha dos três. O ano era mil novecentos e cinquenta e sete, quase no seu final. Uma carta de chamada enviada por um primo que já morava no Brasil. A venda da casa e de quase todos os pertences. Numa arca de madeira, uma máquina de costura, alguma louça, roupas de vestir, cama e banho, o essencial para o recomeço na terra nova. O embarque na terceira classe, destinada aos emigrantes, do paquete Santa Maria, partiu da baía do Funchal, na Ilha da Madeira, para a travessia atlântica. No mesmo mar das caravelas, o navio sem velas também carrega gentes e sonhos.  
Onze dias depois, a chegada ao porto de Santos. O impacto diante da grandiosidade da serra do Mar e a fabulosa engenharia da Via Anchieta, recém-construída, orgulhava e remetia aos conterrâneos navegadores que há cinco séculos subiram a serra em condições de maior coragem. No zigue-zaguear da subida, rumo ao planalto, o deslumbre misturado à expectativa. Das verdejantes sensações de então, da memória desses caminhos, muito depois, a menina não mais menina, construiria poemas, como este (do livro “solidões da memória”, Alpharrabio Edições e Dobra Editorial, SP, 2015)

do porto ao planalto, o choque
                       Se vens a uma terra estranha
                       curva-te
                                        Orides Fontela

íngremes e largos
os longos caminhos
vindos do mar (os mesmos
já outros) rumo ao
planalto - a terra nova
             (estranheza)
destino incerto e final

galgada a serra
(o mar fora da vista)
a metrópole
(o mar apenas lembrança)
velocidade e vertigem
(o concreto como horizonte)

desaprender
(premência menina)
para aprender a
(o preço da aceitação)
curvar-se
(cidadania inaugural)

Galgada a serra, trajeto de antepassados refeito, eis a cidade de São Paulo, o destino programado. Da fervilhante metrópole, as lembranças da então adolescente: o Viaduto do Chá, a imponência; a Praça do Correio onde chegavam e saíam os ônibus que me traziam e levavam à morada na Zona Norte da cidade; o trem da Cantareira; o bonde que levava toda família, nos domingos, à casa de parentes residentes no bairro da Penha. O Centro do início dos anos 60: a Rua Quintino Bocaiúva, o curso de datilografia no Instituto Brasileiro de Mecanografia; a Av. São João com Ipiranga, a escola Roosevelt do curso de inglês; a então muito elegante Rua Barão de Itapetininga, o curso de Secretariado, bem em frente à Confeitaria Vienense, onde um velho e curvado pianista, certamente do tempo de Mário de Andrade, animava o chá das tardes dos dias de semana; a Livraria Brasiliense nessa mesma rua, a delícia das delícias; dali ao Mappin, um pulinho e o deslumbre diante do consumo entrante;  primeiro emprego no Viaduto Dona Maria Paula; a taça de “banana split” na lanchonete da primeira das Lojas Americanas, na Rua São Bento. O sanduiche de calabresa com suco na lanchonete Califórnia (era esse o nome?). São Paulo dos anos sessenta era uma metrópole com recantos ainda interioranos e é nos escaninhos desse hoje chamado Centro velho onde residem minhas mais gratas memórias de São Paulo. Lugares guardados como pontos de identidade e identificação.

Hoje, ao percorrer esses caminhos, ausculto as narrativas que a própria cidade oferece, narrativas não escritas, mas inscritas no imaginário, o meu e o coletivo, com todos os seus sentidos.

1972 – o casamento, a mudança para o meio do caminho, o lugar de passagem, a chamada Região do Grande ABC.

a selva de outrora
selviliza-se, robotiza-se.

As sete cidades que são uma só, fronteiras abolidas, trilhos que ligam, rios e ribeirões, que separam e (re)unem. O ABC no curso maltratado do rio, destinos amalgamados.
O lugar de onde se avista o mar.

Samambaias enlouquecidas
bromélias encharcadas
manacás arcoirismando
lírios a rebentar brancuras
quaresmeiras pontuais
atlântica mata
do oceano já distante
: cenário.

Santo André, o lugar da morada, com seu Paço Municipal - Centro Cívico – modernista, novinho em folha (projeto de Rino Levi e paisagismo de Roberto Burle Marx, tombado em 2010 pelo Condephaat) e seu Teatro Municipal com espetáculos grandiosos em estreia nacional. Hospital e Maternidade Brasil, recém-inaugurado, nascimento das três filhas e de tantos andreenses. O lugar eleito. O lugar para nascer, viver e, quem sabe, morrer.
São Bernardo, o lugar do trabalho; a indústria, o automóvel, metalúrgicos, as greves, as lutas pelos direitos sociais, o surgimento de novas lideranças, operários e suas vozes, conquistas. A fundação de um partido político. O mundo de olho neste lugar já um pequeno mundo, dois milhões e meio de habitantes.

máquinas, máquinas. trabalho, trabalho.

O lugar também da palavra, do registro, do livro, das lutas literárias e culturais. O lugar da diversidade e miscigenação. Emigrantes, migrantes, gentes de todos os lugares. Culturas híbridas, amalgamadas etnias. A arte dessa aldeia é também universal.
Reinventa-se, e no perigoso reinventar, descuida-se. No permanente renascer, por vezes, mata-se. Diante da morte dos lugares, o registro da memória dos lugares. Este. (dtv)