Luiz
Roberto Alves (*)
Felipe
Moisés, que introduz à obra estranhas
formas de vida ( Alpharrabio/Dobra, 2013), sugere uma
proximidade distanciada entre a poética dos fados em epígrafe e os poemas de
Dalila, dadas as línguas distintas. De um lado, o sentimentalismo à flor da
pele; de outro, o desfile sutil de tragédias do cotidiano. A própria autora,
nos textos finais, depois de citar o conceito de “língua de poesia” do querido
mestre João Alexandre, conceitua sua escritura ora vinda à luz como “crônicas
poéticas metropolitanas”.
Sim,
carece de existir uma historicidade, quer teórica, quer vivencial, para o fazer
estético. Se a criação, em poemas e/ou narrativas, implica um ‘sentimento de
mundo’ (homólogo à leitura de mundo dos cientistas), os construtos dessa
linguagem estética terão de produzir certa estranheza para nos roubar do
cotidiano e nos devolver a ele com olhar inovador. Também porque a leitura do
detalhe precisa alçá-lo ao tamanho do mundo, pois somente aí torna-se possível
aquilatar a grandeza do humano. O calcanhar do herói antigo também é um fato de
sua grandeza e o triste fim de Policarpo Quaresma releva seu tamanho na
história das personagens brasileiras. Se o cotidiano – como pensou Heller – é o
lugar da perigosa alienação e o espaço em que não se consegue ver o todo, neste
mesmo lugar do dia-a-dia o fazer humano vai construindo (às vezes dolorosamente)
metáforas e metonímias da totalidade. Provavelmente para que a vida venha a
ser, ou volte a ser, a totalidade, revertidas suas quebras e rupturas. A
cultura monoteísta médio-oriental criou muitas narrativas sobre o rompimento
original dos vasos e a necessidade humana de andar pelo mundo a colher os
pedaços e reconstituir a unidade perdida...
Ora,
certa poética, notadamente aquela medrada a partir da oitiva das gentes do
povo, tratou com abundância da ruptura dos vasos da vida, expressas na
economia, nas relações entre pessoas e organizações, nos projetos políticos, nas
práticas amorosas, nos desejos, na educatividade, na construção das culturas. O
recorte dessa poética é amplo e se espraia por fados, sambas e lundus, bem como
por tangos, modinhas e outras expressões lembradas, assoviadas e sentidas, quer
antes, quer por nós, gente de tempos supertecnológicos.
Há,
pois, laços, presenças e dizeres que se conectam nesse ‘sentimento de mundo’
operado na obra recém-lançada por Alpharrabio/Dobra. Uma historicidade estética
viva na consciência estruturante dos poemas lança a suposta estranheza do
universo literário conciso dos fados sobre a linguagem midiática dos fatos, mas
não para estranhá-los e sim para dar-lhes grandeza, fazê-los seres do mundo e
não mais entes da banalidade noticiosa. Eis, então, que o cotidiano ganha tanto
a imagem de vida (lembrando Arendt) como se faz mundo. Aí, romecleide,
barrigãs, belas, idosas roubadas, pai assassino, mulheres ao espelho, loucas
(não sem sentido, a maioria de mulheres!), evangélicos, todas e todos alcançam
a condição de mundo, de totalidade, vaso reconstruído. Se não para a sua
salvação, certamente para escaparem do passageiro e do olvido. Quem os
reconstrói? A língua acumulada do questionamento, das explicações entre
parênteses, da assertiva dura, da quebra gramatical (quebra do midiático), pois
a estranha língua poética de fato está a romper com o fenômeno histórico que se
incumbe de quebrar ainda mais os cacos humanos, seus bens, necessidades e
desejos. Recomposto o ser, recompõe-se o seu cotidiano em novas possibilidades,
em nova língua feita de novos ingredientes e sabores, que são as imagens dos
poemas, talvez os seus contrários. Por que não sairmos dos poemas como pessoas
melhores e, se necessário, pessoas provadas pela catarse?
Os
poemas de Dalila Teles Veras também revelam, em sendo construtos legítimos e
dignos da boa história literária, uma consciência comprometida, militante, arguta
diante dos sinais evidentes da mediocridade sócio-política, contraparte da
banalidade e do facilitário do senso-comum. O acúmulo da língua poética, quando
visto lá no seu interior, revela sua estranheza metalinguística a atingir o
coração da vida, no rumo do mundo, cuja matéria prima é a palavra, contraponto
do caos. Reestranhar é preciso.
(*) Luiz Roberto Alves - Crítico,
professor e pesquisador na USP - Universidade de São Paulo e na UMESP -
Universidade Metodista de São Paulo.