Tempos atrás, andei empenhada em
traduzir poemas de Mario Benedetti. Cheguei a publicar na revista A Cigarra alguns
deles e deixei na gaveta (ops! no arquivo do word) muitos outros, talvez por
conta da insegurança (traduzi, como se sabe, é trair e... daí o temor). Ontem,
revolvendo esses arquivos deu-me vontade de voltar à tradução. Antes, a título
de "teste" deixo aqui um deles (tradução inédita), a ver se resiste à
leitura crítica de alguns dos meus eventuais leitores. Se der certo, publicarei
outros:
HAVIA ESQUECIDO
Havia esquecido do carnaval e suas matracas
das insônias depois de cada prova
dos barriletes com lâminas de barbear
dos seus trezentos soldadinhos de chumbo
havia esquecido das tardes no rio
dos cavalos que desenhava com crayon
da primeira ereção / o primeiro salário
dos imundos bordéis na fronteira
havia esquecido da formosa pequenina
violada por seus milicos subalternos
do vômito rubro daquele estudante
que não estava disposto a delatar
desnudo em seu pouco de consciência
da surdez das árvores avós
quando ele passava assobiando ou soluçando
porém um dia o temporal da memória
caiu sobre sua calva tão lustrosa
e sentiu o incômodo de já não ser
o gurizinho de velhas primaveras
de saber-se um órfão de amores
um náufrago de pátrias um ausente
e o assaltou a cruz dos indigentes
a pele da violada que não pôde chorar
as máscaras que imitavam seu rosto
e o embuste o banhou aos borbotões
a purulência de sua vida de cruel
e praguejou longa e tartamudamente
diante do esquecimento, o intratável esquecimento
quando o viu tão cheio de memória
SE HABÍA OLVIDADO
Se había
olvidado del carnaval y sus matracas
de los
insomnios después de cada examen
de los
barriletes con hojas de afeitar
de sus
trescientos soldaditos de plomo
se
había olvidado de las tardes en el rio
de los
caballos que dibujaba con crayolas
de la
primera erección / el primer sueldo
de los
mugrientos quilombos en la frontera
se
había olvidado de la preciosa chiquilina
violada
por sus milicos subalternos
del
vómito rojo de aquel estudiante
que no
estaba dispuesto a delatar
del
nudo en su poquito de conciencia
de la
sordera de los árboles abuelos
cuando
él pasaba silbando o sollozando
pero un
día el chaparrón de la memoria
cayó
sobre su calva tan lustrosa
y
sintió el bochorno de ya no ser
el
gurisito de viejas primaveras
de
saberse asimismo un huérfano de amores
un
náufrago de patrias un ausente
y lo
asaltó la cruz de los menesterosos
la piel
de la violada que no pudo llorar
las
máscaras que imitaban a su rostro
y lo
bañó el embuste a borbotones
la
purulencia de su vida de cruel
y puteó
larga y tartajosamente
ante el
olvido el intratable olvido
cuando
lo vio tan lleno de memoria
Mario Benedetti nasceu em Paso de los Toros (Departamento
de Tacuarembó) Uruguai, em 14 de setembro de 1920 e faleceu em Montevideu em 17
de maio de 2009. A família mudou-se para Montevidéu quando ele tinha 4 anos,
cidade em que passou toda a sua vida, excluindo-se um longo exílio de 12 anos
(vividos na Argentina, Peru, Cuba e Espanha).
Autor de mais de 60 livros (romances, novelas, teatro,
ensaios e poesia), traduzidos em mais de 20 idiomas, é considerado um dos grandes nomes da
literatura hispânica do Século XX, com uma bagagem considerável de prêmios mas,
inexplicavelmente, ainda muito pouco lido e traduzido entre nós. Com exceção de
alguns romances publicados no Brasil, como o excepcional A Trégua, com duas
traduções brasileiras diferentes, a sua poesia só veio a ser editada em livro
no Brasil em 1988 (Antologia Poética, tradução de Julio Luís Gehlen, Editora
Record). Ele próprio, considerava-se antes de tudo um poeta, gênero onde,
seguramente, realiza a sua melhor escritura. Este poema integra o volume “El
olvido está lleno de memoria”, de 1994, no qual, o poeta mantém a fidelidade ao
coloquialismo antilírico, uma linha já apontada no seu primeiro livro de poesia
“Poemas de la oficina”, de 1956.