Elogio a Maria Valéria Rezende, em visita à Livraria e Espaço Cultural Alpharrabio, Santo André, SP, no ano de seu 80º aniversário natalício
Está conosco, para uma visita relâmpago, a premiadíssima escritora Maria Valéria Rezende. Este encontro no Alpharrabio é um pitstop em seu trajeto de hoje, ou seja, entre Santos e Suzano, cidade onde ela se apresentará à noitinha, como escritora convidada da Prefeitura local para falar sobre sua Trajetória Literária.
Maria Valéria nasceu e viveu até os 18 anos na cidade de Santos, SP. De lá saiu para o mundo e sua aventurosa existência é mais romanesca e interessante do que a história de Robson Crusoé.
Formada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia, dedicou-se, desde os anos 1960, à Educação Popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior, tendo trabalhado em todos os continentes.
Não é nossa intenção apresentar aqui sua vasta biobliografia, porque esses dados são públicos e de fácil acesso. Apenas algumas pinceladas, para constar.
Em 2002, às vésperas de completar 60 anos e intensos périplos reais, começou a publicar literatura com a primeira versão do livro “Vasto Mundo” (Ed. Beca), posteriormente reeditado, inclusive traduzido e publicado na França.
O seu romance “O voo da guará vermelha” (Ed. Objetiva, 2005) veio a ser publicado em Portugal, França e teve duas edições em Espanha (espanhol e catalão).
Com a publicação de romance “Quarenta Dias” (Ed. Alfaguara, 2014) e “Outros Cantos” (Ed. Alfaguara, 2016) inscreve-se definitivamente na centralidade da literatura brasileira, sendo premiada com Jabutis, Prêmios São Paulo, Casas de las Américas e tantos outros. Foi igualmente premiada por vários de seus livros na categoria infantil e juvenil.
Em 2019, publica o genial romance Carta à Rainha Louca, no qual emprega toda a sua cultura, criatividade e destreza narrativa. Fruto de uma pesquisa histórica exaustiva, utiliza o vocabulário oitocentista (a história passa-se em Olinda, PE, em 1789) e cria, com absoluto domínio de linguagem, a história de duas mulheres (Isabel e sua senhora Blandina) vivida naquele século. Trata-se de um romance ímpar na nossa literatura, cuja abordagem explicitamente feminista combativa, denuncia toda espécie de tormentos vividos por Isabel das Santas Virgens, presa no convento de Recolhimento da Conceição que passa a escrever cartas à rainha Maria I, conhecida como a Rainha Louca. Ali, a personagem relata, analisa e denuncia as crueldades e modos de vida despóticas dos homens da Coroa no Brasil, contra mulheres e escravizados.
Uma curiosidade em sua biografia. Em 1965, entrou para a Congregação de Nossa Senhora, Cônegas de Santo Agostinho e foi como missionária que cumpriu sua rica trajetória nacional e mundialmente. Por este fato, no calor do sucesso estrondoso do romance Quarenta Dias, artigos da imprensa oportunista, chamavam atenção “freira vence o Jabuti com melhor romance e livro do ano”, “a freira que fuma”. Foi assim que tentou-se construir uma imagem mítica baseada em suas vivências nada comuns. Seu espírito, entretanto, não é o do recolhimento, é o da missão educadora. Em algumas entrevistas, como ao El País, ela responde: “As pessoas pensam que freiras são bobinhas. Como podem escrever literatura?”
É essa mesma freira rebelde feminista, a princípio vista como uma curiosidade literária, que há vinte anos impõe-se como escritora pelo poder único de sua força criadora. Paralelamente, segue fiel aos seus ideais socialistas de bem comum, utilizando da palavra e do ativismo social e cultural, na luta por uma sociedade menos desigual como a nossa.
Foi pelo entusiasmo de sempre que uma ideia sua vingou e consolidou-se. Em 2016, durante a Flip em Parati, um grupo de mulheres comentava a ausência de sempre de mulheres às mesas de debates. Avaliava-se que o papel da mulher ainda permanecia num plano de “cotas”, como ela bem dizia. Surge, dessa conversa informal a ideia de fundar um coletivo que veio a chamar-se Mulherio das Letras. O primeiro passo da sempre ligeira Maria Valéria, foi criar uma página no facebook e já no ano seguinte, é realizado, de forma colaborativa, o I Encontro Nacional Mulherio das Letras, não por ocaso, em João Pessoa, capital da Paraíba, onde vive Maria Valéria.
Seguiram-se
mais 3 encontros nacionais, no Guarujá, SP, em 2018, em Natal, RN, em 2109 e em
Porto Alegre, RS, em 2020 que, por conta da pandemia, foi realizado de forma
virtual.
Hoje,
a página do movimento conta com mais de 7.000 mulheres e núcleos regionais em
inúmeros estados do Brasil e no exterior.
O
ML transformou-se num divisor de águas na luta pela visibilidade da escrita de
mulheres, mas não só. Trata-se de um coletivo feminista, comprometido com a
defesa da igualdade dos direitos da mulher. Assim como Maria Valéria é divisora
de águas na história da mulher escritora no Brasil.
Se
me permitem uma autorreferência, gostaria de registrar um aspecto dos muitos
significados deste encontro que me ocorreu ao organizá-lo, à última hora. Foi
há exatos 10 anos que vi Maria Valéria pela primeira vez, ocasião em que ambas
fomos convidadas pelo querido escritor e agitador cultural, Sacolinha, para
partilhar uma mesa de debates na Feira do Livro de Suzano, a mesma cidade para
onde se dirigirá daqui a pouco, escudada por nossa amiga em comum e fiel
escudeira Rosana Chrispim.
Posso
dizer que naquele encontro, nascia uma paixão à primeira vista e que perduraria
em admiração crescente por esta mulher extraordinária, imensa escritora e ser
humano raro. Orgulho grande em pertencer à sua geração.
Posso
afirmar, sem medo de errar, que todas e todos que aqui se encontram vieram pela
mesma admiração e desejo fraterno de abraçar pessoalmente nossa querida Maria
Valéria, rendendo-lhe esta singela homenagem.
Lembramos
que, em dezembro deste ano, ela completará 80 anos de vida e todas nós já
estamos nos preparando para a celebração.
Gostaria ainda de acrescentar o quanto é honroso para nossa minúscula equipe, integrar o nome de Maria Valéria à história e às comemorações dos 30 anos da Livraria e espaço cultural Alpharrabio, onde ela comparece pela primeira vez, após várias tentativas fracassadas. Quis o fado que a hora fosse esta, a da pós-pandêmica e a retomada dos abraços.
O
Porto de Honra que serviremos a seguir, é para lembrar os nossos 30 e os 80
dela. Salve e tim... tim..
dtv
Alpharrabio, 28.07.2022
Texto de dtv publicado no blog “à janela dos dias” em 1º de maio de 2014, evocado por Adélia Nicolete e lido por Cláudia Jordão no dia 28.7.2022
“Quarenta
dias em dois dias
Saí
da leitura do romance "Quarenta dias" de Maria Valéria Rezende
(Alfaguara, 2014) rendida (leia-se, transformada), como se eu mesma, nestes
dois últimos dias, tivesse vivenciado as agruras dos quarenta dias de sua
narradora, Alice, percorrido os becos e outros lugares escusos de uma cidade
(Porto Alegre) que, por suas (des)humanidades,
bem poderia ser a minha ou qualquer uma das grandes cidades brasileiras.
Trata-se
de um mergulho na vida urbana e nos seus personagens, costumeiramente
invisíveis à grande maioria dos passantes, mas não só. É também e
principalmente um mergulho no mundo das trevas, por uma mulher, professora
aposentada, que se vê, repentinamente, obrigada pela insensibilidade da filha,
a deixar sua casa e seus pertences, mudar-se para um apartamento "cenário
de novela", frio e impessoal, sob a perspectiva de tornar-se apenas uma
"avó profissional", matando sua própria história.
É
nessa viagem/mergulho às cegas que Alice, de forma alucinada e inconsciente,
busca criar uma história possível com a qual possa se identificar. Uma viagem
através da banda podre e invisível de uma grande cidade, onde anônimos vão
recebendo nomes e se transformando em protagonistas de outras histórias,
compondo um painel assustadoramente humano e ao mesmo tempo assustadoramente
despossuído de humanidade. Um exército dos abandonados à própria sorte, dos
que, como ela, também largaram seus lugares, suas famílias e caíram no mundo e
transformaram-se numa massa informe e fétida da qual, vez por outra, vertem os
tais vestígios de humanidade, através de gestos de solidariedade e compaixão.
Não
pude evitar a lembrança de uma crônica já velhinha, que escrevi sob o impacto
da tragédia ocorrida com o desabamento do edifício Palace, na Barra da Tijuca
(RJ), no Carnaval de 1998. Comovida diante das expressões de dor daqueles que,
assim como a personagem do romance que acabo de ler, assistiam ao momento da
perda de sua própria história.
Naquele
texto, dizia eu, uma casa não é um lugar que serve apenas para abrigar pessoas
e coisas. Uma casa não é uma simples edificação, mas representa a própria vida
de quem a habita, a memória representada por fotografias, livros, suvenires de
viagens, fitas, pétalas de flores,
cartões postais, almofadas, objetos insignificantes para olhares desavisados,
mas que, junto a lembranças não armazenáveis em quartos, salas ou cozinhas,
como gestos, carícias, sons, cheiros, respirações, ritos que ali ficam colados
às colunas, portas e paredes, impregnados da energia vital, representam o eixo
referencial da própria existência de quem a habita. E foi isso que me fez
compreender o gesto tresloucado de Alice
Quarenta
dias, escrito na forma de diário e memória, possui um ritmo que obriga o leitor
a, ofegante, acompanhar os passos da personagem pelos subterrâneos de uma
cidade e de uma mulher, ambos à beira do colapso e da ruína. Um romance que,
por força de uma poderosa narrativa, nos põe diante de uma tela na qual pode-se
assistir ao que se lê. E que ninguém se iluda com a linguagem (quase)
coloquial, aparentemente desprovida de "trabalho". Ser simples desse
jeito requer uma vida inteira de dedicação e muito, mas muito trabalho.”
Imagens: Luzia Maninha