Cheguei ao Brasil aos onze anos de idade. Adotei este país como meu e este país
também me reconheceu como sua cidadã, não só pela concessão de “direitos
políticos”, mais conhecida como “dupla cidadania”, como também me concedeu dois
honrosos títulos de “cidadã honorária”, o da cidade onde vivo há 45 anos, Santo
André, SP e, mais recentemente, o de “Luzilândia”, Piauí. Outros
reconhecimentos, na área da cultura, também me foram ofertados. O casamento com
um brasileiro, nordestino, três filhas brasileiras e quatro netos brasileiros
só veio reforçar essa cidadania e filiação, da qual muito tenho me orgulhado,
sem, contudo, perder ou negar a minha naturalidade portuguesa, da qual também
muito me orgulho.
Assim, é na condição de cidadã brasileira, que me sinto à
vontade para dizer da perplexidade e gigantesca preocupação com a carga de
ódio, violência e preconceito revelada nos últimos tempos pela sociedade
brasileira, essa mesma onde me encontro inserida. Talvez este período pascal,
tão fortemente carregado de simbologia da passagem e renascimento seja
apropriado para esta reflexão.
Nos 10 dias em que deixei de interagir na rede social
Facebook, muito me perguntei se estas pessoas de quem ouço tantos impropérios,
leviandades e grosserias, seriam aqueles mesmos brasileiros (ou dos que,
como eu, foram “tornados brasileiros”) que aprendi a respeitar e dos quais me
tornei irmã? Em que porão sombrio de suas próprias vidas se escondiam? A imagem
cordial de dedicados pais e mães de família, uns, amigos leais, outros, não
passava então de uma máscara a cobrir esses cidadãos agora em gladiadores e
feras transformados? De que escaninhos insondáveis teriam vindo esses que agora
não reconheço que usam o espaço virtual como uma arena e urram a cada nova
estocada, proclamam por morte, sangue, pronunciando todo tipo de vilipêndios e
inconcebíveis injúrias? O Brasil tão colorido, abrasadora e
tropicalmente colorido, hoje é tristemente bicolor. E é ali, num suposto
estádio de futebol, que essas “torcidas” destes tempos tristemente fratricidas,
levianamente se digladiam com assustadora dose de violência e preconceitos. Os
desejáveis argumentos substituídos por ofensas.
São esses “cordiais” cidadãos que, surpreendentemente,
postam uma imagem sacra alusiva à Páscoa e à piedosa fé na vida eterna e na
ressurreição dos vivos e dos mortos, que, no post seguinte, publicam as mais
repulsivas imagens, memes e fotomontagens grosseiras denegrindo, pela mais
repudiável maneira aqueles que não falam “a sua língua”, ou seja, os
“bárbaros”. Os mais ferozes, para justificar seu patriotismo e sua
verdade, apropriaram-se indevidamente da bandeira brasileira e todas as demais
cores passam a ser apenas uma, a dos cidadãos “do mal”.
E neste jogo polarizado e histérico, constato, assim, que
faço parte do time “do mal”, ainda que não precise de bandeira alguma para me
cobrir. Na condição de cidadã de duas pátrias, jamais aceitei qualquer
“carimbo”, quer seja ele de cunho partidário, literário ou cultural.
Politicamente, sempre estive/estou do lado dos governos que estabeleçam
programas e políticas de estado que tenham como prioridade promover a
diminuição da desigualdade, o bem estar e a justiça social, sempre visando o
bem comum. Sim, eu me defino como um ser à esquerda que não está alinhado
com a lógica cruel do capital financeiro nem do mundo da economia e dos
negócios. Calei-me porque fui vítima desse jogo perverso e mortal que leva esta
grande nação para uma perigosíssima e inaceitável guerra fratricida que, de
fato, já ocorre nas ruas, nas escolas, nas igrejas, nos bares, nas rodas
familiares, cafés, restaurantes, filas de supermercado e bancos, a contar pelos
episódios de preconceito, violência e intolerância que são vivenciados e
noticiados cotidianamente. O jogo político está aí desde sempre. É o que
é. Podemos e devemos, como cidadãos, discuti-lo, mas o que não se pode, nem se
deve, é confundir esse jogo com o nosso dia a dia e achar que o nosso quintal
foi transformado em plenário permanente de guerras e paixões. O Brasil precisa
de cidadãos que dele se orgulhem e não contribuam com o "quanto pior
melhor" do jogo político e do poder. Eu (ainda) me orgulho.
Que esta imagem de
minha neta Iara (clic de Luzia Maninha) abraçada à sua boneca preferida, ou
melhor, a única que escolheu para brincar, simbolize o verdadeiro espírito de alteridade, vida
nova e renascimento. Paz e Feliz Páscoa ao Brasil