domingo, 15 de novembro de 2015

Mísia e Amália, Amália e Mísia – pelas trilhas do sentir



Já faz alguns dias que ouço os CDs deste encantatório álbum. Ouço, ouço e tento compreender as razões do enorme prazer estético que me proporcionam. Ao contrário da esfinge grega que prometia devorar aquele que não a decifrasse, o desafio que Mísia nos propõe é de outra ordem, caminha pelas trilhas dos sentidos e dos seus significados simbólicos ali presentes.  

Sem arcabouço técnico que possa me valer para uma análise musical, este meu comentário, caminha justamente por essas trilhas (do sentir).

Comecemos pelo “sentir” táctil do objeto. A capa, a produção gráfica do primoroso encarte  e verificaremos que nada aqui,  dos meticulosos e pensados detalhes de todo este delicado e, ao mesmo tempo, grandioso trabalho, está posto por acaso. Em cada minúcia, a marca e o bom gosto de Mísia, desde o conceito, a produção e a direção artística.

Desde o piano às tradicionais guitarras. Desde as participações especiais (Maria Bethânia, Martírio e Rogério Samora) à cuidadosa escolha dos fados, desde os inéditos, compostos especialmente para esta homenagem, quanto os que a própria Amália cantou, os mesmos, mas já outros. Sim, pois, assim como Amália, Mísia é artista única. Inimitável, jamais repete nem imita, faz de cada canção que interpreta a “sua” canção, ainda que a intenção, como neste caso, seja a de “homenagear”, como, de fato, homenageia.

Mísia nos diz que, mais do que um tributo, trata-se de “uma prenda” para Amália Rodrigues, que há 16 anos não está fisicamente entre nós, mas cuja “biografia continua a escrever-se” e permanece cada vez mais viva não só no coração dos que a amaram ao redor do mundo, mas no imaginário cultural e identitário do povo português. Uma prenda há anos acalentada e que agora, no seu tempo, é concluída. No seu tempo... Aquele tempo em que a maturidade atinge a dramaticidade e vivências requeridas. Um tempo que só poderia ser este, o de agora, que reafirma esta extraordinária artista como a voz de Portugal hoje.

Prosseguimos por esta senda e verificamos que a marca portuguesa é levada a tamanha altura que, por isso mesmo, atinge a universalidade. Num mundo perversamente globalizado, as culturas locais cada vez mais representam a diferença e a resistência, sem deixarem de pertencer a toda a humanidade, como é o caso do próprio Fado que, muito antes do reconhecimento oficial pela UNESCO, já o era.

Ouço e sinto: o piano (Maestro Fabrizio Romano, responsável também pelos arranjos),  ganha e empresta  sutilezas insuspeitas. Vai das quase imperceptíveis levezas à mais alta carga dramática, cujo exemplo maior está em “Tive um coração, perdi-o”, fado que inicia cantado à capela, já a indicar a intensa dramaticidade que virá a seguir. Mais do que um “acompanhamento”, neste caso específico, o piano é uma extensão da canção, ampliando o que a voz extraordinária de Mísia já diz.

Ponto também para Bethânia e Martírio que não se esforçam para “parecer” portuguesas, mas, sendo o que são (brasileira, espanhola, particulares e grandiosas) emprestam uma dignidade tamanha a esta participação que expande ainda mais os sentidos daquilo que cantam.

Confira aqui o clip do CD, dirigido por Maria de Medeiros, no qual Mísia canta este arrepiante fado:

https://www.youtube.com/watch?v=bZ5G0JFkBbw

Ouço e o que ouço me sugere que neste “Para Amália”, não há concessões (nem comerciais muito menos nas tais facilidades tão ao gosto da indústria cultural que sempre nos quer convencer de que o que é bom “não vende”). Contrariando também esta lógica, este é bom e, pelo que nos chega, está vendendo muito bem.

Para aqueles que, desafortunadamente ainda não sabem, Mísia é uma cantora portuguesa, com uma consolidada carreira internacional, iniciada em 1991. Desde então, já apresentou, além de Portugal, nas mais prestigiadas salas ao redor do mundo. Em seu  sofisticado repertório, constam poemas de grandes nomes da literatura portuguesa, como Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís, José Saramago, António Lobo Antunes e muitos outros. Alguns desses poemas foram escritos especialmente para sua voz.

Mísia virá ao Brasil nos próximos dias 19 (SP) e 20 (RJ) para recitais com repertório deste seu novo trabalho, “Para Amália”, um algum duplo, lançado simultaneamente em Portugal, Brasil e outros países e, desde o dia 31 de outubro, vem obtendo grande repercussão de público e de crítica. Ao que tudo indica, caminha para ficar marcado como o acontecimento musical do ano.

Não estarei em São Paulo no dia 19.11 e, desconsoladamente triste, não a verei no Teatro J. Safra. Guardarei comigo, à espera da próxima oportunidade, dois especiais momentos em que a vi cantar em São Paulo e fiquei rendida pelo hipnótico carisma de alguém que não canta apenas com a voz, mas com todo o corpo. Mais do que dizer e interpretar, significa. Para consolo próprio, seguirei ouvindo este Para Amália, além da dezena de outros CDs que ao longo dos últimos 10 anos tenho, incansavelmente ouvido,  desde que, de forma fortuita,  fui “convidada” a ouvir “Paixões Diagonais”, CD que “descobri”, sem nenhuma informação prévia, perdido numa gôndola de supermercado. Sedução à primeira vista, à primeira audição.

Para quem, por ventura, tenha se interessado, deixo aqui, mais informações (preciosas), copiadas do site oficial de Mísia:
“trata-se de um álbum duplo, gravado em Lisboa no final de 2014, ano em que se cumpriram os 15 anos da desaparição física de Amália Rodrigues. “Para Amália” foi construído não só com o repertório amaliano mas também com temas inéditos criados especialmente para este trabalho.
O primeiro disco, piano e voz, é constituído por músicas na sua maioria de Alain Oulman mas também de Carlos Gonçalves, Fontes Rocha. Poemas de David Mourão Ferreira, Amália, Afonso Lopes Vieira, Pedro Homem de Mello, etc.
O segundo disco, guitarras de Fado, tem um ambiente musical mais tradicional, incluindo Fados muito populares e um tema de folclore.
Textos inéditos de Amélia Muge, Tiago Torres da Silva, Mário Cláudio e Mísia escritos em tributo a Amália Rodrigues.
Neste álbum participam a grande  intérprete  brasileira Maria Bethânia cantando com Mísia “Amália Sempre e Agora”, um dos 4 inéditos deste disco (Música Mário Pacheco e poema de Amélia Muge), o actor Rogério Samora alternando com a voz cantada de Mísia diz magistralmente o poema “Amor sem Casa”  de Teresa Rita Lopes e a  carismática cantora espanhola Martírio  num dueto com  Mísia  interpreta  “Maria La Portuguesa” canção que Carlos Cano, compôs,  dedicada  a Amália  Rodrigues. De salientar o talento musical do maestro napolitano  Fabrizio Romano nos arranjos de todos os  temas do  CD1.
Em concerto, “Para Amália" pode apresentar-se em 2 versões: uma mais intimista, piano e voz, outra completa, na qual as guitarras se juntam ao piano. Em ambas, um efeito visual da projecção em loop da jóia preferida de Amália Rodrigues, vai pulsando em várias cores palavras chave do Fado: destino, voz, saudade, mulher, etc.
"Amália tornou-se eterna e está mais viva do que nunca. O Tempo contido na sua obra e o youtube trabalham nesse sentido”. Mísia”




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Cozinha e literatura ou das sincronicidades do espírito


Por estes dias, pousou em minha escrivaninha um pacote postado no Porto, algum tempo antes (a travessia atlântica, no que se refere a pacote enviado através dos correios, parece ter, por vezes, voltado ao ritmo das caravelas) por José Viale Moutinho, ilustre escritor meu conterrâneo e, o que é melhor, meu amigo.


Nada menos do que 5 livros saíram dali e vieram enriquecer a minha prateleira vialemoutiniana (“o diabo coxo – ocasionário fabuloso”, “Contos Populares das Ilhas da Madeira e do Porto Santo”; “Portugal Lendário – tesouro da tradição popular” uma obra monumental publicada pelo Círculo de Leitores, com 524 pgs.;  “Entre Povo e Principais”, uma novela, em 2ª. edição, com Prefácio de Agustina Bessa-Luís, que diz : “Viale Moutinho é um dos últimos românticos do bem-dizer (....) Faz bem aos nervos lê-lo; faz bem à alma viver com os seus homens duros, os generais cravejados de medalhas, os caçadores atrás das lebres (...)”; o quinto e, para mim, mais importante (e já digo porquê) “Um jantar de escritores – seleção de textos e notas epicuristas”.
À alegria indescritível de sempre, a de abrir pacotes, saboreando de antemão o prazer estético de fruir seus conteúdos, juntou-se o sentimento de surpresa que reafirma a crença naquilo que Jung chamou de sincronicidade, ou seja, acontecimentos que se relacionam por seus próprios significados e não meramente pela causalidade.
É que no exato momento da chegada do pacote, estava eu dedicada à pesquisa sobre o papel da gastronomia na literatura, ou melhor, como é que a comida é “tratada” na ficção e na poesia de alguns escritores (naquele momento debruçava-me sobre Eça de Queiroz, o exemplo mais evidente na minha memória literária e valia-me do exaustivo trabalho de Dário Moreira de Castro Alves em “Era Tormes e Amanhecia – Dicionário gastronômico cultural de Eça de Queirós”). Preparava-me, com isso, para atender a um convite que recebi para integrar uma mesa de diálogo no Congresso Metodista, sob o tema  “Comida, Educação e Arte”, da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, no próximo dia 11. É evidente que ao me deparar com este “Um jantar de escritores – seleção de textos e notas epicuristas” estabeleceu-se de imediato a tal sincronicidade e, de quebra, muito contribuiu com minha pesquisa que, diga-se, não era do conhecimento de seu autor.
Neste, literalmente, saboroso livrinho, além do inevitável Eça, entra também o Camilo, sobre quem Viale Moutinho já publicou “Camilo e o Garfo” e uma farta mesa de banquetes da boa literatura portuguesa, passando pela poesia de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almeida Garrett, Bocage, António Nobre e Cesário Verde, bem como por romances e crônicas de Bulhão Pato, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão,  e tantos outros.

E viva a sincronicidade do espírito! Bem haja o Zé Viale, prolífico e original escritor, com sua generosidade transatlântica.