Por incontáveis vezes, publiquei
textos acerca do universo do livro usado, das surpresas ao abrir certos volumes
e encontrar “perdidos” em suas páginas
objetos como fotos, cartões postais, bilhetes de ônibus, ingressos de teatro,
selos, recados, flores secas, santinhos, calendários, cartas e até chaves,
contam histórias de boa parte da história pessoal de quem os leu ou folheou, ou
seja, não apenas os rastros de seus antigos proprietários, mas também algumas
sincronicidades inesperadas.
Pois bem, a história de hoje é a
seguinte: aqui chegaram, via correios , três livros
encomendados por mim em diferentes sebos abrigados no portal Estante Virtual, onde, para
minha desgraça, encontro praticamente tudo o que desejo ou preciso. Ali,
possivelmente, compro mais livros para minhas estantes pessoais (a minha conta
registra 535 volumes adquiridos) do que vendo pela minha livraria, a
Alpharrabio que, aliás, está fechada desde o início de março, inclusive o comércio virtual que, por nossa opção, para não furar o isolamento social. Assim, não vendo, só
compro e alimento meu vício maior que é cheirar livros.
O primeiro pacote, embrulhado em
papel de jornal, traz como remetente um sebo da cidade de Mirandópolis,
interior de São Paulo. Aberto com todo o
cuidado (aliás, já pensei em fotografar ou guardar as encantadoras embalagens dos
livros que recebo de sebos de todo o Brasil – nenhuma é igual), foi esse volume da foto, com uma capa
absolutamente explícita sobre a ideologia de seu conteúdo. Na cruz, carregada
por um homem negro acorrentando, lê-se “Não se pode servir a dois senhores”. A
autora, uma “noviça rebelde” que então assinava
M. V. Rezende. “Sem agressividades desnecessárias, com muitas
referências estimulantes. Mas desadulterando a memória”, é o que diz o
prefácio, assinado por D. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia,
MT, outubro de 1980, EHILA – Comissão de Estudos de História da Igreja na
América Latina, versão popular, Editora Todos Irmãos, 104 pgs. Numa das
ilustrações internas, lê-se a seguinte legenda: “Condenados aos açoites, os
escravos eram levados da prisão à Igreja para pedir perdão de seus pecados
antes de serem amarrados ao pelourinho e açoitados. Igreja e poder colonial
estavam unidos”.
O curioso desta história, é que a contrastante
manchete do jornal em que o volume veio embalado (capa do “Informativo mensal
da Igreja Internacional da Graça Divina”, datada de março de 2001): “Cálculos
renais expelidos após a oração”, com a foto do homem contemplado pela oração
exibindo as tais pedrinhas. Sem poder deixar de rir, fiz-me a seguinte
pergunta: em que raios de escaninho ficou guardado por 19 anos esse jornal
evangélico? de onde foi retirado para vir embrulhar um livro publicado 21 anos
antes por autora católica, rebelde,
ligada à chamada “teoria da libertação” e neste pandêmico ano, 40 anos depois
de sua publicação veio papar em Santo André, SP? Coisa de louco!
O segundo pacote, igualmente
embalado de forma artesanal e cuidadosa junto a uma capa rígida retirada de
algum volume danificado com a finalidade de proteger a frágil brochura. Consta como remetente, “O Sebo Cultural”, em João Pessoa. “História
da classe operária no Brasil – gestação e nascimento 1500 a 1888 – 1º
caderno”, é seu título. Brochura de 50
páginas que, igualmente ao livro anterior, traz uma capa bastante explícita muito
diz da ideologia dos que o escreveram. Foi publicado pela Ação Católica
Operária, em maio de 1985. Na apresentação desta quarta edição, fala-se que a
“ideia de escrever essa História da Classe Operária no Brasil, surgiu no
período de 1971 a 1974, quando o Movimento Operário estava aparentemente
sufocado pela lei anti-greve e pelo regime repressivo controlando a direção dos
Sindicatos (...) Esta é uma história
escrita por trabalhadores, por isso está numa linguagem simples” (aliás, enganosamente
“simples”, posto que é bem escrita e extremamente didática - observação minha), mas não cita nomes dos
autores. Não cita, mas uma das autores revelou em recente entrevista, que a
brochura de autoria coletiva, teve a sua colaboração, ou seja, a M.V. do outro
livro citado, ou melhor, Maria Valéria Rezende, autora hoje largamente
reconhecida como ficcionista.
O terceiro volume, “Antiuniverso”,
de Fernando Py, Editora Sette Lebras, 1994, foi adquirido como uma singela forma
de preito por seu autor, falecido recentemente, poeta, crítico e pesquisador literário, que me
deu a honra de resenhar dois ou três dos meus livros.
Pois bem, não era minha intenção escrever
um texto tão longo, mas não poderia deixar passar a oportunidade de lhes contar
mais uma historiazinha que ilustra estes três casos.
A minha biblioteca, composta por
milhares de livros acumulados ao longo de 60 anos, foi formada por
circunstâncias semelhantes a esta, ou seja, uma leitura ou conversa, leva a
outra e essa outra leva a outra. Antes, eu anotava em cadernetas os livros “a
comprar”, quase sempre fora de catálogo, referidos em obras lidas. Com sorte,
fui adquirindo nos sebos que costuma frequentar, pelo menos uma vez por semana.
Com a chegada da era cibernética e o comércio virtual, mais precisamente a
partir de 2005, anos da criação do portal “Estante Virtual”, por André Garcia,
um então jovem estudante carioca que ficou milionário e acabou por vendê-la à
Livraria Cultura em 2017. Sem nenhuma visão do comércio de livros usados e já
notoriamente falida, a Cultura transformou a EV em outra coisa, permitindo a
venda também de livros novos, e conduzindo sua relação com os alfarrabistas com
a mesma lógica das “mega”. Como profissional do livro, mantive meu acervo lá,
mas reduzi muito as compras particulares. Felizmente,
durou pouco a gestão e, em 2019, a Magazine Luiza passou a ser proprietária do
portal, quando o mesmo alcançou a impressionante marca diária de 10.000 livros,
vendidos por mais 2.500 sebos localizados em todo Brasil. Vibrei com a notícia,
pois a “Magalu” é dirigida por uma mulher empresária com ações “socialistas”, nada
comprometidas com o neoliberalismo vigente. Voltei a comprar com entusiasmo. Isso significa que a minha biblioteca cresceu
exponencialmente nestes últimos 15 anos, por conta da facilidade e rapidez da
compra num simples clic.
Comigo as compras funcionam assim:
estou lendo um livro ou ouvindo alguma pessoa citar determinado livro que me
interessou, caso não o possua, vou ali ao computador, e lá está o que preciso
(preciso?) e a minha curiosidade manda. Assim foi com estes três livros, cuja
compra foi motivada por ouvir Maria Valéria Rezende, numa entrevista recente e
pela notícia da morte do Py. A minha “Valeriana” vai, assim, ficando linda e
completa, graças, sobretudo, aos sebos destes brasis, guardiões da memória. dtv