A mala já estava pronta. Dentro, cadernetas para o diário
de bordo e a polaroid, com o estoque de filmes para os registros instantâneos
de mais um retorno ao meu país natal. Um compromisso literário (participação na
44ª. Feira do livro do Funchal) e mais um mergulho no rizoma (quem sabe um novo
projeto de livro). Foi quando o
imponderável bateu à porta. O coração do meu velho acompanhante deu sinal de que algo não estava
bem. Hospital, exames, cateteres, stent, cirurgia, uti, a espera do tempo
parado, a angústia da incerteza. Em lugar do aeroporto, a estação purgatório,
onde trocamos de papel. Agora sou eu sua acompanhante. Mas como já me dizia o velho Chico Boíba,
lavrador seu conterrâneo, nascido nas barrancas do Rio Parnaíba, “nordestino é
feito juriti, avoa depois do tiro mesmo com as tripas de fora”. Dito e feito,
foi assim. Valdecirio, aos76 anos, a serem completados ainda este mês, deixou a
equipe médica boquiaberta. Após 10 dias sob cuidados intensivos, segue
hospitalizado, mas agora no quarto, etapa que antecipa a alta (para casa). A
recuperação será lenta e provavelmente demorada, mas certa, acredito e tento me
adaptar.
A viagem programada não foi registrada, mas a temporada
no purgatório, sim (pela poesia, que é a forma que escolhi para isso).
uma estação no purgatório
“Antigamente, se
bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os corações exultavam, no
qual corriam todos os vinhos.” AR
I
a sua dor
dói
em mim
ele sou
eu, a mesma
essência
amalgamada
quatro décadas
e meia e mais
repartidas
confundidas
somos dois
e
somos um
sua dor
a minha
dobramento
dobradiça
enfermiços
26.5.2018
II
o corpo, a sacralidade
do corpo
o corpo, a dignidade
do corpo
subsistem apenas
na
autonomia
rasgado
vísceras
excrementos
expostos
:
devassa sacrílega
profanação
na dependência alheia
o corpo
deixa de ser
27.5.2018
III
no confinamento
enfermo
tudo
é espera
tempo sem horas
artificial, o ar
o
quarto
a
janela
provisória, a casa
simulacro, o viver
28.5.2018
IV
alógeno, este sol
não aquece
não aquece
enganosamente
quente, esta luz
não dissolve
não dissolve
as sombras
geladas
indissolúveis
29.5.2018
V
no reino da assepsia
habitam
sorrisos protocolares
discursos ensaiados
jalecos amarrotados
olhares insones
boletins pontuais
(glicemia, pressão arterial,
hemoglobina, ina... ina... ina...)
preenchem as horas
30.5.2018
VI
priim... (...) priim... (...)
a máquina justifica sua função
ploc... (....) ploc... (...)
a bolsa goteja disciplinadamente
plasma
e drogas
colecionar ruídos
:
(onomatopeia indesejada)
agenda do dia
31.05.2018
VII
insubordinar-se
:
não se estima
não se aceita
neste meio
neste seio
neste sem
aconchego
submeter-se
:
a regra
tácita
inegociável
01.06.2018
VIII
verde, amarelo, vermelho
cinza... cinza... cinza...
cromatismo do dia/noite
vermelho/ vigilância
sinais e apreensão
a permanência
02.06.2018