segunda-feira, 4 de junho de 2018

uma estação no purgatório


A mala já estava pronta. Dentro, cadernetas para o diário de bordo e a polaroid, com o estoque de filmes para os registros instantâneos de mais um retorno ao meu país natal. Um compromisso literário (participação na 44ª. Feira do livro do Funchal) e mais um mergulho no rizoma (quem sabe um novo projeto de livro).  Foi quando o imponderável bateu à porta. O coração do meu velho  acompanhante deu sinal de que algo não estava bem. Hospital, exames, cateteres, stent, cirurgia, uti, a espera do tempo parado, a angústia da incerteza. Em lugar do aeroporto, a estação purgatório, onde trocamos de papel. Agora sou eu sua acompanhante.  Mas como já me dizia o velho Chico Boíba, lavrador seu conterrâneo, nascido nas barrancas do Rio Parnaíba, “nordestino é feito juriti, avoa depois do tiro mesmo com as tripas de fora”. Dito e feito, foi assim. Valdecirio, aos76 anos, a serem completados ainda este mês, deixou a equipe médica boquiaberta. Após 10 dias sob cuidados intensivos, segue hospitalizado, mas agora no quarto, etapa que antecipa a alta (para casa). A recuperação será lenta e provavelmente demorada, mas certa, acredito e tento me adaptar.
A viagem programada não foi registrada, mas a temporada no purgatório, sim (pela poesia, que é a forma que escolhi para isso). 

uma estação no purgatório
       “Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os corações exultavam, no qual corriam todos os vinhos.” AR


I

a sua dor
          dói
em mim

ele sou
eu, a mesma
         essência
         amalgamada

quatro décadas
      e meia e mais
      repartidas
      confundidas

somos dois
e
somos um

sua dor
a minha

dobramento
dobradiça
enfermiços

26.5.2018





II

o corpo, a sacralidade
                    do corpo
o corpo, a dignidade
                   do corpo
subsistem apenas
               na autonomia

rasgado
vísceras
excrementos
expostos
:
devassa sacrílega
profanação

na dependência alheia
o corpo
deixa de ser

27.5.2018

 


III

no confinamento
      enfermo
      tudo
é espera

tempo sem horas

artificial, o ar
                 o quarto
                 a janela

provisória, a casa

simulacro, o viver

28.5.2018

 


IV

alógeno, este sol
   não aquece
   não aquece

enganosamente
quente, esta luz
   não dissolve
   não dissolve

as sombras
geladas
indissolúveis


29.5.2018

 


V

no reino da assepsia
habitam
sorrisos protocolares
discursos ensaiados
jalecos amarrotados
olhares insones

boletins pontuais
(glicemia, pressão arterial,
hemoglobina, ina... ina... ina...)
preenchem as horas

30.5.2018


 


VI

priim... (...) priim... (...)
a máquina justifica sua função

ploc... (....) ploc... (...)
a bolsa goteja disciplinadamente
              plasma e drogas

colecionar ruídos
:
(onomatopeia indesejada)
agenda do dia


31.05.2018

 


VII

insubordinar-se
:
não se estima
não se aceita

neste meio
neste seio
neste sem
           aconchego

submeter-se
:
a regra
   tácita
inegociável


01.06.2018




VIII

verde, amarelo, vermelho
cinza... cinza... cinza...

cromatismo do dia/noite

vermelho/ vigilância
sinais e apreensão
a permanência

02.06.2018