sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Ponto Corrente – Mulheres, repressão e teatro nô

Era uma noite de um dia tenso, aquela do dia 31 de agosto. 

Uma noite que trazia como presságio a possibilidade daquele dia que morria, vir a durar 20 anos, assim como durou um dia semelhante, no já longínquo 1964.

Carregada de abatimento, fui. Não poderia faltar. Afinal, ali, no palco do Teatro Municipal de Santo André, estaria o Grupo Pontos de Fiandeiras, com o espetáculo Ponto Corrente. Artistas de fibra, gente que admiro e acompanho com interesse, desde o primeiro trabalho. 

Ali, pelas artes da arte, aspectos da História de um obscuro período brasileiro, a ditadura Civil Militar (1964-1984) passava pelas mentes e corações do público presente, diga-se, em número surpreendente para um dia como aquele.

A peça, com a dramaturgia sempre sensível e elaborada de Adélia Nicolete, é o resultado de exaustiva pesquisa do grupo Pontos de Fiandeiras, sobre mulheres ativistas no ABC nos anos 60 a 80. Mulheres que não esmoreceram, ainda que o silêncio imposto pelas circunstâncias e cultura machista tentasse, sem êxito, o apagamento de seu papel.

Maria da Graça, Maria da Fé, Maria das Dores, Maria Auxiliadora, mulheres que sustentaram, nos bastidores, mas sempre de forma decisiva, a manutenção das grandes greves de 1979 e 1980 na região. Marias que, na linha de frente, lutaram por creche, moradia, mobilidade e outras causas sociais. Mulheres, cujos corpos lembram a desmoralização, mas que hoje “determinam onde é o seu lugar”. Marias que entristeceram quando ouviram os Joões dizerem que “construíram tudo sozinhos”, mas seguiram à busca da própria identidade. Marias que amaram até o limite do amor, na clandestinidade. Mulheres que já sabiam que “quem não conclama convoca os ditadores.  Mulheres que o grupo agora revela, através de sua pesquisa de campo, retirando-lhes os véus de suas respectivas histórias.

Mas é teatro... Diz o bordão da peça, que se vale de elementos do Teatro Nô e, como na vida real, de alegorias para camuflar verdades.

A metáfora do navio conecta os fatos de então (viagem, retorno ao recordar) aos dias de hoje. O elenco, composto pelas jovens e talentosas atrizes Camila Shunyata, Roberta Marcolin Garcia, Fernanda Henrique e Vivian Darini “materializa” de forma muito digna e verdadeira essas personagens saídas da vida real direto para o teatro.

Sim, é teatro, mas é tudo verdade e vale, para além do deleite da arte, também para reflexão sobre os dias que passam. 

Ao final da apresentação, a grata surpresa: chamaram a atriz Sonia Guedes, decana do nosso teatro andreense, presente na plateia, a quem homenageiam com uma fala no final da peça. Tudo muito singelo, tudo muito bonito.


Tudo aquilo, confesso, acabou me deixando, como diria o Poeta maior, “comovida como o diabo”.

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