No
último sábado, 13.08.16, na Casa das Rosas, em São Paulo, participei do recital
“Poesia sem Quartel”, sob a curadoria de Hamilton Faria e Luiz Roberto Guedes. Uma
noite muito significativa. Casa cheia de gente interessada. Verdadeiro momento
de rebeldia poética. O passado tristemente lembrado, contra um presente
incerto.
Havia
preparado um texto para ler na ocasião, mas percebi que seria impossível dize-lo nos 10
minutos que haviam reservado à minha participação. Assim, li uma versão mais
condensada, apenas com o poema de Lea Aparecida de Oliveira.
Deixo
aqui a íntegra da primeira versão que vai além e lembra e homenageia outras
pessoas:
De
acordo com a crendice popular, este é o mês de cachorro louco e este dia é do
azar. A poesia está aqui, como sempre, para desconstruir e reafirmar outras
verdades fora das paredes estabelecidas.
No
dia 1º de abril de 1964, uma quarta-feira cinzenta, 18 anos incompletos,
estagiária na FIESP (quem diria!), fui dispensada do trabalho junto aos demais
funcionários. “Fiquem tranquilos, o país passa por uma revolução democrática”,
disseram-nos, e eu, analfabeta política, acreditei. Era, sublinhe-se,
literalmente, um Primeiro de Abril.
As
Manchetes dos principais jornais dos dias seguintes, reforçavam a orientação
dos meus patrões: “Vitorioso o movimento democrático”, O Estado de São Paulo.
Ressurge a Democracia. Vive a Nação dias democráticos”, O Globo. “Lacerda
anuncia volta do país à democracia” Correio da Manhã, entre outros.
O
setor em que eu trabalhava era o das comunicações, ao qual estava ligada a
sessão da imprensa, onde trabalhavam, dentre outros, o jornalista e já então
poeta de 2 livros publicados, Álvaro Alves de Faria de quem me tornei
admiradora e amiga desde então, e que iniciaria no ano seguinte um movimento,
dentre os muitos outros à época, de recitais públicos na ruas e praças de São
Paulo que resultaria, nesse mesmo ano no livro O Sermão do Viaduto. Era já, a
poesia sem quartel, mas que mandava os poetas para os porões fétidos de um
quartel, o DOPS.
E
de sermão em sermão, de notícias e não notícias, fui me alfabetizando
politicamente.
Em
1967 vou trabalhar, no cargo de secretária administrativa, numa indústria
multinacional de autopeças em São Bernardo do Campo, no chamado Grande ABC,
região metropolitana de São Paulo composta por sete municípios (S.A., SBC, SCS,
Diadema, Mauá, R.Pires e R.G.S). O contato com outra realidade, ou seja, a
possibilidade de ouvir simultaneamente e comparar os discursos dos capitães de
indústria, meus patrões, bem como, gradualmente, também o dos peões, novos
personagens que no final dessa década, início da seguinte, entrariam de forma
surpreendente na cena nacional brasileira, através das lutas operárias travadas
e inegáveis conquistas sociais.
1968,
atenta ao mundo, a revolução comportamental deflagrada em Paris desperta de vez
a consciência e me faz olhar mais agudamente para o Brasil e o meu entorno. Em
minha mesa de trabalho, uma reprodução de um grafite nos muros da Sorbonne que
acabou virando slogan de toda uma juventude planetária da época: Seja realista
exija o impossível. Era a minha ainda ingênua forma de ser “revolucionária” e a
partir daí, foi na palavra e, posteriormente, na ação cultural que a minha
“revolução” se deu. No final desse mesmo ano, com o AI-5, não havia mais como
ignorar o que se passava no país.
Em
1972 caso-me com o advogado Valdecirio Teles Veras e fixo residência em Santo
André. Valdecirio era assessor jurídico do Sindicato dos Metalúrgicos e foi meu
professor de política, atualizando-me com as notícias que os jornais não davam.
Devo a minha politização a ele e ao seu colega de lides advocatícias e
literárias, o já muito saudoso Antonio Possidonio Sampaio, amigo-irmão a quem
presto aqui uma homenagem. Por 44 anos, formávamos um trio inseparável. Devo a
ambos também o meu interesse pela política no seu sentido mais amplo, o da
participação cidadã, o interesse pelas políticas públicas que visassem o bem
comum através da inclusão social.
Na
virada dos anos 70 para os 80, O ABC demonstra uma grande capacidade de
mobilização popular. A luta nas ruas estende-se também para os movimentos
grevistas, emergência do chamado novo sindicalismo, exemplo para uma tomada de
consciência política nacional. Os olhos voltados para a região do Grande ABC
que se insere na moderna história do país, artistas brasileira capturam esse
clima através de sua arte. Dentre muitos, lembro aqui Leon Hirzman que leva para o cinema a peça
Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri, que também assina o
roteiro do filme, transpondo-o para o ABC. Antonio Possidonio Sampaio. São de
sua autoria, romances imprescindíveis para compreender esse período obscuro e
violento da vida brasileira, “Sim Sinhor, Inhor Sim, Pois Não” (contemplado com
o 1º lugar no I Concurso Escrita de Literatura e publicado como encarte no
número 17 da revista Escrita em 1971), “A Capital do Automóvel (na voz dos
operários)”, 1979 e Lula e a Greve dos Peões, 1982, livros que traduzem esse
cenário de inquietações.
A
sociedade dá mostras e vontade de reorganizar-se e nascem novas perspectivas
culturais. A par das reivindicações por melhorias sociais, o Sindicato dos
Metalúrgicos, através do seu Departamento Cultural, também assumia um
compromisso com a cultura e a arte, não só como meios de lazer dos operários,
mas também como instrumento de conscientização política, através de ofertas
artísticas de qualidade. O Grupo Forja, criado em 1979 e dirigido por Tin
Urbinatti, encena textos sobre o universo operário, através de criações
coletivas dos próprios operários. São promovidos festivais de música e ciclos
de cinema. A política e a cultura se entrecruzam e operam mudanças profundas na
sociedade. Sem amparo institucional, artistas criam um clima de verdadeira
efervescência, formam-se coletivos de debates, levantam-se contra a censura em
concursos literários, abrindo um processo de discussões que não teria volta até
o completo restabelecimento da democracia no país.
Foi
pela mobilização popular e pela cultura que o Brasil deu a resposta. Na região
paulista do ABC não foi diferente, ou melhor, foi muito mais.
É
preciso sublinhar o importante papel das mulheres em todo esse período.
Mulheres que pegaram em armas, que foram à luta em pé de igualdade com os
homens, mulheres que lutaram por creches e outros direitos, mulheres que,
juntas, e em seus múltiplos e estratégicos papéis, sustentaram de forma
decisiva a manutenção das greves, tanto na resistência quanto na retaguarda das
lutas. Mulheres que a história tentou
silenciar, mas não conseguiu e que estão recontando sua história nos últimos anos,
através de pesquisas, depoimentos, livros, Congressos, Encontros e Seminários,
como o que ocorreu recentemente no ABC sob o tema “A justa rebeldia das
mulheres na América Latina e Caribe”, reunindo mulheres que participaram de
guerrilhas, não calaram e vieram contar a sua própria história. Dentre outras muitas iniciativas de resgaste
da história das mulheres, também o grupo de teatro Ponto de Fiandeiras, vem
pesquisando e encenando como resultado de suas pesquisas, a história da mulher
operária e da mulher que resistiu aos anos de repressão política. Seu mais recente trabalho é a peça "Ponto Corrente" que retrata o papel e a militância feminina contra a ditadura.
Diante
das odiosas e inaceitáveis manifestações machistas e misóginas destes tempos,
novamente tristes e sombrios, escolhi alguns poemas de mulheres para esta
ocasião e começo com Léa Aparecida de Oliveira. Trata-se de um nome
desconhecido nos meios literários, mas que muito significa neste contexto que
acabo de narrar. Léa, operária de chão de fábrica, militante sindical e
política, eleita, vereadora na cidade de Mauá, lá no meu subúrbio do ABC.
Morreu precocemente num acidente automobilístico e publicou 3 livros de poemas.
O longo poema OS MISERÁVEIS é de seu livro O Sol & Eles, Massao Ohno, 1981,
livro que é dedicado “À memória dos milhares de companheiros que perderam suas
vidas na anonimacidade entre o barulho estridente das máquinas e o ferro em
brasa...”. Alguns excertos:
OS
MISERÁVEIS
(...)
No
ABC eu caminhava aprendendo
o
A do Bê e o Bêabá, o que será, o que será?
-
Tic-tac-tic-tac-tic-tac...
(...)
Logo
viria a queda do Skylab, poderia
ser
o fim, ninguém sabia onde ele ia cair.
Torcia
para que caísse lá em Brasília na
cabeça
do Figueiredo. Já os companheiros da
fábrica
pediam que caísse na cabeça dos chefetes,
réplicas
menores da repressão
-
Tic-tac-tic-tac-tic-tac...
A
polícia toda estava alerta para qualquer
movimentação,
um passo nosso, nós da ralé,
evaporaríamos,
sumiríamos
Já
teria dito Essenine poeta da época de Maiakóvsky:
“Nesta
vida morrer não é nada de novo,
mas
viver também não é muito mais novo”.
-
Tic-ta-tic-tac-tica-tac-tic-tac...
(...)
As
greves tinham passado em abril de setenta e
nove
e ninguém tinha como eu a maior certeza que
poderíamos
virar a mesa. Era questão
de
sobrevivência.
Conquistaríamos
a vida ou morreríamos de vez.
Mas
tantos optaram pela morte lenta e gradual
do
dia a dia, o baixo salário, a instabilidade,
as
horas extras, a produção de milhares,
milhões,
bilhões, trilhões de peças, máquinas
carros,
com o lema Maior quantidade menor
qualidade,
as péssimas condições de trabalho
e
ainda achando que ver os “gigantes” da Globo é
lazer.
-
Tic-ta-tica-tac-tic-tac...
Foi
quando o meu eterno amor sumiu do mapa,
assim
como um clic, e... pronto! Sobreviveria
mais
por preservação do que vontade de viver.
Depois
tinha meu amor pela classe, muito mais
forte,
e era estranho amar assim quando a
indiferença
nos apunhala pelas costas. À merda
tudo
e todos!
-
Tic-tac-tic-tac...
(...) não sou dessas mulheres que
só
dizem sim. Só digo não!
(...)
e todas as vezes
que
passei correndo na frente do trem e sentia meus
pés
pesados fincados no chão era por instinto
que
corria. Mas e os amigos? Uns lá, outros
cá.
Uns mais prá lá do que pra cá?
-
Tic-tac-tic-tac...
(...)
O
momento ia chegando. Tudo estava tenso
Por
mais que me apressasse e corresse. Por
mais
que tentasse quebrar as minhas correntes
e
as dos outros, chegava o momento assim
como
um torturador profissional que manja da
arte
do pavor, do medo, chegava.
- Não, não, não me entregaria assim de mão
beijada.
Nada disso. Iria resistir até o fim.
(...)
Naquele
dia assassinaram em São Paulo o Santo.
Deram-lhe
um balaço que me estonteou e o levou
à
morte. Eu queria berrar a minha dor, meu peito
dilacerado
com os companheiros também mortos
em
Minas, era muito, não poderia aguentar tanto
e
o momento aproximando-se...
Quem
sabe se botasse fogo na fábrica, ou desse
uns
bofetes na cara daqueles puxa-sacos de merda.
Era
isso! E ia gritar, berrar, sapatear, sei lá...
Fiz
um longo poema e o declamei no meio da seção
subvertendo
aquele silêncio fúnebre e mal tinha
acabado
de dizê-lo já me haviam dedado.
(...)Não
me entregaria. Não iria pedir água. Não e não! Jamais
iria
me aliar aos miseráveis. (...)
-
Tic-ta-tic-tac-tic-tac...
Corri
desesperadamente quando a política tomava
toda
a cidade, as ruas, à paisana, a cavalo,
em
motos, viaturas, camburões. Eu não me
entregaria.
Assim não! Corria e lembrava do Santo;
o
Metalúrgico. (...)
Corri
e o tic-tac-tic-tac... agora mais
forte.
Maldito relógio me denunciando com suas
pancadas
incontidas e os prédios me sufocando.
(...)
Tenho que resistir até o fim.
(...)
Há repressão! Os policiais. Há censura!
Há
auto-censura! Eu não era mais eu. (...)
A
dor, há dor, ... (...)
Impossível
deixar de chorar. (... )
Era
necessário que resistisse.
Podia
dar um tiro na cabeça e estourar os miolos.
Mas
ninguém me compreenderia. Era tarde demais.
(...)
Mas não havia mais tempo pra lamentos
nem
porquês. Chegou a hora. (não teria misericórdia.
Consumado
o fato. As ruas tomadas de
policiais.
Meia-noite. Zero-hora.
Do
relógio da igreja matriz um bléim
encheu
o mundo.
QUATORZE
DE NOVEMBRO DE MIL
NOVECENTOS
E SETENTA E NOVE. Amanheceu!
Além
me disse:
-
FELIZ ANIVERSÁRIO!
Mauá
14.11.79
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