segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Poesia Sem Quartel - Casa das Rosas 13.08.2016

No último sábado, 13.08.16, na Casa das Rosas, em São Paulo, participei do recital “Poesia sem Quartel”, sob a curadoria de Hamilton Faria e Luiz Roberto Guedes. Uma noite muito significativa. Casa cheia de gente interessada. Verdadeiro momento de rebeldia poética. O passado tristemente lembrado, contra um presente incerto.



Havia preparado um texto para ler na ocasião, mas percebi que seria impossível dize-lo nos 10 minutos que haviam reservado à minha participação. Assim, li uma versão mais condensada, apenas com o poema de Lea Aparecida de Oliveira.

Deixo aqui a íntegra da primeira versão que vai além e lembra e homenageia outras pessoas:  

De acordo com a crendice popular, este é o mês de cachorro louco e este dia é do azar. A poesia está aqui, como sempre, para desconstruir e reafirmar outras verdades fora das paredes estabelecidas.
No dia 1º de abril de 1964, uma quarta-feira cinzenta, 18 anos incompletos, estagiária na FIESP (quem diria!), fui dispensada do trabalho junto aos demais funcionários. “Fiquem tranquilos, o país passa por uma revolução democrática”, disseram-nos, e eu, analfabeta política, acreditei. Era, sublinhe-se, literalmente, um Primeiro de Abril.
As Manchetes dos principais jornais dos dias seguintes, reforçavam a orientação dos meus patrões: “Vitorioso o movimento democrático”, O Estado de São Paulo. Ressurge a Democracia. Vive a Nação dias democráticos”, O Globo. “Lacerda anuncia volta do país à democracia” Correio da Manhã, entre outros.
O setor em que eu trabalhava era o das comunicações, ao qual estava ligada a sessão da imprensa, onde trabalhavam, dentre outros, o jornalista e já então poeta de 2 livros publicados, Álvaro Alves de Faria de quem me tornei admiradora e amiga desde então, e que iniciaria no ano seguinte um movimento, dentre os muitos outros à época, de recitais públicos na ruas e praças de São Paulo que resultaria, nesse mesmo ano no livro O Sermão do Viaduto. Era já, a poesia sem quartel, mas que mandava os poetas para os porões fétidos de um quartel, o DOPS.
E de sermão em sermão, de notícias e não notícias, fui me alfabetizando politicamente.
Em 1967 vou trabalhar, no cargo de secretária administrativa, numa indústria multinacional de autopeças em São Bernardo do Campo, no chamado Grande ABC, região metropolitana de São Paulo composta por sete municípios (S.A., SBC, SCS, Diadema, Mauá, R.Pires e R.G.S). O contato com outra realidade, ou seja, a possibilidade de ouvir simultaneamente e comparar os discursos dos capitães de indústria, meus patrões, bem como, gradualmente, também o dos peões, novos personagens que no final dessa década, início da seguinte, entrariam de forma surpreendente na cena nacional brasileira, através das lutas operárias travadas e inegáveis conquistas sociais.   
1968, atenta ao mundo, a revolução comportamental deflagrada em Paris desperta de vez a consciência e me faz olhar mais agudamente para o Brasil e o meu entorno. Em minha mesa de trabalho, uma reprodução de um grafite nos muros da Sorbonne que acabou virando slogan de toda uma juventude planetária da época: Seja realista exija o impossível. Era a minha ainda ingênua forma de ser “revolucionária” e a partir daí, foi na palavra e, posteriormente, na ação cultural que a minha “revolução” se deu. No final desse mesmo ano, com o AI-5, não havia mais como ignorar o que se passava no país.
Em 1972 caso-me com o advogado Valdecirio Teles Veras e fixo residência em Santo André. Valdecirio era assessor jurídico do Sindicato dos Metalúrgicos e foi meu professor de política, atualizando-me com as notícias que os jornais não davam. Devo a minha politização a ele e ao seu colega de lides advocatícias e literárias, o já muito saudoso Antonio Possidonio Sampaio, amigo-irmão a quem presto aqui uma homenagem. Por 44 anos, formávamos um trio inseparável. Devo a ambos também o meu interesse pela política no seu sentido mais amplo, o da participação cidadã, o interesse pelas políticas públicas que visassem o bem comum através da inclusão social.
Na virada dos anos 70 para os 80, O ABC demonstra uma grande capacidade de mobilização popular. A luta nas ruas estende-se também para os movimentos grevistas, emergência do chamado novo sindicalismo, exemplo para uma tomada de consciência política nacional. Os olhos voltados para a região do Grande ABC que se insere na moderna história do país, artistas brasileira capturam esse clima através de sua arte. Dentre muitos, lembro aqui  Leon Hirzman que leva para o cinema a peça Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri, que também assina o roteiro do filme, transpondo-o para o ABC. Antonio Possidonio Sampaio. São de sua autoria, romances imprescindíveis para compreender esse período obscuro e violento da vida brasileira, “Sim Sinhor, Inhor Sim, Pois Não” (contemplado com o 1º lugar no I Concurso Escrita de Literatura e publicado como encarte no número 17 da revista Escrita em 1971), “A Capital do Automóvel (na voz dos operários)”, 1979 e Lula e a Greve dos Peões, 1982, livros que traduzem esse cenário de inquietações.
A sociedade dá mostras e vontade de reorganizar-se e nascem novas perspectivas culturais. A par das reivindicações por melhorias sociais, o Sindicato dos Metalúrgicos, através do seu Departamento Cultural, também assumia um compromisso com a cultura e a arte, não só como meios de lazer dos operários, mas também como instrumento de conscientização política, através de ofertas artísticas de qualidade. O Grupo Forja, criado em 1979 e dirigido por Tin Urbinatti, encena textos sobre o universo operário, através de criações coletivas dos próprios operários. São promovidos festivais de música e ciclos de cinema. A política e a cultura se entrecruzam e operam mudanças profundas na sociedade. Sem amparo institucional, artistas criam um clima de verdadeira efervescência, formam-se coletivos de debates, levantam-se contra a censura em concursos literários, abrindo um processo de discussões que não teria volta até o completo restabelecimento da democracia no país.
Foi pela mobilização popular e pela cultura que o Brasil deu a resposta. Na região paulista do ABC não foi diferente, ou melhor, foi muito mais.
É preciso sublinhar o importante papel das mulheres em todo esse período. Mulheres que pegaram em armas, que foram à luta em pé de igualdade com os homens, mulheres que lutaram por creches e outros direitos, mulheres que, juntas, e em seus múltiplos e estratégicos papéis, sustentaram de forma decisiva a manutenção das greves, tanto na resistência quanto na retaguarda das lutas.  Mulheres que a história tentou silenciar, mas não conseguiu e que estão recontando sua história nos últimos anos, através de pesquisas, depoimentos, livros, Congressos, Encontros e Seminários, como o que ocorreu recentemente no ABC sob o tema “A justa rebeldia das mulheres na América Latina e Caribe”, reunindo mulheres que participaram de guerrilhas, não calaram e vieram contar a sua própria história.  Dentre outras muitas iniciativas de resgaste da história das mulheres, também o grupo de teatro Ponto de Fiandeiras, vem pesquisando e encenando como resultado de suas pesquisas, a história da mulher operária e da mulher que resistiu aos anos de repressão política. Seu mais recente trabalho é a peça "Ponto Corrente" que retrata o papel e a militância feminina contra a ditadura.
Diante das odiosas e inaceitáveis manifestações machistas e misóginas destes tempos, novamente tristes e sombrios, escolhi alguns poemas de mulheres para esta ocasião e começo com Léa Aparecida de Oliveira. Trata-se de um nome desconhecido nos meios literários, mas que muito significa neste contexto que acabo de narrar. Léa, operária de chão de fábrica, militante sindical e política, eleita, vereadora na cidade de Mauá, lá no meu subúrbio do ABC. Morreu precocemente num acidente automobilístico e publicou 3 livros de poemas. O longo poema OS MISERÁVEIS é de seu livro O Sol & Eles, Massao Ohno, 1981, livro que é dedicado “À memória dos milhares de companheiros que perderam suas vidas na anonimacidade entre o barulho estridente das máquinas e o ferro em brasa...”. Alguns excertos: 

OS MISERÁVEIS
(...)
No ABC eu caminhava aprendendo
o A do Bê e o Bêabá, o que será, o que será?
- Tic-tac-tic-tac-tic-tac...
(...)
Logo viria a queda do Skylab, poderia
ser o fim, ninguém sabia onde ele ia cair.
Torcia para que caísse lá em Brasília na
cabeça do Figueiredo. Já os companheiros da
fábrica pediam que caísse na cabeça dos chefetes,
réplicas menores da repressão
- Tic-tac-tic-tac-tic-tac...
A polícia toda estava alerta para qualquer
movimentação, um passo nosso, nós da ralé,
evaporaríamos, sumiríamos
Já teria dito Essenine poeta da época de Maiakóvsky:
“Nesta vida morrer não é nada de novo,
mas viver também não é muito mais novo”.
- Tic-ta-tic-tac-tica-tac-tic-tac...
(...)
As greves tinham passado em abril de setenta e
nove e ninguém tinha como eu a maior certeza que
poderíamos virar a mesa. Era questão
de sobrevivência.
Conquistaríamos a vida ou morreríamos de vez.
Mas tantos optaram pela morte lenta e gradual
do dia a dia, o baixo salário, a instabilidade,
as horas extras, a produção de milhares,
milhões, bilhões, trilhões de peças, máquinas
carros, com o lema Maior quantidade menor
qualidade, as péssimas condições de trabalho
e ainda achando que ver os “gigantes” da Globo é
lazer.
- Tic-ta-tica-tac-tic-tac...
Foi quando o meu eterno amor sumiu do mapa,
assim como um clic, e... pronto! Sobreviveria
mais por preservação do que vontade de viver.
Depois tinha meu amor pela classe, muito mais
forte, e era estranho amar assim quando a
indiferença nos apunhala pelas costas. À merda
tudo e todos!
- Tic-tac-tic-tac...
 (...) não sou dessas mulheres que
só dizem sim. Só digo não!
(...) e todas as vezes
que passei correndo na frente do trem e sentia meus
pés pesados fincados no chão era por instinto
que corria. Mas e os amigos? Uns lá, outros
cá. Uns mais prá lá do que pra cá?
- Tic-tac-tic-tac...
(...)
O momento ia chegando. Tudo estava tenso
Por mais que me apressasse e corresse. Por
mais que tentasse quebrar as minhas correntes
e as dos outros, chegava o momento assim
como um torturador profissional que manja da
arte do pavor, do medo, chegava.
-  Não, não, não me entregaria assim de mão
beijada. Nada disso. Iria resistir até o fim.
(...)
Naquele dia assassinaram em São Paulo o Santo.
Deram-lhe um balaço que me estonteou e o levou
à morte. Eu queria berrar a minha dor, meu peito
dilacerado com os companheiros também mortos
em Minas, era muito, não poderia aguentar tanto
e o momento aproximando-se...
Quem sabe se botasse fogo na fábrica, ou desse
uns bofetes na cara daqueles puxa-sacos de merda.
Era isso! E ia gritar, berrar, sapatear, sei lá...
Fiz um longo poema e o declamei no meio da seção
subvertendo aquele silêncio fúnebre e mal tinha
acabado de dizê-lo já me haviam dedado.
(...)Não me entregaria. Não iria pedir água. Não e não! Jamais
iria me aliar aos miseráveis. (...)
- Tic-ta-tic-tac-tic-tac...
Corri desesperadamente quando a política tomava
toda a cidade, as ruas, à paisana, a cavalo,
em motos, viaturas, camburões. Eu não me
entregaria. Assim não! Corria e lembrava do Santo;
o Metalúrgico.  (...)
Corri e o tic-tac-tic-tac... agora mais
forte. Maldito relógio me denunciando com suas
pancadas incontidas e os prédios me sufocando.
(...) Tenho que resistir até o fim.
(...) Há repressão! Os policiais. Há censura!
Há auto-censura! Eu não era mais eu. (...)
A dor, há dor, ... (...)
Impossível deixar de chorar. (... )
Era necessário que resistisse.
Podia dar um tiro na cabeça e estourar os miolos.
Mas ninguém me compreenderia. Era tarde demais.
(...) Mas não havia mais tempo pra lamentos
nem porquês. Chegou a hora. (não teria misericórdia.
Consumado o fato. As ruas tomadas de
policiais. Meia-noite. Zero-hora.
Do relógio da igreja matriz um bléim
encheu o mundo.
QUATORZE DE NOVEMBRO DE MIL
NOVECENTOS E SETENTA E NOVE. Amanheceu!
Além me disse:
- FELIZ ANIVERSÁRIO!

Mauá 14.11.79

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