sábado, 8 de outubro de 2016

Lugares da Memória

Neste sábado, 08, a memória e suas consequências artísticas, ocupou a Casa do Olhar Luiz Sacilotto, em Santo André. Maura de Andrade e Teodoro Vieira, protagonistas do projeto “Lugares da Memória" .
Foi assim, o casal, inspirado na expedição dos colonizadores portugueses do Século XV no Brasil, resolveram refazer o caminho de Martim Afonso, na Capitania de São Vicente, João Ramalho, na Vila de Santo André da Borda do Campo, seguindo até a Vila de São Paulo de Piratininga, que hoje correspondem às cidades de São Vicente, Santo André (incluindo a Vila de Paranapiacaba), São Bernardo do Campo e São Paulo. Os caminhos, reais, foram percorridos durante 10 meses, sobre uma poderosa motocicleta. Anotações, fotografias e sensações foram se transformando pela arte, em gravuras, xilogravuras e fotogravuras. A esses juntaram-se textos, deles e de três convidados, residentes no caminho percorrido (São Vicente, São Paulo, Santo André, Roberto Grün, Marcos Atanásio e Dalila Teles Veras. Tudo isso virou uma exposição ("Lugares da Memória & sua Poética Visual" e o livro, “Lugares da Memória”.  A exposição foi aberta hoje e permanecerá aberta ao público até 29 de outubro, na Rua Campos Sales, 414, Centro Santo André, nos seguintes horários: terça a sexta-feira, das 10h às 17h, sábados das 10h às 15h. Na ocasião, também houve o lançamento do livro que foi distribuído aos visitantes. 



Aqui, o meu texto que integra o livro:

Do porto ao planalto – a memória dos lugares

O preparo para a aventura. O pai, desbravador de horizontes, ordenou: - vamos. Ele, a mulher e os três filhos. Eu, a mais velha dos três. O ano era mil novecentos e cinquenta e sete, quase no seu final. Uma carta de chamada enviada por um primo que já morava no Brasil. A venda da casa e de quase todos os pertences. Numa arca de madeira, uma máquina de costura, alguma louça, roupas de vestir, cama e banho, o essencial para o recomeço na terra nova. O embarque na terceira classe, destinada aos emigrantes, do paquete Santa Maria, partiu da baía do Funchal, na Ilha da Madeira, para a travessia atlântica. No mesmo mar das caravelas, o navio sem velas também carrega gentes e sonhos.  
Onze dias depois, a chegada ao porto de Santos. O impacto diante da grandiosidade da serra do Mar e a fabulosa engenharia da Via Anchieta, recém-construída, orgulhava e remetia aos conterrâneos navegadores que há cinco séculos subiram a serra em condições de maior coragem. No zigue-zaguear da subida, rumo ao planalto, o deslumbre misturado à expectativa. Das verdejantes sensações de então, da memória desses caminhos, muito depois, a menina não mais menina, construiria poemas, como este (do livro “solidões da memória”, Alpharrabio Edições e Dobra Editorial, SP, 2015)

do porto ao planalto, o choque
                       Se vens a uma terra estranha
                       curva-te
                                        Orides Fontela

íngremes e largos
os longos caminhos
vindos do mar (os mesmos
já outros) rumo ao
planalto - a terra nova
             (estranheza)
destino incerto e final

galgada a serra
(o mar fora da vista)
a metrópole
(o mar apenas lembrança)
velocidade e vertigem
(o concreto como horizonte)

desaprender
(premência menina)
para aprender a
(o preço da aceitação)
curvar-se
(cidadania inaugural)

Galgada a serra, trajeto de antepassados refeito, eis a cidade de São Paulo, o destino programado. Da fervilhante metrópole, as lembranças da então adolescente: o Viaduto do Chá, a imponência; a Praça do Correio onde chegavam e saíam os ônibus que me traziam e levavam à morada na Zona Norte da cidade; o trem da Cantareira; o bonde que levava toda família, nos domingos, à casa de parentes residentes no bairro da Penha. O Centro do início dos anos 60: a Rua Quintino Bocaiúva, o curso de datilografia no Instituto Brasileiro de Mecanografia; a Av. São João com Ipiranga, a escola Roosevelt do curso de inglês; a então muito elegante Rua Barão de Itapetininga, o curso de Secretariado, bem em frente à Confeitaria Vienense, onde um velho e curvado pianista, certamente do tempo de Mário de Andrade, animava o chá das tardes dos dias de semana; a Livraria Brasiliense nessa mesma rua, a delícia das delícias; dali ao Mappin, um pulinho e o deslumbre diante do consumo entrante;  primeiro emprego no Viaduto Dona Maria Paula; a taça de “banana split” na lanchonete da primeira das Lojas Americanas, na Rua São Bento. O sanduiche de calabresa com suco na lanchonete Califórnia (era esse o nome?). São Paulo dos anos sessenta era uma metrópole com recantos ainda interioranos e é nos escaninhos desse hoje chamado Centro velho onde residem minhas mais gratas memórias de São Paulo. Lugares guardados como pontos de identidade e identificação.

Hoje, ao percorrer esses caminhos, ausculto as narrativas que a própria cidade oferece, narrativas não escritas, mas inscritas no imaginário, o meu e o coletivo, com todos os seus sentidos.

1972 – o casamento, a mudança para o meio do caminho, o lugar de passagem, a chamada Região do Grande ABC.

a selva de outrora
selviliza-se, robotiza-se.

As sete cidades que são uma só, fronteiras abolidas, trilhos que ligam, rios e ribeirões, que separam e (re)unem. O ABC no curso maltratado do rio, destinos amalgamados.
O lugar de onde se avista o mar.

Samambaias enlouquecidas
bromélias encharcadas
manacás arcoirismando
lírios a rebentar brancuras
quaresmeiras pontuais
atlântica mata
do oceano já distante
: cenário.

Santo André, o lugar da morada, com seu Paço Municipal - Centro Cívico – modernista, novinho em folha (projeto de Rino Levi e paisagismo de Roberto Burle Marx, tombado em 2010 pelo Condephaat) e seu Teatro Municipal com espetáculos grandiosos em estreia nacional. Hospital e Maternidade Brasil, recém-inaugurado, nascimento das três filhas e de tantos andreenses. O lugar eleito. O lugar para nascer, viver e, quem sabe, morrer.
São Bernardo, o lugar do trabalho; a indústria, o automóvel, metalúrgicos, as greves, as lutas pelos direitos sociais, o surgimento de novas lideranças, operários e suas vozes, conquistas. A fundação de um partido político. O mundo de olho neste lugar já um pequeno mundo, dois milhões e meio de habitantes.

máquinas, máquinas. trabalho, trabalho.

O lugar também da palavra, do registro, do livro, das lutas literárias e culturais. O lugar da diversidade e miscigenação. Emigrantes, migrantes, gentes de todos os lugares. Culturas híbridas, amalgamadas etnias. A arte dessa aldeia é também universal.
Reinventa-se, e no perigoso reinventar, descuida-se. No permanente renascer, por vezes, mata-se. Diante da morte dos lugares, o registro da memória dos lugares. Este. (dtv)



Um comentário:

  1. A memória é o nosso próprio presente e que grande felicidade reconstruir seu fio e reenriquecer das raízes à herança. Belo texto, bela trajetória!

    ResponderExcluir