Neste
sábado, 08, a memória e suas consequências artísticas, ocupou a Casa do Olhar Luiz
Sacilotto, em Santo André. Maura de Andrade e Teodoro Vieira, protagonistas do
projeto “Lugares da Memória" .
Foi assim, o casal,
inspirado na expedição dos colonizadores portugueses do Século XV no Brasil, resolveram refazer
o caminho de Martim Afonso, na Capitania de São Vicente, João Ramalho, na Vila de
Santo André da Borda do Campo, seguindo até a Vila de São Paulo de Piratininga,
que hoje correspondem às cidades de São Vicente, Santo André (incluindo a Vila
de Paranapiacaba), São Bernardo do Campo e São Paulo. Os caminhos, reais, foram
percorridos durante 10 meses, sobre uma poderosa motocicleta. Anotações, fotografias e sensações
foram se transformando pela arte, em gravuras, xilogravuras e
fotogravuras. A esses juntaram-se textos, deles e de três convidados,
residentes no caminho percorrido (São Vicente, São Paulo, Santo André, Roberto
Grün, Marcos Atanásio e Dalila Teles Veras. Tudo isso virou uma exposição ("Lugares da Memória & sua Poética Visual" e o livro, “Lugares da Memória”. A exposição
foi aberta hoje e permanecerá aberta ao público até 29 de outubro, na Rua Campos Sales,
414, Centro Santo André, nos seguintes horários: terça a sexta-feira, das 10h
às 17h, sábados das 10h às 15h. Na ocasião, também houve o lançamento do livro que foi distribuído aos visitantes.
Aqui,
o meu texto que integra o livro:
Do
porto ao planalto – a memória dos lugares
O
preparo para a aventura. O pai, desbravador de horizontes, ordenou: - vamos.
Ele, a mulher e os três filhos. Eu, a mais velha dos três. O ano era mil
novecentos e cinquenta e sete, quase no seu final. Uma carta de chamada enviada
por um primo que já morava no Brasil. A venda da casa e de quase todos os
pertences. Numa arca de madeira, uma máquina de costura, alguma louça, roupas
de vestir, cama e banho, o essencial para o recomeço na terra nova. O embarque
na terceira classe, destinada aos emigrantes, do paquete Santa Maria, partiu da
baía do Funchal, na Ilha da Madeira, para a travessia atlântica. No mesmo mar
das caravelas, o navio sem velas também carrega gentes e sonhos.
Onze
dias depois, a chegada ao porto de Santos. O impacto diante da grandiosidade da
serra do Mar e a fabulosa engenharia da Via Anchieta, recém-construída,
orgulhava e remetia aos conterrâneos navegadores que há cinco séculos subiram a
serra em condições de maior coragem. No zigue-zaguear da subida, rumo ao planalto,
o deslumbre misturado à expectativa. Das verdejantes sensações de então, da
memória desses caminhos, muito depois, a menina não mais menina, construiria
poemas, como este (do livro “solidões da memória”, Alpharrabio Edições e Dobra
Editorial, SP, 2015)
do
porto ao planalto, o choque
Se
vens a uma terra estranha
curva-te
Orides Fontela
íngremes
e largos
os
longos caminhos
vindos
do mar (os mesmos
já
outros) rumo ao
planalto
- a terra nova
(estranheza)
destino
incerto e final
galgada
a serra
(o
mar fora da vista)
a
metrópole
(o
mar apenas lembrança)
velocidade
e vertigem
(o
concreto como horizonte)
desaprender
(premência
menina)
para
aprender a
(o
preço da aceitação)
curvar-se
(cidadania
inaugural)
Galgada
a serra, trajeto de antepassados refeito, eis a cidade de São Paulo, o destino
programado. Da fervilhante metrópole, as lembranças da então adolescente: o
Viaduto do Chá, a imponência; a Praça do Correio onde chegavam e saíam os
ônibus que me traziam e levavam à morada na Zona Norte da cidade; o trem da
Cantareira; o bonde que levava toda família, nos domingos, à casa de parentes
residentes no bairro da Penha. O Centro do início dos anos 60: a Rua Quintino
Bocaiúva, o curso de datilografia no Instituto Brasileiro de Mecanografia; a
Av. São João com Ipiranga, a escola Roosevelt do curso de inglês; a então muito
elegante Rua Barão de Itapetininga, o curso de Secretariado, bem em frente à Confeitaria
Vienense, onde um velho e curvado pianista, certamente do tempo de Mário de
Andrade, animava o chá das tardes dos dias de semana; a Livraria Brasiliense
nessa mesma rua, a delícia das delícias; dali ao Mappin, um pulinho e o
deslumbre diante do consumo entrante;
primeiro emprego no Viaduto Dona Maria Paula; a taça de “banana split”
na lanchonete da primeira das Lojas Americanas, na Rua São Bento. O sanduiche
de calabresa com suco na lanchonete Califórnia (era esse o nome?). São Paulo
dos anos sessenta era uma metrópole com recantos ainda interioranos e é nos
escaninhos desse hoje chamado Centro velho onde residem minhas mais gratas
memórias de São Paulo. Lugares guardados como pontos de identidade e
identificação.
Hoje,
ao percorrer esses caminhos, ausculto as narrativas que a própria cidade
oferece, narrativas não escritas, mas inscritas no imaginário, o meu e o
coletivo, com todos os seus sentidos.
1972
– o casamento, a mudança para o meio do caminho, o lugar de passagem, a chamada
Região do Grande ABC.
a
selva de outrora
selviliza-se,
robotiza-se.
As
sete cidades que são uma só, fronteiras abolidas, trilhos que ligam, rios e
ribeirões, que separam e (re)unem. O ABC no curso maltratado do rio, destinos
amalgamados.
O
lugar de onde se avista o mar.
Samambaias
enlouquecidas
bromélias
encharcadas
manacás
arcoirismando
lírios
a rebentar brancuras
quaresmeiras
pontuais
atlântica
mata
do
oceano já distante
:
cenário.
Santo
André, o lugar da morada, com seu Paço Municipal - Centro Cívico – modernista,
novinho em folha (projeto de Rino Levi e paisagismo de Roberto Burle Marx,
tombado em 2010 pelo Condephaat) e seu Teatro Municipal com espetáculos
grandiosos em estreia nacional. Hospital e Maternidade Brasil,
recém-inaugurado, nascimento das três filhas e de tantos andreenses. O lugar
eleito. O lugar para nascer, viver e, quem sabe, morrer.
São
Bernardo, o lugar do trabalho; a indústria, o automóvel, metalúrgicos, as
greves, as lutas pelos direitos sociais, o surgimento de novas lideranças,
operários e suas vozes, conquistas. A fundação de um partido político. O mundo
de olho neste lugar já um pequeno mundo, dois milhões e meio de habitantes.
máquinas,
máquinas. trabalho, trabalho.
O
lugar também da palavra, do registro, do livro, das lutas literárias e
culturais. O lugar da diversidade e miscigenação. Emigrantes, migrantes, gentes
de todos os lugares. Culturas híbridas, amalgamadas etnias. A arte dessa aldeia
é também universal.
Reinventa-se,
e no perigoso reinventar, descuida-se. No permanente renascer, por vezes,
mata-se. Diante da morte dos lugares, o registro da memória dos lugares. Este. (dtv)
A memória é o nosso próprio presente e que grande felicidade reconstruir seu fio e reenriquecer das raízes à herança. Belo texto, bela trajetória!
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