Saí da leitura do romance "Quarenta dias" de Maria
Valéria Rezende (Alfaguara, 2014) rendida (leia-se, transformada), como se eu
mesma, nestes dois últimos dias, tivesse vivenciado as agruras dos quarenta dias de sua
narradora, Alice, percorrido os becos e outros lugares escusos de uma cidade
(Porto Alegre) que, por suas (des)humanidades, bem poderia ser a minha ou qualquer uma das grandes
cidades brasileiras.
Trata-se de um mergulho na vida urbana e nos seus personagens,
costumeiramente invisíveis à grande maioria dos passantes, mas não só. É também
e principalmente um mergulho no mundo das trevas, por uma mulher, professora
aposentada, que se vê, repentinamente, obrigada pela insensibilidade da filha,
a deixar sua casa e seus pertences, mudar-se para um apartamento "cenário
de novela", frio e impessoal, sob a perspectiva de tornar-se apenas uma
"avó profissional", matando sua própria história.
É nessa viagem/mergulho às cegas que Alice, de forma
alucinada e inconsciente, busca criar uma história possível com a qual possa se
identificar. Uma viagem através da banda podre e invisível de uma grande
cidade, onde anônimos vão recebendo nomes e se transformando em protagonistas
de outras histórias, compondo um painel assustadoramente humano e ao mesmo
tempo assustadoramente despossuído de humanidade. Um exército dos abandonados à
própria sorte, dos que, como ela, também largaram seus lugares, suas famílias e
caíram no mundo e transformaram-se numa massa informe e fétida da qual, vez por
outra, vertem os tais vestígios de humanidade, através de gestos de
solidariedade e compaixão.
Não pude evitar a
lembrança de uma crônica já velhinha, que escrevi sob o impacto da tragédia
ocorrida com o desabamento do edifício Palace, na Barra da Tijuca (RJ), no
Carnaval de 1998. Comovida diante das expressões de dor daqueles que, assim como
a personagem do romance que acabo de ler, assistiam ao momento da perda de sua
própria história.
Naquele texto, dizia eu, uma casa não é um lugar que serve
apenas para abrigar pessoas e coisas. Uma casa não é uma simples edificação,
mas representa a própria vida de quem a habita, a memória representada por
fotografias, livros, suvenires de viagens, fitas, pétalas de flores, cartões postais, almofadas,
objetos insignificantes para olhares desavisados, mas que, junto a lembranças
não armazenáveis em quartos, salas ou cozinhas, como gestos, carícias, sons,
cheiros, respirações, ritos que ali ficam colados às colunas, portas e paredes,
impregnados da energia vital, representam o eixo referencial da própria
existência de quem a habita. E foi isso que me fez compreender o gesto
tresloucado de Alice
Quarenta dias, escrito na forma de diário e memória, possui
um ritmo que obriga o leitor a, ofegante, acompanhar os passos da personagem
pelos subterrâneos de uma cidade e de uma mulher, ambos à beira do colapso e da
ruína. Um romance que, por força de uma poderosa narrativa, nos põe diante de
uma tela na qual pode-se assistir ao que se lê. E que ninguém se iluda com a linguagem
(quase) coloquial, aparentemente desprovida de "trabalho". Ser
simples desse jeito requer talento literário, uma vida inteira de dedicação e muito, mas muito
trabalho.
preciosas (e lúcidas) sua impressões me fazem pensar, sem mesmo antes ler o livro, em como ficamos reféns do nosso tempo (ou da sua falta), quase anestesiados, impotentes.
ResponderExcluira liberdade da rotina é fundamental - quero ler este romance vou ler seu comentário é instigante - abraços Constança
ResponderExcluirObrigada pela sugestão, Dalila. Fiquei interessadíssima e vou conferir. Abraço.
ResponderExcluir!!!
ResponderExcluirQuer ler.
!!!
ResponderExcluirQuer ler.
Concordo com sua opinião! Eu também adorei a obra e fiquei tão impactada que ainda nao consegui expressar o tudo de bom que a autora provocou em minha mente. Fatima Barreto - Fpolis (SC)
ResponderExcluirDalila, uma bela leitura deste livro de Maria Valeria. Também gostei muito do livro, justamente pelo viés do diário, e o diálogo que ela trava com ele. Alem desse impeto da personagem, de ter outra vida ao avesso.
ResponderExcluir