domingo, 25 de maio de 2014

Mísia em SP, o milagre em dia de fúria


Vinte e um de maio de dois mil e catorze foi um dia de fúria na cidade de São Paulo, motoristas de ônibus em greve, caos no trânsito, dificuldades na locomoção.
Mas quando, à noite, Mísia subiu ao palco do teatro do SESC Vila Mariana, deu-se um milagre.

A despeito da situação adversa daquele dia e do total e incompreensível silêncio dos chamados Cadernos Culturais dos jornais paulistanos, outrora conhecidos por "grande imprensa", hoje pautados apenas pelo poder e interesses corporativos, a plateia, com capacidade para centenas de pessoas, apresentava-se com pouquíssimas cadeiras vazias. A ansiedade decorrente de todo o estresse deu lugar a um tempo mágico e sem relógio.

A arte (a grande e verdadeira) cria e possui seus próprios caminhos e a prova ali estava. Mísia, a fadista portuguesa (mas não só, artista completa em todos os tons, ritmos e colorações da música) em sua triunfante e reconhecida carreira internacional de mais de duas décadas, construiu seu público. Ao caminhar, construiu caminhos, os seus caminhos e conquistou admiradores, muitos.

Convidados que fomos para o Delikatessen Café Concerto, sentíamo-nos todos ali, literalmente, aconchegados, num verdadeiro e íntimo banquete, refinado menu de iguarias musicais oferecido por uma artista rara, muitíssimo rara.

De surpresa e encantamentos foi se fazendo a noite. Vimos que o fado, na privilegiada voz de Mísia, pode se transformar num "tango", como no caso do "Fado do Ciúme" que, interpretado de forma arrebatadora e inusitada, abriu  a  noite. Sim, um (quase) tango, mas ainda assim, fado, reconhecivelmente fado. Confirme: 


David Mourão-Ferreira, o grande poeta português que teve muitos de seus poemas cantados por Amália Rodrigues, disse certa feita que tudo na voz da Amália virava fado. Eu diria que, no caso de Mísia, fadista nem maior nem menor, mas, como a própria Amália, única, todo fado pode também virar outra coisa, sem matar-se nem perder sua essência de fado.
 
Filha de pai português e mãe espanhola, a par de ser universal, Mísia é, antes, ibérica. É espanhola quando canta Nanas de la Cebolla  (ouça aqui: 

 

 


tanto quanto é portuguesa quando interpreta Fado do Ciúme ou outros clássicos do fado. Mas, no seu próprio dizer, é português o seu estar no mundo, é portuguesa a sua verdadeira nacionalidades, talvez porque a condição de "ser muitos" seja o fado de todo o português.

Assim, não é de se estranhar que quando canta boleros, tangos ou canções italianas, espanholas ou francesas, Mísia está a cantar fados em outra língua, como só uma portuguesa o saberia.
 
Por ser quem é, Mísia poderia perfeitamente portar-se à maneira das divas ou pop stars, com direito a pedantismo do tipo "leave me alone" e outras excentricidades. Mas não, nela a "excentricidade" é tão natural quanto a simpatia extrema. Humana, demais humana, contou-nos, entre outras coisas, as deliciosas histórias por trás de cada uma das canções escolhidas para o seu mais recente álbum, "Delikatessen Café Concerto" que resultou neste espetáculo homônimo ora em turnê pela América Latina. Chegou, inclusive, a confessar seu temor (coincidindo, acredito, com o sentimento de todos nós que ali estávamos) de que, num dia assim,  não houvesse ninguém na plateia para o concerto.

Sou entusiasta admiradora de Mísia, desde o já longínquo ano de 1999 quando, por acaso, dei com o CD Garra dos Sentidos, inexplicavelmente desterritorializado numa gôndola de supermercado. Paixão à primeira audição. A partir daí, fui buscando, nas minhas passagens por Lisboa e outras gôndolas improváveis no Brasil, seus demais trabalhos. A "garimpagem" progrediu também graças a uma "agente secreta" que possuo em Lisboa, amiga sempre pronta, sem que eu peça, a adivinhar-me os desejos estéticos. Foi dela que recentemente recebi, pelo correio, o CD Delikatessen Café Concerto, adquirido em dezembro de 2013, quando de seu lançamento, na FNAC, em Lisboa, com a presença da artista.
 
Desde então, parei de ouvir (apenas momentaneamente) o CD Senhora da Noite, álbum exclusivamente de canções compostas por mulheres e talvez um dos seus melhores trabalhos, que, desde 2012, ouvia sem parar.
 
Digo isso, porque, após todos estes anos a ouvir Mísia em CD, a alegria de, finalmente, ouvi-la e vê-la ao vivo teve, para mim, o significado de uma pequena epifania.  No palco, Mísia consegue ser ainda melhor, pois, além de grande cantora, é também uma surpreendente performer. No silêncio reinante do teatro, a presença de Mísia preenchia todos os espaços da sala de espetáculos e do coração daqueles que ali estavam a ouvi-la/vê-la.
 
Acompanhada apenas por um piano (não qualquer piano, diga-se, mas um piano tocado por um músico igualmente excepcional, o Maestro italiano Fabrizio Romano),  Mísia dá-se ao luxo de contar com pouquíssimos elementos cênicos no palco. Cenário pra lá de sóbrio que apenas sugere. Ali, a estrela era apenas ela.  
 
Foi de fato um banquete para paladares exigentes, mas, parodiando Oswald, esperemos que as massas um dia possam degustar o biscoito fino que ela hoje nos oferece.
 
Em Tempo: Mísia, no texto do encarte do CD, escreve sobre as circunstâncias da sua elaboração e encerra com a seguinte frase: "Este disco poderia também chamar-se MILAGRE!".  Neste Concerto, deu-se, de certeza, o MILAGRE! (dtv)

Um pouco mais de Mísia "O Manto da Rainha" de autoria da própria Mísia, do álbum "Senhora da Noite": 



4 comentários:

  1. Obrigada Dalila Teles Veras! o público de São Paulo fez um excelente concerto! Fui o reflexo...

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  2. Estupéndo comentario de la presentación de Misia en San Pablo, luego de deslumbrarnos en Buenos Aires en el Teatro Coliseo ,colmado de público. es asi el arte sin igual de Misia universal.

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  3. Privilégio nosso sermos "contaminados" com tal efusivo texto. Acrescentar mais alguma palavra é desnecessário.

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