quarta-feira, 5 de março de 2014

Carnaval - viagem a São Paulo (diário de bordo) II

Deixar o QG no espigão e, ladeiras abaixo, ir em busca da cidade antiga à época conhecida como "centro novo", ruas por onde andou, estudou e trabalhou a menina antiga. A cartografia agora é a da memória que, ao longo de meio século só fez aumentar a relação amorosa com a cidade. As marcas que aqui vejo, desconfio, não ficaram intactas na memória por aqueles anos, mas foram se tornando familiares, descobertas e (re)significadas, justamente porque revisitadas e, a cada uma das visitas, ampliadas pelo conhecimento histórico.
Agora, motivada por uma matéria recente publicada num suplemento/guia de um grande jornal da Capital que mapeava as "galerias" do centro velho (nada menos do que 15! compreendidas entre a Praça Dom José Gaspar e a av. São João), que, algumas delas verdadeiras "artérias" (ou "falsas artérias) que, mesmo sendo propriedades particulares, além de servirem de vitrinas para serviços e comércio e, a partir do primeiro andar, residências e escritórios, também possuem uma função, talvez não prevista no seu projeto original, que é de encurtar caminhos, além de proteger seus passantes de eventuais intempéries. São primas-irmãs das famosas "passagens" de Paris, da quais tanto se ocupou W. Benjamin e que ainda não tiveram por aqui um trabalho literário à altura de sua história.




O Edifício Copan foi o ponto de partida, ainda que os estabelecimentos localizados em seus corredores curvilíneos, feche aos domingos e feriados (era segunda-feira, mas era Carnaval), valeu pelo Café Floresta, firme em seu passado glorioso, segue sem aceitar cartão nem cheque, nem oferecer bancos ou mesas. Ali, o abastecimento matinal, traduzido num aromático, quente e encorpado "tipo Santos", bom auspício para a expedição.


Av. Ipiranga com Av. São Luís - 10h

Se, por um lado, a cidade vazia propicia a possibilidade de um olhar sobre detalhes (piso, portas, janelas, arquitetura, traçado) que em meio à multidão costumeira são difíceis de visualizar, por outro, falta ali a "vida" que é justamente dada por essa multidão. Mas o objetivo hoje é outro e, assim, vamos em frente. Primeira parada (esta, com dicas preciosas adquiridas numa crônica do Prof. José de Souza Martins publicada no Estadão, em 2011.

Segunda parada, Galeria Califórnia, no número 255 da Barão de Itapetininga




edifício projetado por Niemeyer e Carlos Lemos, desafiadora ousadia contrastante e afrontosa à sizudez europeia dos prédios do entorno, saídos das pranchetas de Ramos de Azevedo, na virada do século XIX/XX) e que (ainda com o Prof. Martins) não passavam de tentativa de "reproduzir aqui a Paris que não éramos..".




Coerente com a proposta de Brasília, o edifício tem a marca inconfundível de seu criador, inclusive, dos artistas convidados por ele para decorá-lo. Portinari assina um painel de pastilhas no saguão e (esta foi a grande dica do prof. Martins) um insuspeito, improvável e quase secreto jardim (no primeiro andar) projetado por Di Cavalcanti.  Não fosse a gentileza do Sr. Antonio, o zelador que ali trabalha há 42 anos e que, entre outras coisas, se orgulha de ter plantado algumas das palmeiras, jamais teríamos acesso a essa curiosidade.



No piso, o desenho do pássaro, em branco e vermelho,  começa a se apagar e requer restauro urgente, mas as citações na imprensa despertaram a consciência dos proprietários que, ao que parece, começaram a se orgulhar da história do local.



O prédio tem entrada pela Barão e interliga com a Dom José de Barros. Na fachada da Dom José, é possível perceber o impressionante contraste entre os estilos arquitetônicas e o mal estar que o modernista causou em 1955.



Dali, ainda na Barão, passamos pela Guatapará que, segundo consta, é a mais antiga do centro (no tempo da menina, ainda havia algumas livrarias e cafés por lá, mas hoje vende inúteis quinquilharias chinesas). Interliga com a 24 de Maio. 




A tentativa de visitar a  Galeria Itá, uma das mais antigas (1949), interligada à Galeria R. Monteiro (projetada pelos arquitetos Rino Levi Roberto de Cerqueira César e Luiz Roberto Carvalho Franco (1963), com azulejos de Burle Marx, mas que, para minha decepção encontravam-se fechadas ao público, assim como a 7 de Abril, especializada em produtos fotográficos e consertos de câmeras e a Galeria Metrópole (em obras) gloriosa nos meus tempos, com seus bares voltados para a praça Dom José Gaspar (o Pari Bar ainda resiste) e gente descolada circulando. Pena.




Ainda que a quase totalidade de seus estabelecimentos também estivesse fechada, a conhecida rua Nova Barão (que vai da Barão de Itapetininga à Sete de Abril), na verdade é uma pseudo rua. 



Condomínio particular que seguiu o padrão arquitetônico de sua época (foi inaugurada em 1962) com dois andares de lojas e apartamentos residenciais nos demais, foi considerado o primeiro Shopping a céu aberto de São Paulo. 



Por lá circulei em seu início, no intervalo do almoço e na saída do meu primeiro emprego, e me achava a rainha da cocada chique, a pessoa mais "moderna" do planeta. Apesar da drástica mudança em seu comércio (inúmeros lojas de discos usados instalaram-se no segundo andar, ao lado de salões de cabeleireiro e outros serviços)




permanece bonita e bem conservada, com seu piso de pedras portuguesas e um nostálgico chafariz.


Um belo ângulo do início da Barão de Itapetininga visto do 2o. andar da Nova Barão, com o Teatro Municipal à esquerda

Encerrou o passeio exploratório pelas nossas "passagens", a visita às Grandes Galerias ou Galeria do Rock, como é conhecida, na 24 de Maio com saída para Av. São João. projetada no início dos anos 60 por Alfredo Mathias que, dizem se inspirou na escola nascente de Niemeyer, como de fato suas curvas o denunciam



Diferentemente das demais galerias, todas as 450 lojas distribuídas pelos 4 andares estavam abertas e muita gente circulava por seus corredores com jeito de Shopping Center. 



Pudera, diz a Wikipedia que circulam por ali 5.000 pessoas por dia e não apenas fãs de rock and roll, mas uma infinidade de tribos urbanas que vão à busca de produtos e serviços para gostos outros e visuais alternativos, como salões de beleza especializados em tratamento e penteados afro, estúdios de tattoo, lojas especializadas em discos antigos de ritmos que vão muito além do rock, como hip hop, rap, funk, blues e, dizem, até MPB, jazz e sei lá mais o quê. Não por ocaso já foi cenário de novelas, roqueiros famosos andaram/andam por lá e shows históricos foram ali realizados. Uma verdadeira festa de cores e diversidade que não visitei por completo respeitando a velha carcaça que, após quatro horas em pé, pedia trégua e alimentação.


Assim, lá fomos nós, como não podia deixar de ser, almoçar num restaurante que pudesse contribuir com o clima vintage. O escolhido foi o Churrasqueto, na 24 de Maio, para lembrar os meus tempos de militância na UBE (início dos anos 80) cuja sede ficava em frente. Comida boa (mas exageradamente farta para a capacidade de meu estômogo), preços honestos, além do clima anos 70 que lhe confere a mesmíssima decoração e os garçons que lá trabalham desde então. (dtv)

4 comentários:

  1. Agradecemos mais uma vez pela imersão poética e histórica na cidade de São Paulo, desenho roteiros aos desejos vindouros por caminhos futuros. Abraços Fraternais!

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  2. flanar pelas cidades, e v(l)er a história colada na paisagem que fica além da primeira vista é o exercício de um prazer que redescubro depois de um longo "esquecimento". decididamente, sra. poeta, sua crônica anda cada vez mais saborosa e poética. deleita-me como se nossa conversa fosse, leve e amiga. alimento da alma.

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    1. Pois, sra. poeta, poderíamos qualquer dia destes tentar uma "expedição flanatória" por Sampa (pode ser santandré, ora) e esticar a conversa. Abraços

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