Na Paulista, o quartel general, esboçar os planos para orientar a topografia da folia de quatro dias roubados à rotina. Primeiro, flanar. (A)notar o que ninguém percebeu (ou fingiu que não). Depois, tentar apreender-lhe o sentido. A propósito, leio, no jornal ao primeiro dia, entrevista de Rodrigo Naves, a propósito do lançamento de seu novo livro A Calma dos Dias, algo que só reforça meus propósitos: " quem não tem certo interesse pelo mundo, pela realidade, não encontra uma forma permeável aos toques, às pessoas, às coisas, e tem uma relação mais empobrecida com o mundo". Nos intervalos, a diversão, enriquecer minha relação com este mundo.
Noto e anoto:
A artéria dos $$$, apagou as luzes de seus compartimento burocráticos para o Carnaval (afinal, ninguém é de ferro). Apenas as escadas permanecem iluminadas, sabe-se lá as razões.
Nesta esquina
(Paulista com Augusta), de há muito substituta da outrora emblemática Ipiranga
com São João, cruza-se, hoje, o universo em festa e todas as tribos da espécie humana.
Carnaval? (nem parecia...)
Aqui (ao menos durante estes quatro dias) em afronta aos tais $$$, instalou-se uma família inteira, sem nenhum $. Na morada consta um número cuidadosamente desenhado a giz, flores no telhado
Um varal, com um aviãozinho, pacientemente moldado pelo pai ao cair da tarde
aponta para uma infância a pedir para ser e uma realidade que nega essa condição. Talvez não tenha sido por acaso que, tão logo o avião ali foi posto, uma banda de rock (surpreendentemente boa - juntou de imediato uma significativa platéia) fez do quintal da casa o seu palco e, excluídos todos (família e músicos) embalaram de beleza a noite sem sopa nem colchão da família no monturo
Ao lado, um
rapaz, visivelmente embriagado, se debruça com tamanha ternura sobre uma jovem
em prantos, sentada no chão, também visivelmente embriagada que me faz crer que
estas são as pietás da exclusão, as pietás da margem de um século em labaredas.
Um pouco mais adiante, à entrada do Conjunto Nacional, um flautista
embala os passantes fugitivos da folia momesca entoando "carinhoso", a lembrar que a noite também pode ser feita
por delicadezas.
Bem, domingo é dia de fazer escolhas. Os principais jornais desta
Capital em descanso estampam em suas primeiras páginas Escolas de Samba e seus
cadernos falam quase que exclusivamente de Carnaval, bailes e desfiles. Ao que
parece estamos em cidades diferentes, afinal dentre mais de onze milhões de
almas, há de haver gente pra tudo.
Vamos lá, fugir
dos filmes do Oscar e dos resultados previsíveis (tá bem, deram uma estatueta de Melhor filme
estrangeiro para A Grande Beleza e Viva, aplausos pela justeza do prêmio para
este encantador italiano). Gaiola Dourada, do jovem cineasta Ruben Alves, filho
de portugueses que, a exemplo dos personagens, também imigraram para a França e
ali, síndica de prédio a mãe e pedreiro o pai, viveram e criaram filhos.
O filme, que vem
de um enorme e surpreendente sucesso de bilheteria na Europa, também
premiadíssimo por lá, nos é "vendido" como uma comédia, quando na
verdade nos mostra uma contundente realidade, a de todo aquele que passa a viver noutro país e
após fincar raízes ali pelos descendentes, vive o eterno dilema da dualidade, a
dificuldade de escolha entre a pátria de nascimento e a pátria de escolha (ou
não, também por circunstâncias alheias). Ser eternamente bipartido, estrangeiro
em ambas. Mas não só, ali há também, para além da comovente homenagem que o
realizador presta aos pais, é mostrada (ainda que lhes possam apontar clichês,
é verdade, num enredo de certa forma fantasioso) a alma portuguesa, que só
poderia ser mostrada por quem, mesmo estrangeiro, a traga atávica.
E já que estávamos no clima lusitano, olha só quem encontrei numa prateleira, perdido entre "cantores estrangeiros" e convidei para um café:
Agora só me faltam 2, para a discografia completa desta voz única, descoberta recente e sedução imediata, que ando a ouvir, a ouvir...
Mas a coisa não ficou só por aí. Após revirar a prateleira de poesia da Livraria Cultura (alô sr. Pedro Herz, fica aqui meu protesto indignado pelo tratamento indigno que a poesia recebe em sua outrora meritória casa de livros. Além de permanecer naquela ladeira que nos deixa inclinados ao percorrer as lombadas, agora os volumes ficaram espremidos, em duas fileiras, numa estante menor e desajeitada, em flagrante descaso com o gênero sempre tão desrespeitado na maioria das livrarias. Lamentável). Mas eis que, lá na fileira de trás, encontro esta pepita, que procurei sem sucesso em Lisboa no ano de seu lançamento (lá também, ao que parece, a poesia não anda com essa bola toda). A alegria foi tão grande que até quase ia esquecendo de registrar o meu protesto, mas deixei... ainda que, desconfio, de nada adiantará.
E lá fui eu, aprender como se desenha (ops...) como se faz poesia (e isso lá se aprende?), essa "casa" que sempre me dá aconchego e guarida.
No próximo post, o diário de viagem falará da exploração de uma outra topografia desta paulicéia múltipla em paisagens culturais e humanas, fonte inesgotável de possibilidades de exploração e descobertas (dtv)
Dalila querida vc mais uma vez soube expressar através de suas palavras o que sentimos ao ver nossa querida São Paulo em dias como estes: dias de carnaval..dias de feriado. Mesmo assim a cidade se mostra com toda a força que tem. Obrigada por compartilhar seus pensamentos e sua rica poesia com a gente. Gratidão!
ResponderExcluirgratíssima, cara amiga Arlettinha. Bom poder contar com sua leitura.
ExcluirDalila poeta a nos lapidar formas contidas nas palavras que perambulam São Paulo, cenas de um cotidiano que $$$ não traduz, aliás, oprime, declina em prateleiras diminutas, escorre a beira da sarjeta espaço andarilho de quase morar - como desenha uma casa? - ao ler esta percepção deste mundo ao tempo que vivemos, faz acreditar que também não estamos sozinhos, há uma força poética nutrindo esperanças por um mundo ainda possível. Abraços Fraternais! Agradecemos por compartilhar existências...
ResponderExcluirEu é que agradeço, caro amigo Edson, por seus acréscimos poéticos aos meus textos. Abraço grato
ExcluirAdorei o jeito que você escreve, com esses parênteses no meio das frases, como se fossem pensamentos que brotaram no meio de um roteiro pré programado do texto! Trabalho com a Isa e ela que me mostrou o seu blog, achei demais suas impressões do carnaval paulistano, continue nos contando!
ResponderExcluirMas que boa surpresa (amigos dos meus filhos sempre são bem vindos). Fiquei feliz em poder contar com mais um leitor que demonstra sensibilidade para perceber sutilezas, digamos assim, estilísticas. Sim, utilizo bastante o recurso do parênteses exatamente com esse propósito (uma espécie de narrador apontando algo que não foi dito no texto), inclusive nos poemas, nos quais uso de maior rigor. Receba meu abraço agradecido, Rafael
Excluira visita a sampa no domingo, em viagem mais longa e mais curta que a sua (inda que não relatada), me empresta o mesmo sentimento em relação ao carnaval e à cidade. como você, decididamente alheia a tanto carnaval. ah!, pudessem as hordas compreender que há muito mais vida quanto mais fora dessa festa pagã! andar pela(s) cidade(s) estava melhor do que nunca!
ResponderExcluirObrigada, Rosana, minha sempre valiosa leitora. Bem, o fato de não gostar de Carnaval (e talvez nem seja esse o caso, mas uma certeza inapetência para multidões - sempre morri de vontade de assistir, ao vivo, um desfile de escolas de samba e nunca deu certo, por medo, novamente, de multidões) não significa que não ache válido os outros (e há muitos) gostarem, defendendo, inclusive, que eles tenham o direito de gostar e participar. Quanto à cidade, é uma paixão antiga essa atração pelo urbano, por aquilo que o homem transformou (que, admito, nem sempre foi pra melhor). E seguiremos, espero, rocando impressões, sempre. Abraço grato
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