sábado, 31 de agosto de 2024

Isabel das Santas Virgens e sua Carta à Rainha Louca

 



    Carta à Rainha Louca é um extraordinário romance de Maria Valéria Rezende, publicado em 2019, pela Editora Alfaguara. Um dos melhores da mais do que pujante safra atual da literatura brasileira. O romance é ambientado em Olinda no ano de 1789 e tem como protagonista Isabel das Santas Virgens, prisioneiro no Convento do Recolhimento da Conceição, que escreve à rainha Maria I, conhecida como a Rainha Louca.

    O fato de estar presa é também um resultado de sua própria “loucura” aos olhos do mundo local da época. Nessa carta, Isabela conta à Rainha toda espécie de violências contra mulheres e escravizados cometidas pelos homens da Coroa e por aqueles que aspiravam a ela pertencer.

    A narrativa transcorre toda em forma de missiva e é de tal maneira bem construída que a linguagem e vocabulário castiço da época não chega a causar nenhum empecilho à leitura. A escritora é hábil em fazer a trama caminhar, engendrando a cada novo capítulo um fato novo e intrigante.

    Pois é essa personagem sofrida, revoltada e encantadora que levei em mente no último sábado quando me dirigi para o Auditório do SESC Pinheiros, onde encontra-se em cartaz a peça Isabel das Santas Virgens e sua carta à Rainha Louca, interpretada de forma arrebatadora pela atriz Ana Barroso, também produtora do espetáculo.

    Ali, o que foi leitura, tornou-se materialidade. Esta Isabel que ouvimos ao vivo é igualmente revoltada, amargurada e inconformada em estar enclausurada unicamente pelo crime de saber ler, conhecer, refletir e criticar. O ato de saber ler sempre foi revolucionário. Isabel não só lia, como também ganhava, por um breve período, dinheiro com essa habilidade. Ora, mas uma mulher! Neste caso, o perigo é dobrado.

    Não fosse suficiente o fato auspicioso de ver a personagem Isabel ali, tão fulgurante no corpo e na voz de Ana, a emoção de estar ao lado da autora do romance naquele momento foi indescritível, em especial pra mim, que tive a rara oportunidade de tomar uma sopa com ela antes do espetáculo e conversar o que nos foi possível.

    Ao final do monólogo, despida da personagem, Ana Barroso, ao lado do diretor da peça Fernando Philbert, promoveram uma linda conversa com Maria Valéria Rezende, a romancista que, como sempre, empolga plateias, “Sou de olhar pela janela, mas há escritores que olham para dentro”, define-se ela. Quando ouviu da plateia que escrevera um livro feminista, ela diz que sua intenção não foi exatamente essa, mas o escritor capta o que está ao seu redor”. Já a sensível e grandiosa atriz, Ana, fala do desafio que foi adaptar um romance tão complexo para o teatro, trabalho que levou 4 anos e foi repartido com o diretor.






Por favor, Assistam, Divulguem, Leiam o livro, Propaguem.

Isabel das Santas Virgens segue em cartaz, às quintas, sextas e sábados até 13 de setembro.

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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Opções para morrer no espaço é lido e estudado no Sábados PerVersos


No encontro Sábados PerVersos – A poesia em questão, de agosto, realizado no primeiro sábado do mês, na Livraria e Espaço Cultural Alpharrabio, Deise Assumpção, a coordenadora do mês, trouxe o livro Opções para morrer no espaço (Editora Patuá, 2024) desta escriba para ser lido e comentado através de vários dos poemas que o integram, como também leu uma resenha crítica assinada por ela.

Foi uma honra e alegria ver os poemas do meu mais recente livro, lidos, analisados, comentados. Que mais poderia querer uma poeta, além de ser lida e comentada por leitores críticos e pensadores da poesia?

 Agradeço publicamente à poeta Deise Assumpção, autora do livro Cidade Cativa, publicado recentemente pela Alpharrabio Edições, pelo gesto de camaradagem poética entre quem há tanto tempo reparte o pensar.

Abaixo, a resenha crítica do livro por Deise Assumpção:

 opções para morrer no espaço: A poeta em fúria

 Em opções para morrer no espaço, Dalila Teles Veras rompe com a linguagem até então desenvolvida em seus livros de poemas anteriores.

Parece tomada de uma pressa em expressar-se diretamente ao correr do pensamento e do teclado.

Os poemas, que em vez de títulos utilizam-se de numerais em algarismos romanos para se identificarem, constroem-se fugindo a rimas, pontuação, esquema de estrofes e métrica. Se é verdade que sempre sua linguagem poética nunca se prendeu a regras e outros procedimentos poéticos, mas buscava a economia de dizer o muito com o mínimo, agora os poemas deslizam pelas páginas alongando-se, e os próprios versos alongam-se e quebram-se onde menos se espera, talvez cedendo apenas aos respiros da ânsia expressiva.

Tal procedimento, mais as palavras atropelando-se pela ausência de qualquer pontuação ou recursos visuais, emaranham o leitor na busca do sentido e da dicção.

Cria-se uma avalanche em que o eu-poético despeja toda sua fúria por sentir-se indefeso perante as injustiças que grassam ao redor, as irresponsabilidades que colocam vidas em perigo, o jogo de poder e a ganância imperante, e ainda os seres impermeabilizados do poema XII. Indefeso e também incapaz de uma ação concreta a colaborar na transformação desse caos asfixiante. O poema V nos diz que passar ao largo agora é questão de sobrevivência / – impotência disfarçada de arrogância – e pura estratégia de guerra não declarada. Assim, a poesia torna-se a arma possível para continuar respirando, pois o poema XVII pergunta como reinventar a humanidade que não deu certo. Mas transfigurar a dura realidade em poesia é vingança servida quente (poema XXIII).

Forma e conteúdo coadunam-se, criando um todo expressivo.

 Esse eu-poético mostra-se muitas vezes dividido entre a possível tranquilidade da vida de que desfruta e a fome, a pobreza, a doença, as condições extremamente precárias de sobrevivência a que está submetida a maior parte de seus semelhantes.

Assim, vemos, já no primeiro poema do livro, a descrição de um lauto café da manhã de que o eu-poético usufrui. No entanto, tal refeição choca-se de imediato com o sentimento de culpa pela fome alheia. Observemos os dois últimos versos da primeira estrofe:

com manteiga café expresso duplo e um triplo

sentimento de culpa pela fome alheia

 A quebra do verso em e um triplo e não em duplo, como conviria pelo sentido do texto, causa estranheza, mas aproxima o par duplo/triplo e torna o sentimento de culpa muito maior, que é triplo perante o café expresso duplo.

            A partir daí, o poema segue o eu-poético que vai se imiscuindo ao mundo. De início, na segunda estrofe, de manhã, ainda dentro de casa, esse mundo se mostra pela TV, a desdobrar aos desempregados esfaimados possibilidades impossíveis. Na terceira estrofe, já à tarde, e já no burburinho da rua, temos a correria pela sobrevivência (e pelo sonho impossível). Na quarta estrofe, fecha-se o ciclo do dia, vem a noite, com o sono da exaustão e os sonhos impostos e alheios dos fodidos pelas injustiças em camas insalubres. E mesmo não dita, fica sugerida a cama macia de que o eu-poético dispõe.

             Outro aspecto que emerge dos poemas está no questionamento da finitude. No poema IV, o trato entre as três velhas damas indignas busca dar um sabor de descontração ao tema. O poema II, questionando a tecnologia e o capital financeiro que reduzem a humanidade a produto de mais-valia até no post mortem, termina com o eu-poético constatando sua ingenuidade ao pensar que seu corpo morto se transformaria em cadáver estelar.

Esse inconformismo com a finitude nos remete ao próprio título do livro, extraído de um verso do poema XV: opções para morrer no espaço. Ante as opções científicas de transformar-se em estrela cadente e consumir-se ou em asteroide a vagar para sempre no espaço, esse eu-poético manifesta, mesmo que saiba não ser possível, seu desejo de ...permanecer a vagar na órbita do sol / mínima e incapturável. Desejo de eternidade e de fazer valer sua vontade mesmo após a morte.

 Como não poderia faltar à poeta que desde sempre pensa a poesia, a metalinguagem surge em vários momentos. O poema III, ante a desumanização do humano pela tecnologia, brinca com a palavra metaverso, afirmando que esse tal verso nem poesia é. Ante a necessidade de travessia do rubicão (poema VI), encontramos a poeta e seu pálido poema. Já o poema XXVII diz: no poema / o eventual aprendizado renasce pleno / apenas no leitor. A descrição da gestação do poema, seu nascimento, até atingir sua forma concreta, passando pelo corpo do/da poeta, encontra-se no poema XXXIII.

No poema XXXVI opções para morrer no espaço quase se encerra com um poema-ladainha a invocar os santos-escritores-poetas-artistas das estantes para a vivência estética.

De sobejo, no poema XXXVII, fechando o livro, o eu-poético traz uma contemplação da vida percorrida (77 anos): sobrevivente declarada sou, sobrevivente às intempéries narradas, no sentido mais extenso, figurado e simbólico que tal palavra comporta, através de seu lendo e criando, criando e lendo.

Deise Assumpção inverno de 2024

Deixo aqui o meu agradecimento aos presentes que tão generosamente se debruçaram sobre meus poemas: Deise Assumpção, Rosana Chrispim, Marcello Vitorino, Márcia Plana, Encarnación Melgar, Isabela Agrela Teles Veras, Vanessa Molnar e Fernanda Pompeu. Bem hajam!