terça-feira, 12 de dezembro de 2017

poesia.net 15 anos/Carlos Machado - em forma de homenagem

Enviei o comentário abaixo ao poeta Carlos Machado, editor do poesia.net que neste 12 de dezembro comemora 15 anos. O comentário foi publicado no site especial dos 15 anos do poesia.net e o republico aqui, com a minha dupla homenagem, repetida 15 vezes.

"Muito mais do que um sítio virtual, Alguma Poesia, repositário de preciosos “boletins” com abordagens críticas sobre poetas brasileiros e estrangeiros, é já uma verdadeira Instituição da língua da poesia. O cuidado cirúrgico e extremamente respeitoso com o tratamento dado a cada um dos boletins regularmente publicados há exatos 15 anos (sim, eu disse QUINZE anos — e isso em termos de assuntos virtuais é assombroso), faz desse espaço um lugar de referência e memória viva da poesia contemporânea. Não fosse o bastante, transmutado em “poesia.net”, desenvolveu e ramificou-se em outras formas “mais ágeis”, como cartões postais poéticos e uma página no Facebook, ampliando, assim, a leitura da poesia e chamando atenção dos mais distraídos para essa linguagem nem sempre levada tão a sério nesses meios ligeiros de comunicação. Conexão admirável entre os próprios poetas e um número estonteante de leitores alcançados. Atrás disso tudo há um nome: Carlos Machado, seu criador e editor, poeta dos mais refinados, tradutor idem, crítico que só usa de sua pena para falar do que acredita, jamais para dizer mal do que não gosta, muito menos para provocar deliberadamente polêmicas estéreis tão comuns na república das letras. Fica difícil acreditar que este desprendido e incansável trabalho seja realizado por uma só pessoa que, diga-se, o faz de forma competente, mas, sobretudo, amorosa, sem qualquer espécie de patrocínios pecuniários, públicos ou privados. O papel de seguidora fiel e entusiasta desde os primeiros tempos, a alegria de ser apresentada a poetas que desconhecia e reler, de forma diversa, aqueles que já conhecia, já seria o bastante. Mas o fato de ter sido contemplada com boletins e cartões postais foi além da satisfação de leitora: representou verdadeira honraria que me enche, confesso, de muita vaidade. Bem haja, Machado, timoneiro dessa nau que transporta carga tão preciosa!

Dalila Teles Veras, poeta (poesia.net n. 72n. 331 e n. 355)
Santo André, SP"

domingo, 3 de dezembro de 2017

Duda, o operário letrado - saudade


Estive esta tarde no Cemitério da Saudade, na Vila Assunção, primeiro bairro em Santo André onde residi por nove anos. Naquele cemitério repousam inúmeras personalidades, políticas (como Celso Daniel e uma dezena de outros Prefeitos e políticos de destaque na região do ABC) e artísticas, como Luiz Sacilotto (que, para meu espanto, não consta da galeria de “ilustres” na entrada do local).

Hoje, dia 02 de dezembro de 2017, um domingo nublado, o local acolheu mais um ilustre cidadão, José Duda Costa, chamado por nós, o povo da cultura e da memória, simples e carinhosamente por Duda.


A minha parcela de ativismo cultural deu-me canseiras, contrariedades, mas muitas alegrias. Dentre elas, a felicidade de conviver com pessoas especiais, gente que se destacou por sua singularidade, jamais por celebridade ou fatos midiáticos, muito menos por qualquer espécie de cargo ou poder. Duda foi uma dessas figuras que admirei e tive a honra de receber sua amizade por três décadas.

Foi um homem simples, mas não dessa “simplicidade” que comporta alienação, desconhecimento. Não frequentou escolas superiores, desconfio que apenas as primeiras letras, mas era um grande leitor, o que o diferenciava enormemente.  Lia e decifrava, porque a sede do conhecimento e da participação social o movia. Fez parte de uma geração de operários letrados, engajados, participantes, proponentes e, naturalmente, memorialistas. Desse grupo de “operário padrão” (não naquele enquadramento do “padrão” imposto pelo patrão, mas no da demanda da própria classe trabalhadora, do qual faziam  parte  (e com eles tive a honra de conviver e prezar de amizade), o Philadelpho Braz (hors concours) e muitos outros que já nos deixaram. Alguns deles, temos ainda a sorte de conviver como João de Deus e Alberto Braz (irmão gêmeo de Philadelpho).

A biografia singela de Duda pouco diz do homem que a protagonizou. Nascido em Garanhuns, PE, em 1934, filho de um lavrador que possuía um armazém de secos e molhados (aqui, minha identificação de origens imediatamente assimilada).  Órfão em tenra idade, aos 11 anos, foi para Recife morar com uma irmã casada, onde trabalhou como mecânico. Em 1948, como tantos seus conterrâneos, veio para São Paulo, uma viagem épica, no chamado “pau de arara”,  aventura que ele contava sempre com muita graça. Aqui, veio trabalhar em Santo André, onde teve inúmeros empregos (Fábrica de Doces, cobrador em empresa de ônibus, garçom, cozinheiro e, finalmente, com a vinda das grandes indústrias, operário metalúrgico no então nascente e fervilhante mercado de trabalho (trabalhou na International Harvestes Máquinas, General Eletric e Volkswagen). Tinha conhecimentos de desenho mecânico e fez carreira exitosa nessas empresas. Na Volkswagen, onde trabalhou por 18 anos até sua aposentadoria, foi inspetor de Qualidade do Departamento de Prensas.

Conheci Duda nos primórdios do GIPEM – Grupo Pesquisadores da Memória, fins da década de 80, contato que foi aprofundado na preparação do I Congresso de História do ABC, realizado em 1990 com a inauguração do Museu de Santo André. Sua prosa fácil e bem humorada, recheada de boas histórias era isca fácil à amizade. Foi um frequentador assíduo da Livraria Alpharrabio, participando com muita propriedade das atividades ali realizadas.

A partir daí, eu e muitos outros amigos (muitos dos quais compareceram hoje ao seu sepultamento) nos acostumamos à presença de Duda em todos (sim, TODOS) os movimentos em pról da Memória e preservação do Patrimônio Cultural e Arquitetônico, assim como em todos os 14 Congressos de História do ABC, dos quais participou não só na organização, mas como debatedor, depoente, incentivador e entusiasmado partícipe. 




O último deles, já muito debilitado, em Rio Grande da Serra, há pouco mais de 20 dias. Foi conduzido até ali pelo amigo João de Deus que o acarinhou com desvelo durante todo aquele segundo dia do Congresso. Mostrava-se feliz o nosso Duda, estava entre as pessoas que falavam a sua língua, a língua fraterna da memória. Foi sua última aparição pública. A sua presença foi verdadeiramente grata e saudade por todos que ali estavam. 

Viveu lindamente os seus 83 anos. Deixa uma linda família, composta pela Dona Glória, com quem casou há 60 anos, seis filhos, netos e bisnetos. Deixa também um espólio composto por objetos responsáveis por seu conhecimento enciclopédico sobre música popular e clássica (milhares de fitas K7, LPs, CDs), livros sobre os mais diversos assuntos de seu interesse, em especial, biografias. coleções das quais muito se orgulhava e gostava de mostrar aos amigos que o visitavam, recebidos com bolo e chá de maracujá de Dona Glória. Sim, ele também gostava muito de ler poesia e fazia versos para todas as ocasiões. Deixa, sobretudo, a memória inesquecível de sua presença como cidadão participante da vida de sua cidade e de sua região. 






Duda vive. Viva Duda!

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

60 Anos de Brasil - uma pequena história emigrante (a minha)




No dia 29 de novembro de 1957, uma sexta-feira, o “Santa Maria”, paquete português pertencente à Companhia Colonial de Navegação, atracou no Porto de Santos. Dentre turistas (na primeira classe) muitos emigrantes (terceira classe) vinham em “caráter permanente”, como era o caso da família Olival/Agrela, a minha (Manuel de Jesus Agrela, Maria de Lourdes do Olival, Dalila Isabel Agrela, José Manuel Agrela, Maria Floripes do Olival Agrela).
29 de novembro de 2017 foi ontem, mas como não me apercebi da data, celebro hoje os meus 60 anos de Brasil, em forma de abraço fraterno aos meus irmãos brasileiros e com alguma poesia.
A infância e a travessia foram objeto dos poemas do meu livro “solidões da memória” (Alpharrabio/Dobra, 2015). 



Neste poema, chegada, falo da viagem e do impacto com a terra prometida.

chegada
  
       Para a frente era só o inavegável
        Sob o clamor de um sol inabitável
                                       Sophia de Mello Breyner Andresen


onze foram os dias
enjoo,  sarna e tédio
terceira classe
paquete santa maria

da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais

aos emigrantes, o
delimitado espaço
do porto, aos turistas
a cidade  (entre)vista
do cais

(aos que vinham
para o trabalho
ver o trabalho
era  o limite)

via-se
:
corpos gingantes, a estiva
torsos negros azuis suados

e o cheiro despudorado
do abacaxi a anular o resto

 (o brasil tinha cheiro
e era de ananás)

Nota: O navio Santa Maria, construído entre 1952 e 1953, na Bélgica por encomenda do Governo Português, fazia parte do “Plano de Renovação da Marinha de Comércio”, tido como “Despacho 100” e implementado por Américo Tomás, então ministro da Marinha de Portugal. Fez parte desse plano a construção de 56 navios para a Marinha Mercante portuguesa. Juntamente com o seu similar, o “Vera Cruz”, construído um pouco antes, esses navios ficaram conhecidos como “navios do Despacho 100”.
A viagem inaugural do Santa Maria ocorreu em 1953, com destino ao Brasil, Uruguai e Argentina. Durante sua carreira (1953-1973) fez carreira regular entre Portugal e as Américas (do Norte, Central e do Sul). Foi o único paquete português com linhas regulares para portos dos EUA.


Não foi, entretanto, por essa carreira trivial transportando mercadores e passageiros que o Santa Maria ficou célebre.  Em 21 de janeiro de 1961, um grupo de exilados políticos portugueses e espanhóis, ligados à “Direção Revolucionária Ibérica de Libertação” que, à época, faziam oposição política aos governos ditatoriais de Salazar e Franco,  sequestrou o navio que passou a ser chamado de “Santa Liberdade” pelos revolucionários. No comando do navio sequestrado, ação denominada “Operação Dulcineia”, estavam o Capitão Henrique Galvão e Jorge de Soutomayor. A lamentar o assassinato do oficial João José Nascimento Costa, 3º piloto. O sequestro, muito barulho depois, acabaria no Porto do Recife, no dia 2 de fevereiro. Foi o primeiro sequestro político de um transatlântico da história contemporânea.  O seu final não teve nada de glorioso. Ainda relativamente  novo e navegando, foi vendido, em 1973, para a China, para desmanche.

Concluindo, não escolhi emigrar, mas escolhi ser brasileira sem deixar patente a minha nacionalidade portuguesa. Sou uma escritora brasileira nascida em Portugal (a minha sintaxe não é a lusitana, como é de se esperar de alguém que saiu de seu lugar de nascença aos 11 anos e vive há 60 noutro, o da escrita). dtv

sábado, 21 de outubro de 2017

Marcus Accioly, uma nênia

Quando morre um poeta - e hoje morreu um - vou à estante, retiro tudo o que dele encontro e ponho-me a ler... ler. É a maneira que encontrei para velar o corpo de sua obra, um corpo que bem conheço. Assim, também velo seu corpo, que desconheço, mas homenageio e respeito.


Morreu hoje, aos 74 anos o poeta Marcus Accioly, nascido em Pernambuco, equivocadamente tido por alguns como “poeta regionalista”. Não foi/não é. Foi/é um poeta Brasileiro/universal, imenso, épico, órfico, exuberante.  A ele rendo minhas homenagens.

O poema abaixo, pertence ao livro “Sísifo”, Edições Quíron/MEC, 1976

Canto Terceiro
O IMPOSSÍVEL DA ALEGORIA
      II
pedranimal
       e pássaro-poeta

há um puma na montanha e há uma pedra
(além de Sísifo) há uma pedra e um puma
há a montanha uma pedra um puma e Sísifo

os perigos de Sísifo: a montanha
uma pedra e um puma (a pedra sobe
e o puma desce sobre a pedra e Sísifo

há uma pedra entre o puma e Sísifo
há uma luta entre o puma e Sísifo
há uma pedra e um puma para Sísifo

há um puma sozinho na montanha
há uma pedra subindo na montanha
há Sísifo somente na montanha

há um puma e o puma é a própria morte
há uma pedra e a pedra é um poema
há Sísifo e Sísifo é o poeta

Marcus Accioly, in Sísifo, Edições Quíron/MEC, 1976


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Catarina (no seu 8° dia de vida)

Catarina chegou
inaugurando Outubro
reafirmando a Primavera

Catarina, minha neta
é luz de nova estação
promessa de tempos novos
                       
Catarina é nome de santa
em Alexandria
e de algumas rainhas
dentre elas
Catarina de Médici
italiana, consorte de França
Catarina de Aragão
princesa de Espanha 
consorte de Inglaterra
Catarina II
Imperatriz russa
que reinou, reinando
colecionando arte e amantes

Catarina, nome antigo
vem lá do Século XII
tem história e personalidade
é também o nome de minha avó
Adelaide Catarina de Jesus
que se rainha fosse, ao contrário
da esfuziante russa, a grande
teria como cognome, a pequena

Catarina, minha neta
há de ser todas elas
porque mulher traz consigo
mulheres que a antecederam
mas será, sobretudo, ela própria
que traçará sua rota individual
sem descuidar das questões coletivas

Bem vinda Catarina
ao reinado dos meus afetos

dtv
09.10.2017

domingo, 8 de outubro de 2017

Coleção PerVersas – literatura de autoria feminina no Mulherio das Letras

Desde a primeira hora, o entusiasmo foi grande (e é ainda). O Encontro do Mulherio na Paraíba ocupou meus planos e tinha todos os motivos para isso. Por esses descaminhos da vida cotidiana, ainda que tivesse me programado e confirmado presença oficialmente, tive que me “desprogramar” . Sei que querer não é poder e, assim, tranquilamente admito não poder. Ponto.  

Para quem não sabe, o primeiro Encontro Mulherio das Letras é um encontro nacional que transcorrerá em João Pessoa, entre os dias 12 a 15 de outubro de 2017.  Trata-se de um evento pioneiro, organizado de forma coletiva e de maneira horizontal, cujo objetivo é reunir mulheres ligadas à literatura ( poetas, ficcionistas, dramaturgas, tradutoras, pesquisadoras e críticas, editoras, livreiras, ilustradoras, designers e jornalistas) oriundas de diversas regiões brasileiras. O evento é também inovador na sua forma, fora do modelo adotado como padrão de festivais e feiras de literatura que ocorrem em todo o Brasil. O Mulherio das Letras contará também com espetáculos teatrais e uma livraria, e que exporá e venderá ao público os livros das participantes.

Sem sombra de dúvida, este será um grande marco não só no cenário da literatura brasileira, como também na luta por direitos das mulheres brasileiras. As discussões que ali decorrerão balizarão os passos decisivos ainda a percorrer. Será um encontro histórico e, por essa razão, fica uma pontinha de tristeza por lá não estar presencialmente.

Entretanto, aqui estarei, no meu bunker do Subúrbio andreense, programada e ansiosa para receber notícias, mas ao mesmo tempo lá estarei, através das lindezas destes objetos gráficos e conteúdos literários que lá serão apresentadas e que seguem na bagagem da amiga Rosana Chrispim, parceira das letras de muitos anos.

Serão apresentados durante o Encontro Mulherio das Letras  os primeiros cinco volumes da coleção PerVersas – Literatura de autoria feminina, Alpharrabio Edições, Santo André, SP, viabilizada a tempo do Encontro, graças ao decisivo e incansável trabalho (criativo e braçal) de Luzia Maninha Teles Veras.  
Com a proposta de reunir textos (poesia, crônica, conto, ensaio) contemporâneos, a ideia da coleção surgiu de algumas discussões em torno da invisibilidade histórica das mulheres escritoras, decorridas nos encontros “Sábados PerVersos – a poesia em questão”, leitura crítica de poesia, evento mensal da Livraria Alpharrabio, desde novembro de 2014. A coordenação editorial da coleção é de Dalila Teles Veras e a concepção gráfica e criação manual dos volumes é de Luzia Maninha. Tiragem de 92 exemplares, numerados e assinados pelas suas respectivas autoras.


Assim, estará no Mulherio das Letras, este “pequeno mulherio”, que mora longe, mas perto está de todas as propostas (oportunas, necessárias, meritórias) do Encontro:

- a mulher antiga – dalila teles veras, vol. I
- cascos e crinas sobre fundo escuro – Conceição Bastos, vol. II
- relíquias de anjos – Deise Assumpção, vol. III
- não sabia a idade – Constança Lucas, vol.IV

- Contracena – Rosana Chrispim, vol. V

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Ruth Escobar morreu. Ruth Escobar vive!




Morreu hoje, aos 82 anos, Ruth Escobar. Atriz, política, feminista e produtora cultural ousada. Uma mulher à frente do seu tempo. Em 1982, acabara de publicar meu primeiro livro e fui convidada a participar do festival "Mulheres nas Artes", produzido por ela, decorrido no Club Homs, na Av. Paulista, em São Paulo. Foi um acontecimento cultural revolucionário que reuniu centenas de mulheres incríveis, daqui e de todos os lugares. Foi ali que vi pela primeira vez Cora Coralina, demoradamente aplaudida por um auditório em estado de encantamento. Dentre muitos outros incríveis momentos, foi também ali, pela ousadia de Ruth Escobar, que ouvi, igualmente em estado encantatório, outra mulher, feminista de sete costados, a italiana Dacia Maraini. Em 2001 assisti ao último espetáculo sob sua produção, "Os Lusíadas", monumental espetáculo encenado no local em que hoje está (em reforma) o Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz. Acompanhava com entusiasmo sua carreira fulgurante e polêmica. Uma mulher de fibra que jamais se curvou ao establishment. Se a memória a abandonou na última década, cabe a nós manter a memória de sua arte e atuação cultural.
Ruth Escobar, portuguesa/brasileira, que muito fez pela cultura de suas duas pátrias, morreu. Ruth Escobar vive!


quinta-feira, 3 de agosto de 2017

2017 - A FLIP que desflipou e diversificou



            
Em 2003, estive em Paraty, RJ, encantadora cidade litorânea do RJ, encravada entre o mar e serras, onde, em priscas eras (1530-1812) funcionou um fervilhante "porto do ouro". Ali, de 1º a 3 de agosto, ocorria a 1ª Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP. Fui levada pela curiosidade. Afinal, uma Festa só para a literatura, era uma novidade absoluta, levando em conta a magnitude com que era anunciada e como de fato foi. Fui acompanhada por dois fiéis escudeiros, Valdecirio, o marido, e Antonio Possidonio Sampaio, o amigo. Fui porque além de festa literária, abria com uma celebração à poesia, homenageando Vinicius de Moraes. E foi lindo ver/ouvir Chico Buarque ler, emocionado, “Meu Tempo é quando” (“Eu morro ontem. Nasço amanhã. Ando onde há espaço “...), como foi igualmente lindo ouvir Antonio Cícero ler “Pátria Minha” e Adriana Calcanhoto a cantar “Eu sei que vou te amar” e Chico retornar, cantando “O poeta aprendiz”. E Gilberto Gil, na condição de Ministro da Cultura. Ali estava a FESTA! E eu estava nela. Ali estava um Brasil que acreditava no Brasil.
            A Festa era internacional, sim, como ainda é, havia escritores estrangeiros, mas também lá estava Ferreira Gullar, Ana Maria Machado, Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Tabajara Ruas, Zuenir Ventura, Adriana Falcão, Joaquim Ferreira dos Santos, Jurandir Freire Costa, Drauzio Varella, Luís Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Ruy Castro, Bernardo Carvalho, Marçal Aquino, Patrícia Melo, Eduardo Bueno a dizer que também o somos, além, naturalmente, de algumas destacadas figuras estrangeiras, dentre as quais o velho Eric Hobsbawm, firme e lúcido nos seus 90 anos, de quem guardo com muito orgulho seu precioso A Era dos Extremos – O Breve Século XX, autografado.
            Ainda que tenha me interessado muito, ficou sendo, por 14 anos, a primeira e a única. Com o crescimento brutal da Festa, fiquei afastada. Nunca me dei bem com filas e multidões e o desinteresse veio também pelas poucas surpresas nas programações posteriores, quase sempre dominadas por figuras do “mainstream” das grandes editoras.  A Flip passou a ser (quase) previsível. Ainda assim, sempre torci para que desse certo. A Literatura também precisa e agradece a festa.
            Até que FLIP 2017 foi anunciada e pela primeira vez sob a curadoria de uma mulher, a dinâmica e competente jornalista Joselia Aguiar, que passou a delinear uma proposta para a Festa que muito me interessou. Era maio e não tive dúvidas,  reservei um quarto na pousada, na expectativa da virada.
            A seguir, data vênia aos jornalistas, descrevo à minha maneira, em forma de crônica e com muitas aspas,  a “minha” FLIP (oficialmente, a 15ª, mas no meu calendário pessoal, a 2ª.).  
           


            
            A sagrada palavra da literatura invadiu o templo “construído com trabalho escravo”  (a benção poeta/pensador Edimilson Pereira de Almeida Pereira!). Sem a menor cerimônia, dialogou com o deus e os santos do lugar. Anticlerical, a literatura propôs um pacto de isenção e, durante cinco dias, fez do altar palco e palanque e celebrou o rito da comunhão pela palavra e pela diversidade.
            Foi então que se deu o “milagre ateu” (a benção presidenta Pilar!) e os fiéis leitores deram-se as mãos, sem olhar para suas respectivas peles, gênero ou classe social e celebraram o rito da forma mais iconoclasta, despidos de teologia, homenageando um escritor negro e pobre, cuja palavra vai percorrer todas as frestas dessa festa da palavra. Um escritor que “escreveu do ponto de vista dos excluídos, que usou a língua do dominador para falar dos dominados” (a benção Luciana Hidalgo!)
            E da sacristia saíram frutos estranhos que foram oferecidos à degustação da forma mais inusitada, entranhados nos olhos e corações de quem lá estava. Poesia pulsante, na palavra, na imagem, na voz, nos corpos. Poesia. Poesia fora de lugar, Poesia para ver, ouvir, sentir, cantar. Poesia multilíngue. Poesia soco no estômago (a benção Prisca Agustoni, a benção Adelaide Ivánova, a benção Josely Vianna Baptista, a benção Grace Passô, a benção Ricardo Aleixo, a benção André Vallias! por esta tropical fruteira de cores selvagens).
            E a palavra atravessou as paredes do templo, operando milagres das mais diversas versões pelas tortuosas ruas coloniais, calçadas de pedra e “suor dos pretos” (a benção Diva Guimarães, que, da plateia, virou diva da festa e viralizou nas redes sociais!) numa vibrante festa não oficial,  multiplicada em milagres laicos não qualificáveis, saudando os indígenas que tiveram voz e mostraram seu belo artesanato nas ruas, as estátuas vivas, os atores e suas performances, os músicos, entrando nas casas provisórias batizadas com os nomes dos seus criadores, oferecendo iguarias não catalogadas. E os que vieram para a programação oficial também foram encontrar seus leitores e sentaram nas duras pedras com a leveza de quem já experimentou a dureza (a benção Scholastique Mukasonga, que nos foi apresentada por uma pequena editora, a NOS. A benção Simone Paulino). 




            E livros, muitos, publicados por pequenas editoras que romperam a hegemonia das grandes (a benção Simone Paulino e tantos!). Livros autografados, dedicados, passaram para as mãos de leitores curiosos de ouvir vozes que não conheciam ou reconheciam.
            Esta foi a FLIP das surpresas e dos pequenos que são grandes. Dos livros e dos escritores voltados à literatura para jovens e adultos (a benção Suzana Ventura e tantos!) Das mulheres. Dos Negros. Dos pouco conhecidos, mas de há muito reconhecidos por seus pares, graças à consistência de sua obra e trabalho de décadas. Dos desconhecidos apenas por não serem (ainda) mediáticos, mas reconhecidos por láureas reconhecidas. Esta foi a FLIP das cartografias “fora dos radares” (a benção Joselia Aguiar, a timoneira que desviou o barco para águas fora do mapa!). Esta foi a FLIP daqueles que, silenciosamente, passo a passo, constroem pontes intercontinentais, através de ações educativas e de incentivo à leitura (a benção Leonardo Tonus). Esta foi a FLIP da ágora e da política, porque todo o ato que se quer público é também político. E em especial neste triste momento da vida brasileira, a política se fez incontornável.
            Esta foi a FLIP da diversidade. Homens e Mulheres pela vez primeira em igualmente de número (23 e 23  - os oficiais) tanto quando em igualdade de condições estéticas e méritos artísticos. Negros (um terço na programação e em número incontável na plateia).  E não, o critério não foi meramente a condição de ser negro ou mulher, como aqui e ali foram ensaiadas maldosas críticas (não por acaso de brancos e homens) porque as mulheres e negros que ali estavam já escreviam, estudavam, pensavam, publicavam há muito tempo, só não lhes era permitido mostrar. “As mulheres iam pouquinho nos eventos literários, só de cota” (...) As mulheres escritoras brasileiras não são tratadas com prestígio no meio literário: é como se fossem cozinheiras num grande restaurante de luxo. Sem elas a comida não existe, mas só recebem a gorjeta das comandas” (a benção Maria Valeria Rezende, mulher das letras e da ação, uma das figuras centrais e onipresente desta Festa!).
            
         Esta foi, por fim, a FLIP que esteve distante da superficialidade com que a maioria dos jornalões a noticiou e alguns ressentidos a criticaram. 

Algumas anotações, frases pescadas das falas que ouvi e que ficaram brilhando no escuro do ônibus, na longa e cansativa viagem de retorno:

- O que é escrever num país em estado de guerra civil? Edimilson Pereira de Almeida
- Há racismo, sim, mas é preciso atravessar o fogo do racismo, atravessar a floresta em chamas, apesar das queimaduras ( Scholastique Mukasonga)
- Toda a ficção é memória e toda a memória é ficção (...) No sertão não havia nada. Eu escrevia para ter também o que ler (Maria Valéria Rezende)
- Tudo absurdo! O absurdistão (Luaty Beirão, rapper e ativista angolano, referindo-se à situação política de seu país)
- Éramos filhas, esposas e mães, não tínhamos cidadania (...) A passividade está matando. Pessoas que só fazem o que lhes mandam são fáceis de governar. Ser cidadão ativo dá trabalho. (Pilar del Rio)
- Lima Barreto gritou contra o racismo, contra pistolões, apadrinhados políticos... Se tivéssemos lido mais Lima Barreto, não viveríamos o que estamos vivendo hoje (...) Hoje, com as redes sociais, o alto nível de reflexão pelos direitos sociais, o neo-feminismo, somos todos Lima Barreto.

            Os problemas enfrentados na primeira FLIP, permaneceram (preços exorbitantes praticados por hotéis e restaurantes, falta de banheiros e outras questões menores, sem contar o incontornável problema  histórico, ou seja, o andar aos saltos sobre as pedras e, agora, no meu caso, muito mais do que antes, com medo das quedas e a inevitável dor nas panturrilhas). 


Afinal, pedras fazem parte dos caminhos e são também matéria para poesia.
          
A FLIP aconteceu na mesma cidade,  com um formato bastante semelhante às anteriores, mas... quanta diferença!

#Josélia2018, por todas as questões relatadas.

O templo/matriz que foi palco

A voz dos índios



A voz das mulheres (e dos homens) como nesta linda mesa da Flipinha


A avidez leitora


A FLIP na rua


A FLIP dos intervalos e silêncios à margem do rio Perequê-açu






segunda-feira, 17 de julho de 2017

Nênia para Caio Porfírio Carneiro, meu amigo

Nosso amigo Caio Porfírio Carneiro morreu hoje, informa Rosani Abu Adal.  Fiquei triste e, como sempre acontece quando parte um escritor/uma escritora de minha admiração, meu primeiro impulso é buscar um dos seus livros na prateleira, reler trechos assinalados ou não de sua obra. É o que faço neste momento com os livros de Caio, em especial, de "Maiores e menores", livro que tivemos a honra de editar, pela Alpharrabio Edições, em 2003. Esta será minha silenciosa e sentida homenagem ao meu amigo e de tantos e tantos outros escritores.  
Também como forma de lembrá-lo, reproduzo abaixo o texto que publiquei no Jornal Tribuna Popular, Santo André, em julho de 1998, por ocasião da celebração dos seus 70 anos.


foto Rosani Abu Adal


Os setentanos de Caio
Cario Porfírio Carneiro, o reconhecido  contista de Trapiá (o primeiro livro, em 1961) a Mesa de Bar (o mais recente – Ed. Toda Prosa, SP, 1997) com cerca de outros 15 títulos entre os dois, dentre os quais se inclui o romance Sal da Terra, de 1965 (Ed. Civilização Brasileira), êxito editorial com reedições posteriores e traduções em diversas línguas, faz 70 anos em plena atividade de escritor e eterno guardião da União Brasileira de Escritores, São Paulo, entidade onde há décadas exerce o cargo de Secretário Administrativo, extrapolando essa função com a palavra sempre amiga que dedica aos escritores associados, bem como a dedicação e a paciência com que orienta os jovens escritores que o procuram, sempre com uma palavra e um gesto de incentivo.
Cearense de nascimento, há muito radicado em São Paulo, Caio recheia seus contos e romances com cenários que tanto podem ser rurais (reminiscências da infância e juventude) ou urbanos, por onde sua palavra segura transita. O crítico Fábio Lucas no prefácio de Viagem Sem Volta, aponta: “Após longa vivência do autor num centro metropolitano, o contrário é que se observa: mesmo surpreendendo suas personagens a se enredar no espaço rural, poder-se-ia dizer que as paixões que as movem guardam particularmente o estigma das preocupações urbanas.”. Mestre da narrativa curta, dos diálogos secos e parágrafos curtíssimos. É também nos silêncios sugeridos (e adivinhados) que essa habilidade se manifesta.
Caio completou dia 1º de julho 70 anos. Sua obra está inscrita na melhor linhagem da prosa de ficção brasileira, que vai de Graciliano a João Antonio  e merece ser festejada tanto quanto o merece o grande ser humano que é.
De minha parte, fica a homenagem, em forma de depoimento e recordação: Caio foi o primeiro escritor “de verdade” que eu conheci na vida, “em carne e osso”.  Era 1971 e eu, metida a repórter, entrevisto Caio para um jornal de uma entidade cultural, o CORB, que eu frequentava. De quebra, Caio ainda estava acompanhado de Paulo Dantas. Aproveito a ocasião e entrevisto os dois, de quem fico admiradora confessa, acompanhando desde então a carreira de ambos através da leitura de todos os seus livros que vieram a ser publicado após aquela data.


Caio faz setentanos. Viva Caio e sua vida inteiramente dedicada ao livro e à literatura. 

sábado, 8 de julho de 2017

Estranhos Estrangeiros


Postei este texto no facebook, mas como a rede social é mais, digamos assim, volátil que este meio, ou seja, o blog, que armazena textos e é localizável, republico-o aqui com alguns acréscimos:

foto Manuel Filho

“Foi assim: era uma vez um menino nascido em SP que veio para São Bernardo do Campo ainda pequeno. Ali, numa biblioteca com nome de escritor, Monteiro Lobato, descobriu a possibilidade de outros mundos para além do seu. Os bibliotecários de então, gente que  percebe as ânsias dos frequentadores, fecharam os olhos para os livros “proibidos” que o menino escolhia par ler e o deixaram viajar à vontade. Esse menino, já crescidinho, foi conhecer “in loco” outros mundos, reais, sem abandonar aqueles dos livros. Acabou estudando na Sorbonne, virou mestre e doutor nessa prestigiada Academia, em Paris. Valendo-se dos mundos armazenados na infância que foram se acumulando ao longo da vida, passou a criar pontes para que os criadores desses mundos pudessem transitar e, sobretudo, e encontrar. Neste julho, ele novamente atravessa o Atlântico, e, no caminho, vai ligando palavras e seres, fazendo-os cruzar as tais pontes. Desta vez, com parada obrigatória na cidade de sua infância, mais precisamente, na Biblioteca de sua infância. Convida algumas dessas vozes criadoras de mundos e os reúne exatamente lá, no local onde descobriu as primeiras. Mais uma vez, os bibliotecários e toda a gente que lá havia foi condescendente e topou a parada com muita garra e contentamento. A casa encheu de gente para ver/ouvir cinco escritores (Carola Saavedra, Lúcia Hiratsuka, Marcelino Freire, Marcelo Maluf e esta que vos escreve) por ele convocados e foi muito, mas muito gratificante estar lá no papel dessas vozes convidadas a falar sobre o tema proposto “Estranhos Estrangeiros”. Li, falei, mas, sobretudo, aprendi com escritores de outras gerações que não a minha, mas por quem muito me interesso. A idealização, a coordenação e a mediação de Leonardo Tonus, o menino descobridor de mundos, foi fundamental para que o encontro fosse transformado em epifania. O registro é de outro habitante do lugar, desde aquela mesma época, o agora escritor reconhecido, Manuel Filho. Bem hajam todos!”


Aquelas/aqueles que ali estavam passaram por deslocamentos territoriais, mas não só, transfiguraram esses estranhamentos em poesia, romance, conto, ilustração. Em comum, o sentimento constante de “estrangeiro”, o bárbaro que não fala a mesma língua e, como disse Marcelino, não cumpriu “o sonho dos pais em estudar administração de empresas ou coisa que o valha”. A/o estranha/o que espia o invisível aos demais e quando o diz já é outra coisa, ainda que a mesma. A memória é sempre um mistério e é também enganosa, posto que construída e recriada por quem se recorda. Depois de transfigurada e escrita, torna-se coletiva e pertence a quem dela quiser servir-se. Tenho refletido muito sobre isso, sobretudo após vários leitores críticos apontarem essas questões (do rizoma e da memória) em minha produção poética. O encontro da noite de sexta-feira 07.07.17 me instigou e pensar melhor sobre isso e, sempre que possível, transformar o lembrado pela língua da poesia. dtv

domingo, 2 de julho de 2017

71 anos hoje - testemunho

71 anos hoje – testemunho

nasci (como Amália)
no tempo (tardio) das cerejas
por essa razão o meu viver
foi/é tingido de encarnados
chama ininterrupta
para afugentar mornidões

tive amores (circunstanciais e um definitivo)
tive filhas que tiveram filhos e
meus netos são
nenhuma delas/ nenhum deles me pertence
o liame do amor basta, sem nós a sufocar o peito nem a vida

não quero ser jovem (nem sequer parecer jovem)
porque já fui e já não sou
tenho a idade que tenho e sou velha
sim, velha, sem atenuantes semânticos
tenho boa saúde, mas, seguramente
esta não é a melhor idade
apenas uma novaidade
sujeita a ventos e tempestades imprevistas
(mas há – e haverá  - a incomparável luz de outono
vista e sentida setenta e uma vezes)

de material, mais nada desejo
(exceto livros, vírus incurável e não transmissível que,
para minha frustração, não consegui transformar em epidemia)

tenho fomes, ainda
muitas fomes...
(e preciso de quem as mitigue comigo)
antes da lápide
              a vida em brasa
antes das cinzas
                o fogo


dtv 02.07.2017

E.T.: entrei no facebook já há alguns anos. não permiti que a data de meu nascimento fosse de caráter público, ainda que tudo que publico aqui o seja. não que me importe com o número de anos, informação que jamais escondi, mas como espécie de “teste”, a ver quem a lembra sem lembrado ser pelo robô cibernético. como mudam-se os tempos (e as vontades, sabia bem o poeta maior) hoje deu-me vontade. e só porque deu vontade, publiquei este “testemunho” e anunciei a data. também porque deu vontade, decidi que a data será festejada tanto quanto no ano passado, ou seja, durante todo o mês de julho. só porque estou viva e tenho fomes.
E.T.: originalmente publicado, nesta também, no Facebook


domingo, 11 de junho de 2017

Renata Pallottini – de viva voz

Meu sábado passado, 10 de junho, compreendeu uma verdadeira maratona poética de 5 horas (sem sair do lugar) na Casa das Rosas e posso dizer que nem saí cansada de tal empreitada.

Após participar do Sarau Camões, convidei Renata Pallottini  (que também participara) para um café, no Caffè Ristoro, um lugar aconchegante situado nos fundos, enquanto esperaríamos pelo início  do “Viva Voz”, um projeto da Casa, no qual um poeta é convidado para “falar sobre sua trajetória literária, seu processo de criação e outros assuntos relacionados à poesia e a suas conexões com a vida, bem como para realizar leituras públicas de seus poemas.” Ela (86 anos absolutamente insuspeitos): - café, só se for pra você, vou de vinho”. Fomos. Um chileno tinto e um salgado para garantir o estômago saudável.


Pontualmente, às 19h30, os “mestres de cerimônia” Reynaldo Damazio e Julio Mendonça iniciaram a entrevista/conversa com Renata, com Reynaldo lendo este belo poema:

Minhas velhas

As minhas velhas
Tinham lá os seus modos
De aldeias antigas:
Guardavam o dinheiro
Em lenços enrolados
Que depois enfiavam
No meio
Dos Seios

Era um dinheiro que cheirava a leite
A suor, a comida e privação

Um dinheiro sofrido e bom
Como o primeiro coito

As minhas velhas sabiam das coisas:
Fui eu que me esqueci.

(do livro “Chocolate amargo”, editora brasiliense 2008

Estava, assim, estabelecido o estado poético que foi pontuando o depoimento e as leituras de Renata que, do alto de suas vivências por Sampa (sempre), mas também Oropa, França e Bahia (e Cuba, país onde ministrou aulas de cinema), encantou a plateia, falando de sua diversificada e reconhecida obra literária que abrange ensaio, teatro, romance, poesia, sempre recheando sua fala com tiradas de bom humor e leveza.

Li este poema dela e para ela:

“No princípio criou Deus o céu e a terra.
                                                         Gênesis – 1:  1

Primeiro foi a noite. E a noite feita,
desta engendrou-se a luz, julgada oba.
Depois, fez-se o agudo desespero
do céu. E a terra. E as águas separadas.

E um mar se fez, da lúcida colheita
das águas inferiores. A coroa
tornou-se firmamento. “Haja luzeiros” –
ordenou-se às estrelas debulhadas.

Houve flores estáticas e flores
que procuravam flores; e houve a fome
de carne e amor e dessa fome as dores

e das dores o Homem. Deste, esquiva,
toda fome, sua fêmea, e no seu sexo,
mais uma vez a noite primitiva.
                                                         (6-9-1954)

in Livro de Sonetos, Massao Ohno, SP, 1961



Durou uma hora e meia e... ninguém percebeu. Perguntei-lhe como havia chegado à Casa das Rosas e ela: - "andando (minha casa fica a cerca de 500 metros daqui)". Detalhe: carregava uma maleta cheia de livros. E como voltará, a esta hora? - "Da mesma forma, caminhando" (dei um "toque" para uns amigos, no sentido de não deixá-la cumprir sua intenção, mas ainda não sei dizer se a cumpriu, senhora que é de suas vontades). 

sábado, 10 de junho de 2017

Camões, no seu dia - Um Sarau na Casa das Rosas

Um poeta sinônimo de sua própria língua, Luís Vaz de Camões.

Um país que celebra sua data nacional na data da morte de seu poeta maior e dedica essa mesma data às comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo, Portugal.

Neste dia 10 de Junho de 2017, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, feriado nacional em Portugal, 437 anos de sua morte, Camões vive e é celebrado aqui, ali, além e em todos os recantos onde chegaram os lusos navegadores e se mais mundo houvera, lá teriam chegado. 


  
Foi hoje, neste mesmo dia 10 de junho, que, cheia de alegria e honra, participei de um belo momento evocativo da data. O Sarau Camões, organizado pelo Mestre/Poeta Carlos Felipe Moisés, integrou o Festival Camões na Casa das Rosas, decorrido durante todo o dia deste lindo sábado de final de Outono.




Fui uma das convidadas que deram voz à poesia de Camões e, de lambuja, ainda li poemas meus que, de alguma forma, dialogam com a poética camoniana. Um momento honroso e afetivo, estar naquela mesa, ao lado de velhos amigos como Carlos Felipe Moisés, Renata Pallottini e  Álvaro Alves de Faria, bem como ouvir vozes dos outros poetas convidados e igualmente amigos, como Flora Figueiredo e Ruy Proença, Victor Del Franco, além de ter a oportunidade de ouvir pela primeira vez os jovens poetas Leila Guenther, e Paulo Ortiz. Gerações diversas a celebrar a poesia de Camões na bela língua de Camões.














Teve até Jorge Luis Borges, evocando Camões, lido no original pela querida Renata que também surpreendeu o público, de improviso e fora do roteiro, cantando, de maneira deliciosamente bem humorada, uma antiga marchinha de Carnaval, paródia dos versos de Camões "As armas e os barões assinalados / vieram assistir ao carnaval./ cantando espalharei por toda a parte que o porta-estandarte vai ser seu Cabral". 


Dentre os textos de Camões que li, seleciono este Soneto 

Busque Amor novas artes, novo engenho,
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê;

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como, e dói não sei porquê.

e este poema meu, também lido na ocasião (a sua benção Camões!).

educação pela palavra

                Estremeço. No coração. As letras vêm de lá
                 e da mão.
                                           Luiza Neto Jorge
    

de sua voz, pouco recordo
metida em seu pijama amarrotado
manhã adentro, olhos fincados
no jornal do dia
(os dias e os seus acontecimentos eram
o que pelo jornal lhe chegava)

à tarde, a bisavó letrada
(sempre dispensando os óculos
lia camões e folhetins franceses
em brochuras de papel ordinário
chegados de vapor
quinzenalmente)
tomava chá inglês

toda aquela devoção
à palavra impressa
(intuía a menina)
algum mistério continha
e passou a imitá-la

em segunda mão, os folhetins
e o camões indecifrável
lhe diziam que seriam entranhados
um dia, um dia...

       dalila teles veras in solidões da memória, Dobra Editorial/Alpharrabio Edições, SP, 2015

As fotos são de Luzia Maninha, a quem muito agradeço