domingo, 27 de abril de 2025

Mulheres escritoras brasileiras – homenagem (de março, abril, do ano inteiro) 19 – Rozzi Brasil e Lilia Guerra – O eixo Rio-São Paulo ligado pela periferia e sua potente literatura

 

Mulheres escritoras brasileiras – homenagem (de março, abril, do ano inteiro)

 19 – Rozzi Brasil e Lilia Guerra – O eixo Rio-São Paulo ligado pela periferia e sua potente literatura


 Rozzi Brasil

Conheci Rozzi em outubro de 2023, durante o Encontro Nacional do Mulherio das Letras, realizado no Rio de Janeiro. Já a conhecia das redes sociais, mas foi nas rodas de conversa e nos debates que sua voz me chamou atenção, pela forma clara e segura com se expressava ao expor seus posicionamentos e ideias. Compareci à sessão de autógrafos do seu livro de estreia, “Histórias da Cabrochinha” (Editora Voz de Mulher, 2022) e naquela mesma noite li alguns dos contos. Seriam mesmo contos? Li-os com a sensação de estar diante de uma espécie de escrita de si, fluxo da consciência, diário com uma pegada muito forte sobre questões sociológicas, vivências narradas por um outsider, alguém que está dentro de um corpo, mas o enxerga de fora e, estando dentro, enxerga e amplia o seu entorno. Transfigurados pela literatura, essas curtas e ágeis prosas, por vezes (muitas vezes) cruéis, algumas são recebidas pelo leitor como um soco cruzado na beira do estômago.

Extraio um parágrafo do comentário de Heloísa Buarque de Hollanda, a Helô Teixeira, na quarta capa do livro: “Infelizmente, esta História da Cabrochinha, tal como escrita, com talento, por Rozzi Brasil, é o retrato fiel de uma infinidade de mulheres que sobrevivem nesta primeira metade do século XXI, Brasil.”

O livro também traz um prefácio de Lilia Guerra que aponta que “despida de moldes convencionais, vestindo sempre um estilo solto, confortável, a autora transmite ao exto essa liberdade sem rótulos”.

O fato é que passei a prestar mais atenção nessa escritora e suas questões de cunho literário, de gênero e socioculturais, mas não só.

No ano seguinte, 2024, em Belém, PA, onde o Encontro do Mulherio foi realizado, voltei a encontrar a Rozzi e me foi possível estreitar um pouco mais os laços literários, camaradas e de afeto. Naquela ocasião, mais um livro de sua autoria foi apresentado, desta feita, de poemas. “Carne Viva”, inserido na Coleção V do Mulherio das Letras (Venas Abiertas, Editora Popular, sob a batuta corajosa de Karine Bassi.

Outra surpresa, alguém que diz no poema “eu não tenho amigos, só tenho as letras” (será, não foi isso que percebi no seu jeito de olhar e de dizer) e continua o poema “Conheço, no Rio de Janeiro, / alguns lugares chamados / “Faixa de Gaza”, lá se morre, se escola, / onde almas viram pedras / corpos, espantalhos / corvos a vender / ninguém pra socorrer / De um lado e de outro, Há humanidade explodida / Dignidade vencida. // Por mim nunca mais saía de casa, / nunca mais abria a porta, / nunca mais descerrava os olhos. / Mas tem a civilidade / desse mundo pré-histórico / Se não saio, não como. / Se fico, não vivo.

As informações (minibio) sobre Rozzi tiradas dos seus livros são estas: “Pessoa preta do Axé e LGBT. Cria de Zona Oeste do Rio de Janeiro. Escritora, sambista e pesquisadora do samba carioca, professora ativista antirracista, realizadora audiovisual, fotógrafa, designer, compositora da Portela, podcaster e apresentadora. Mestre Quebradeira da Universidade das Quebradas, UFRJ. Cofundadora do MUQ-Movimento Mulheres nas Quebradas do PACC/UFRJ, grupo feminista voltado para produção literária de mulheres da periferia através do projeto #LivresLivros do qual é idealizadora. Autora do livro Histórias da Cabrochinha (Voz de Mulher, 2023) sobre vivências e violências de uma mulher negra periférica no Rio de Janeiro; Por Dias Melhores (ebook). Integrante de 6 antologias entre 2020 e 2022. Idealizadora e correalizadora do movimento Vem pra Cá! Sarau, que tem foco no protagonismo literário das mulheres periféricas”. Trabalhos de Rozzi podem ser encontrados nas redes sociais e blogs 

 

Lilia Guerra, nascida em São Paulo, autora de contos e romances que já circulam entre um público mais alargado através da publicação de uma grande editora, como é o caso da Todavia, que publicou o romance “O céu para os bastardos”, como também o livro de contos “Perifobia”, neologismo criado pela autora referindo-se ao fato de que a periferia pode causar (ou causa) repulsa.

Assim como Rozzi, Lilian passa para seus livros a realidade que tão bem conhece, a do mundo das “quebradas” paulistanas, o mundo em que ela e sua família viveram e o faz com delicadeza espantosa e inteligente bom humor.  

“Amor Avenida”, seu primeiro livro, foi publicado em 2014 de forma independente e com pequena tiragem. Em 2022, após a autora realizar rigorosa revisão e “enxugamento”, o livro é reeditado pela Editora Patuá, com recursos do PROAC.

Em 2023, na livraria e Espaço Cultural Alpharrabio, em Santo André, tive oportunidade de ver e ouvir Lilian a falar de seus livros, em especial daquele que ali era apresentado e autografado, “O céu para os bastardos”. Dona de uma simpatia elegante, sublinhou que trabalha como auxiliar de enfermagem na Capital paulista. Isso causou-me uma certa inquietação, ou seja, como é que alguém que exerce com tanto afinco e destreza o ofício da escrita não pode tê-la como ofício principal? É jovem e certamente ainda colherá os frutos desse ofício que, hoje, ainda não lhe dá o sustento material. 

Quando a conheci, pensei logo na Rozzi e nas pontes que se erguem através de sua literatura e das vozes que lhes dizem “Escrevam isso. É importante”.  E elas escrevem, registram, do seu lugar de mulheres, tudo aquilo que foi negado a muitas mulheres ao longo do tempo. Dizem e fazem disso literatura justamente pela forma como o dizem.

Leiam Rozzi Brasil, leiam Lilian Guerra, leiam a literatura feitas por mulheres que destravaram completamente os aros que as mantinham na penumbra em condições de afazia. Agora contam e contam bem, literatura que deveria ser leitura obrigatória na reeducação de machistas renitentes.

dtv


quinta-feira, 24 de abril de 2025

Da Poesia e das Mulheres de Abril

 Ano passado, fui convidada por Violante Saramago Matos, organizadora do livro 50 anos 50 vozes 50 mulheres a colaborar com esse magnífico projeto literário que então celebrava os 50 anos da Chamada Revolução dos Cravos em Portugal, minha terra natal. 

Nos 51 anos da linda Revolução, deixo aqui o meu testemunho de como vivi esse momento, mesmo à distância. 

 

Da Poesia e das Mulheres de Abril


 



 

Os cravos de Abril, com seu belo simbolismo, cravaram em mim a certeza da necessidade de manter a utopia e a liberdade. Tinha então vinte e oito anos e, sobre minha mesa de trabalho, lia-se, num pequeno cartaz: “seja realista, exija o impossível”, frase grafitada nos muros da Sorbonne em 1968, durante as ocupações estudantis.

Antes, bem antes de 68 e 74, a dura lição na quebra do meu analfabetismo político, veio em 1964, num outro abril ao avesso, quando, por um Golpe, era instaurada a brutal Ditadura Militar no Brasil que duraria 21 anos. 

Em 1974, vivíamos no Brasil o auge da popularidade do regime totalitário, aplaudida pelos “inocentes úteis” que acreditavam no enfático discurso do desenvolvimentismo e de um suposto “milagre econômico”.

Entretanto, no lado consciente, grassava o medo e as incertezas dos que sabiam e sentiam no próprio corpo o valor a ser pago pelas próprias utopias. Essas poderosas garras peçonhentas, entre outras trágicas medidas, suprimiram toda e qualquer liberdade de expressão.

Assim, jornais sob censura, o 25 de Abril chegou por aqui de forma quase clandestina, em pedaços e aos solavancos. Não interessava ao regime militar e suas diretrizes de guerra suja, silenciosa e assassina, divulgar a conquista portuguesa na derrubada do igualmente autoritarismo fascista.  

graduada na matéria através da própria vivência, aprofundei meu aprendizado político com os relatos de amigos mais bem in(formados), bem como nos livros proibidos à época. Daí minha curiosidade e interesse crescente sobre a situação em Portugal, país de minha naturalidade, então renascido.

Aflita pela falta de notícias, lá fui eu atravessar o Atlântico, ao lado de Valdecirio, meu mestre em política, com quem havia casado em 1972.

            Em 1º de julho de 1974 desembarcávamos em Lisboa. Íamos, eu e ele, conferir e, se possível, partilhar da euforia vigente naquele novo Portugal que, decorridos dois meses, ainda festejava a Revolução.

Aqui e ali, símbolos de Abril, a lembrar:

um soldado no aeroporto com um cravo vermelho em sua arma, tal qual no famoso pôster com a foto de um menino de cabelos anelados a colocar um cravo no fuzil do soldado, adquirido dias depois na Baixa Pombalina;

já no táxi, “Grândola, Vila Morena" a servir de trilha sonora, o motorista: - “Depois de 50 anos, desatamos a língua, ninguém mais nos proíbe nada. Somos livres!”. No dia de retorno ao Brasil, esse mesmo taxista nos levaria a sua casa (para não esperarmos tanto tempo no aeroporto, justificava ele) a comer tremoços e figos, com vinho da propriedade de sua família do Norte.

Lembro-me de ter rascunhado um poema, meio desengonçado pela emoção, que evocava Camões e terminava dizendo algo assim:

“apenas o sangue a rugir

                rubro lembrete

mais do que nunca hoje é dia

de sentir-se português”.

Faltou-me a total vivência dos acontecimentos. Ficou-me a convicção do caminho da luta e manutenção da utopia pela vida afora.

Aprendi sobre o 25 de Abril após o 25 de abril e ainda aprendo. Lendo aqui, escutando ali.

Todavia, sempre me perguntava sobre qual teria sido o papel das mulheres naquele processo. A única figura feminina destacada pelas eventuais matérias na imprensa (ao menos nas que chegaram ao meu conhecimento) era a de Celeste Martins Caeiro que, por um bom tempo, era apontada como “a mulher que ofertou cravos aos soldados”, criadora involuntária (?) do famoso símbolo, mas sequer possuía nome. A multidão que se formara nas ruas de Lisboa, seguiu-lhe o gesto. A multiplicação instantânea do acontecimento, em tempos virtuais, seria chamado de “viralização”.

Na poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen, destacada escritora, conhecida também como figura política com participação ativa no processo de redemocratização, foi talvez a voz daquele instante revolucionário, a voz poderosa da palavra de uma mulher. São dela os quatro versos famosos e definitivos sobre (“25 DE ABRIL / Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Outros tantos e belos poemas sobre o assunto, escritos em 1974 e 1975, foram reunidos em seu livro O Nome das Coisas, 1977, mas por aqui chegado muito depois. Eram tempos separados pelo grande mar que ela tanto cantou. 

Maria Teresa Horta que, dois anos antes, havia sido processada e condenada pelo conteúdo de seu livro Minha Senhora de Mim, foi outra grande voz que seguiu publicando e, através da militância feminista permanente, muito provocou com suas ardentes palavras. Além do seu explícito As Mulheres de abril, publicado em 1976, recentemente surpreendeu seus leitores nas redes sociais. Ao lembrar a data da Revolução dos Cravos, divulgou um poema inédito datado de 27 de abril de 1974 (“25 DE ABRIL / Dantes / era um silêncio imenso / de grito amordaçado / Hoje / há uma festa à nossa beira / fazendo a liberdade /florescer em cravo // Mudando o sonho / em vida / e canto alado”.

            Mesmo com algumas conquistas, as mulheres seguiram invisibilizadas, lá, aqui e em todo lado, até mesmo aquelas que ao lado dos capitães caminhavam, como nos revela a escritora e cineasta Ana Sofia Fonseca, em seu livro “Capitãs de Abril”, publicado em 2014, 40 anos depois. Nessa obra, a escritora dá voz às mulheres e sua respectiva visão revolucionária. Sim, as mulheres estavam lá e foram elas que, posteriormente, muito contaram, como o fez Ana Sofia. Ainda que lentamente, os véus da invisibilidade feminina vão sendo retirados.

            Encerro meu depoimento, voltando àquela Lisboa de 1974. Para nós, que nos preparávamos para retornar à desesperançada realidade brasileira, que ainda duraria mais uma década, compartilhar daquela alegria esperançada representou um momento único e inesquecível.

 

Dalila Teles Veras


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Mulheres escritoras brasileiras – homenagem (de março, abril, do ano inteiro) 18 – Nic Cardeal e Henriette Effenberger

 


Mulheres escritoras brasileiras – homenagem (de março, abril, do ano inteiro)

18 – Nic Cardeal e Henriette Effenberger

 Minha intenção em homenagear mulheres escritoras durante todo o mês de março, não foi inteiramente cumprida. Esta é a 18ª postagem e já estamos em abril. Ainda assim, decidi prosseguir, pois não quero que os livros que retirei das prateleiras voltem para lá, sem que suas autoras sejam, ao menos, citadas aqui.

Estive a pensar nas mulheres que o Movimento Feminista Mulherio da Letras me apresentou, durante os oito anos de sua existência.

Nesta série que inaugurei no início de março, foram homenageadas algumas escritoras ligadas a esse Movimento ainda que, algumas delas, já as tenha conhecido (e lido) bem antes, como é o caso da Maria Valéria Rezende e Rosângela Vieira Rocha. Giovana Damaceno, tema de um dos últimos posts, foi um presente que recebi do Mulherio, do qual é atuante membro, desde seu início, assim como outras que ainda ocuparão este espaço.

Isto posto, dou início à segunda parte da série, um capítulo para comentar, mesmo que na forma breve, a obra dessas escritoras atuantes no coletivo Movimento Mulherio das Letras e que, sem ele, muito provavelmente, não as teria conhecido e nem à sua literatura. O Brasil é um mundo e para conhecer um mundo e as 7,6 mil mulheres que aderiram ao Mulherio, através da página do Facebook, seria preciso uma nova vida.

Assim como procedi até o momento, só falarei de obras lidas por mim e que habitam as estantes da minha bibliocasa.

Nesta 18ª postagem, destaco duas escritoras que chegaram até mim, através do Mulherio das Letras, Nic Cardeal e Henriette Effenberger. Além das qualidades literárias de seus livros, ambas possuem espírito agregador e solidário com seus pares, características que deveriam nortear, acredito eu, todas as integrantes do Mulherio e fora dele.

NIC CARDEAL

Eunice Maria Cardeal ou Nic Cardeal que é como que assina seus livros, nasceu em Santa Catarina e atualmente vive em Curitiba. Publicou, o livro “sede de céu”, de poemas, 2019, “Costurando ventanias – uns contos e outras crônicas”, 2021, ambos pela Editora Penalux, SP. Sua obra, entretanto, está espalhada em algumas dezenas de antologias e coletâneas, revistas e blogs, como a revista eletrônicas SerMulherArte onde publica resenhas e entrevistas de/com mulheres de todo o Brasil e, eventualmente, do exterior.

Lírica incurável e inventora de sedutoras metáforas, Nic emprega tamanha suavidade a tudo que escreve que, leitora, fico a imaginar que só pode escrever assim, quem leva a vida ou encara a vida da mesma maneira. Não, a poeta não se limita a falar apenas de “levezas”, não é dessa matéria que é construída sua obra (quer na poesia ou na prosa, que, diga-se, é poesia também), é do seu caráter humano ou daquilo que deveria ser composto esse caráter humano. O mérito de sua poesia é também da forma como diz, não apenas do que diz.

Seus poemas são longos, na sua grande maioria, o que não lhes tira o mérito. Entretanto, deixo aqui uma amostragem dos poemas curtos, que muito me agradam e que é onde, no meu modo de ver, a poeta revela um extraordinário poder de concisão, dizendo muito com o pouco dizer.

O grito

Tenho silêncios

incrustados na garganta:

eu grito

por escrito.

Saudade

A presença dorme na distância.

E sonha.

Silêncios

Sou emudecida

no gesto equilibrista

quase malabarista

de palavras nunca ditas.

 

HENRIETTE EFFENBERGER

Nasceu e reside em Bragança Paulista, SP. É romancista, contista, memorialista, poeta e escreve também literatura para a infância, tendo publicado livros em todos esses gêneros, desde 2002.

Na minha estante de literatura brasileira feita por mulheres, constam os livros de Henriette: Linhas Tortas, 2008 (contos premiados em concursos literários), com apresentação de Inácio de Loyola Brandão); Fissuras, contos, 2018, Editora Penalux, SP, com prefácio de Rosângela Vieira Rocha (escritora já homenageada nesta série) e Quase Nada de Azul sobre os Olhos, romance Telecazu Edições, 2021.

Dona de uma prosa fluente, narradora habilidosa e íntima conhecedora da língua, Henriette conduz o leitor sempre à surpresa final de seus contos, verdadeiras joias do gênero.

Tenho por hábito, sublinhar e escrever à margem do que li, algumas impressões. Vejo que em Fissuras, há alguns comentários, como no conto “Arre, Capeta”, escrevi a lápis a observação: “muito bom!”, assim como em “Redenção” outro conto que classifiquei de “bom!”, em “Horas cinzentas” grifei a frase “A velhice, aos poucos, vai incorporando a morte. Amarela os papéis, mais do que a nicotina mancha os dentes e os dedos nodosos (...)”. Na margem, escrevi, também muito de leve e a lápis, “maravilhoso!”. No conto “Navegar é preciso”, anotei ao final: “um poema!”. Reli-o agora, em voz alta, e confirmo a primeira impressão: um poema!

Leiam Nic Cardeal, leiam Henriette Effenberger, leiam as escritoras brasileiras vivas, divulguem e orgulhem-se delas, bem como do fato de vivermos num mesmo tempo, sermos contemporâneas umas das outras, cúmplices na palavra.

dtv

 


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem 17 – Maria do Carmo Ferreira – Carminha



Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem


17 – Maria do Carmo Ferreira – Carminha

Eram anos da despedida do Século XX, comunicação virtual ainda precária (a dos emails era novidade), não me lembro como nem exatamente a data de seu início, comecei a receber deliciosas mensagens de alguém que assinava simplesmente “carminha” (assim, com letra minúscula) que, mais velha do que eu e para meu espanto, lidava muito bem com o então ainda acanhado meio virtual, em especial, com imagens.
Foram inúmeros emails de Santo André para Niterói e de Niterói para Santo André, sempre lidos, de minha parte, com muito gosto, pela presença de espírito, bom-humor e referencial literário e cultural invejáveis da minha missivista virtual de quem não ouvira falar até então. Abastecida com alguns poemas meus, ela os transformava quase sempre em um poema visual, em montagem bela e criativa.
Passou-se um bom tempo, até que, já no comecinho deste nosso Século, março de 2000, para ser mais exata, o SLMG – Suplemento Literário de Minas Gerais nº 57, dedica a Maria do Carmo Ferreira, Carminha, um enorme dossiê, com uma bela e expressiva foto da autora. Para mim, ali se “materializava” a poeta, mas aí já era tarde, Carminha, a tão estimada interlocutora virtual, havia desaparecido do meu campo de visão já há algum tempo. Cessaram os emails e, por mais que me esforçasse, não mais a localizei. Guardei o Suplemento com o belo dossiê, única prova palpável, material, de que aquela mulher existia, tinha nome, sobrenome e fazia poemas de altíssima voltagem!
Com as mudanças sucessivas de computador e provedores, não fiquei com nenhum arquivo dessas missivas virtuais. Reavivada a memória, gastei largas horas vasculhando meus arquivos físicos a ver se tirei “print” de alguma desses emails valiosas que eram e... Nada, nadinha!
Eis que recebo a notícia, pela querida Silvana Guimarães, de que a reunião de toda a obra de Carminha, completamente inédita em livro, estava sendo organizada por ela e por Fabrício Marques, sim, aquele jovem que a entrevistara para o dossiê do SLMG. A comunicação vinha com uma nota alvissareira: “há um poema dedicado a você, Dalila!”. Foi grande a felicidade, muito grande, especialmente por saber que a poeta encontra-se vivíssima e acompanhou todo o processo da publicação da sua obra.
Dias destes, chega-me aqui, essa obra monumental, “Maria do Carmo Ferreira – Poesia reunida -1966-2003”, lindamente editada pelo competente Miguel Jubé, o fazedor de preciosidades gráficas pela Editora Martelo, Goiânia, GO. Essa joia preciosa vem numa caixa com três volumes, intitulados, “Cave Carmen” (1); “Coram populo” (2) e “Quantum satis” (3). Não fosse a surpresa já grande, ainda veio acompanhada de uma dedicatória assinada pela autora e pelos organizadores. Desde então, não mais a larguei.
Nada mais justo do que incluir a imensa Maria do Carmo nesta série de homenagens a escritoras brasileiras, vivas, como a 17ª homenageada.
Faço público meu melhor agradecimento aos poetas organizadores, Adelaide Do Julinho Silvana Guimarães e Fabrício Marques Marques, bem como ao editor, Miguel Jubé, a quem também parabenizo.
Leiam Maria do Carmo Ferreira, urgentemente! Leiam as mulheres escritoras!
Por fim, se me permitem a autorreferência, transcrevo o poema “Ressurreição da Palavra – para Dalila Teles Veras”, não apenas porque a mim é dedicado, mas porque é belo.

A palavra feito pão.
Não a palavra part/ida
na contraluz do seu não.

Mas a palavra partilha.
Não à part´ilha: a palavra
arquipélago, oásis,

cartilha de mão em mão.
A palavra enquanto quase,
projeto de vir a ser.

Mas sempre com´pro´metida
na uto´pia que re´faz
um Thomas Morus morrer.

Escrever, Santo Agostinho,
(sua!) Cidade de Deus.
A palavra ora-pro-nóbis

que configure uma terra
sem males, sem o ego´cêntrico
da prepotência encerrada

em si, dentro da palavra.
Mas a Palavra de´Vida
que açambarque a humanidade

dos Sete Povos d´antanho
no amanho de tudo e todos.
A palavra inaugural

Como a palavra Batismo
no nosso Jordão de hoje.
Como o Ser´mão da Palavra

Pelas bem-aventuranças.
Seja a Palavra, eficaz
na nossa finita espera,
mas infinita esperança.

A palavra feita sangue.
A palavra feita pão.
A palavra feita paz

na hemo´filia pisada:
quarup... ágape... agora
que tanto fez quanto jaz.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem 16 - Giovana Damaceno


Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem

16 - Giovana Damaceno

Fiz as contas e em 30 dias não darei conta de homenagear as mulheres escritoras do meu acervo (as vivas). Assim, a partir de amanhã, farei “bloquinhos” a ver se dou conta do meu propósito. O primeiro desses bloquinhos falará de escritoras que vim a conhecer através do Movimento Mulherio das Letras, do qual participo desde seu início e participei de quase todos os encontros nacionais realizados em vários estados brasileiros. Só não participei do primeiro, em 1917. A partir daí é um não mais acabar de mulheres talentosas, criativas, feministas que muito contribuíram para o alargamento da minha visão sobre a produção literária de mulheres de todo o Brasil.

Falarei aqui do trabalho de uma delas que, desde os primórdios do Mulherio, acompanho com muito interesse.

Giovana é jornalista, de Volta Redonda, RJ, autora dos livros Mania de Escrever, 2010, Depois da chuva, o recomeço (2012), Do lado esquerdo do peito (Penalux 2013), Alguém pra segurar na minha mão (Penalux 2020), Justa causa (Penalux, 2022). Vou me deter apenas nestes três mais recentes, pois são justamente os que li e mantenho no acervo da minha bibliocasa.

Os três livros abordam temas muito delicados que só alguém de muito talento, tato e sensibilidade como Giovana pode desenvolver sem resvalar para o terreno da piedade, comiseração ou pieguismo.

Do lado esquerdo do peito é autobiográfico e fala da sua luta contra um câncer de mama. O tratamento, como nos demais é literário, na primeira pessoa e, espantosamente, com momentos de inacreditáveis tiradas de bom-humor em meio à dor, dúvidas, incertezas, esperança e, sim, fé. Algumas fotos das diversas fases do tratamento também fazem parte do livro que é dividido em capítulos curtos, precisos, como se fossem crônicas, alguns lembram a estrutura de um conto. O fato é que é muito bem escrito sem os cacoetes dos livros “de superação” ou “auto-ajuda”.

Alguém pra segurar a minha mão trata de um tema quase tabu no Brasil, para o qual os dicionários elencam dezenas de sinônimos criados pelo povo para fugir da “brutalidade” da palavra “morte”. Pois é justamente neste livro que Giovana inaugura o livro-reportagem, através da assistência médica em cuidados paliativos a pacientes terminais, feita em domicílio. A narrativa é tratada com delicadeza pela autora que teve todo um trabalho de campo e, com muita habilidade, resultou num trabalho literário, pois é assim que o lemos.

Justa causa é ou poderia ser um livro-reportagem no qual a repórter acompanha a vida num asilo e mergulha no universo daqueles que ali vivem. Tive a honra de escrever o breve texto da orelha e observei que “Giovana se impõe mais um desafio: auscultar as tragédias de corpos velhos e frágeis, portadores de histórias inconfessáveis. Uma jovem estagiária trabalha numa “casa de repouso”, onde ouve casos com “enredos tristes, curiosos, dramáticos, horripilantes”, e aqui eu acrescentaria outros, como hediondos, apavorantes e espantosos! Dores guardadas em segredo que, finalmente, explodem na boca dos parentes dos “velhinhos fofos imundos”, ali deixados por eles em circunstâncias insuspeitadas, como a da filha que diz do pai “quero vê-lo morto, mas não vou matá-lo”.

Giovana sabe como conduzir a leitura pela palavra certa e isso tem nome: Literatura – não importa o “gênero” ou “rótulo” que, eventualmente, estas narrativas venham a receber. Leia e desfrute do que até pouco tempo era raro de se ler: o lado mais obscuro do ser humano, narrado por uma mulher que também se dá ao direito de escrever sobre qualquer tema, sob ótica exclusiva e comando da própria linguagem.”

O estadunidense Truman Capote, como se sabe, nos já distantes anos 60 do Século passado, exercia o jornalismo investigativo e costumava fazer do material colhido para uma reportagem do jornal para o qual trabalhava, o que se chamou à época de “new journalism”, ou seja, texto jornalístico que, para além das técnicas de comunicação, recebe um tratamento de uma linguagem que extrapola o narrar os fatos e inaugura um gênero literário. Uma dessas reportagens, resultou no que viria a ser um estrondoso bestseller, A Sangue Frio, o seu livro mais conhecido que até os dias de hoje não saiu de catálogo de editoras ao redor do mundo, justamente, nasceu daquilo que seria mera reportagem.

Bora prestar mais atenção nessa moça. Leiam Giovana Damaceno, leiam a literatura produzida por mulheres daqui e d´além-mares e continentes. dtv  

 




terça-feira, 18 de março de 2025

Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem 15 – Sandra Godinho

 



Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem

 15 – Sandra Godinho


Sandra Godinho nasceu em São Paulo e está radicada em Manaus, AM, desde 2003. Essa cidade lhe deu “régua e compasso” para a construção da hábil ficcionista que viria depois, através de livros de contos e romances premiados em concursos de prestígio nacional.

A publicação de seu primeiro romance, O Poder da fé, data de 2016. Os romances “Tocaia do Norte”, Ed. Penalux, 2020 (Prêmio de melhor romance Categoria Nacional Prêmio Literário Cidade de Manaus 2020 e finalista do Prêmio São Paulo Literatura 2021) e “A Secura dos Ossos”, Ed. Patuá,2023, finalista Prêmio Leya 2022 que a projetaram e justamente aqueles que integram o acervo da minha bibliocasa. 

Conheci a mulher/escritora Sandra Godinho antes de ler a escritora Sandra Godinho, justamente numa “conversa de livraria” na Alpharrabio Livraria e espaço cultural, em Santo André, quando foi convidada a discorrer sobre o seu então recém-lançado “A Secura dos Ossos”. Foi aí o portal de acesso à sua literatura.

Selecionei alguns trechos de prefácios de seus livros para apresentá-la nesta nossa série em homenagem a escritoras brasileiras, pela simples razão de não saber dizer melhor.

“Em Tocaia do Norte, seu projeto mais ambicioso, Sandra conduz uma narrativa auspiciosa e corajosa ao desbravar um ambiente quase desconhecido entre os brasileiros: a ação dos militares nos rincões da floresta amazônica durante o período ditatorial e a movimentação de peças e recursos para esconder seus crimes. (...) Os fatos narrados em Tocaia do Norte precisam sobreviver ao tempo e ao culto à ignorância que norteia a sociedade brasileira contemporânea, alimentada pela imbecilidade de quem nega a luta dos povos indígenas (...) Tocaia do Norte deve ser vista como uma obra literária, com inestimável valor, sem dúvidas, mas também como um registro histórico, necessários e contundente, sobretudo neste momento em que cortinas se fecham e aprisionam sonhos e produções artísticas, onde a intelectualidade é mais combatida que a fome em um país que nem de longe lembra o Brasil que gostaríamos de ter.” (estávamos nos tristes anos de 2020/2021, nota de dtv). Marcelo Adifa, jornalista.

“A Secura dos Ossos” narra, de forma literária mas também pela ótica da historiografia, a história do Massacre de Haximu e a saga trágica, mas também a beleza da cultura do povo Yanomami.

No prefácio desse belo romance, nos diz o prof. Mikael de Souza Frota (Unip, Manaus): “A Secura dos Ossos”, sétimo romance de Sandra Godinho, ficcionaliza o Massacre de Haximu, ocorrido em 1993, na região montanhosa de fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Aqui, o leitor é apresentado à narradora-protagonista Tainá
Terra, cuja vida pacata na vila fictícia de Encanto das Almas, a conduz na busca pela mãe desaparecida, Amana Terra. (...) Contudo, o que parece ser um enredo de investigação e de mistério, acaba enveredando para uma problemática que alcança uma das bases sensíveis dos pilares fundadores da história brasileira,: a violência contra a natureza e os povos indígenas” (...). Ainda, no dizer do prof. Mikael, “A desterritorialização e a sensação de desterro de um indivíduo/povo que é retirado, expulso e/ou escondido do seu lugar para ocupar um não-lugar são temáticas bastantes exploradas por Sandra Godinho em seus livros”.

Leiam Sandra Godinho e conheçam, através da literatura, a história recontada por outro viés e fique na dúvida sobre quem é realmente o “selvagem” nessas histórias.  

Leiam a literatura escrita por mulheres contemporâneas brasileiras e perceba dicções antes desconhecidas, antes ocultadas, antes nem sequer escritas. Dtv. 

 



Março - Mulheres escritoras brasileiras – homenagem

 

14 – Ana Elisa Ribeiro

 

Nesta 14ª postagem da série Março - Mulheres escritoras brasileiras, homenageio Ana Elisa Ribeiro, mineira de Belo Horizonte, nascida em 1975. Professora, premiada poeta, publicou Anzol de pescar infernos (SP, Patuá, 2013), Xadrez, Scriptum, 2015 BH), Álbum (Relicário, 2018, BH) e Dicionário de imprecisões, pela Leme, selo Impressões de Minas, 2020 (com duas edições anteriores). Editora de projetos em favor da leitura, como a coleção “Leve um Livro”, que distribuiu poesia contemporânea em Belo Horizonte por três anos, na forma de livros impressos gratuitos. Publicou livros sobre essa atividade (de editora) e frequentemente participa de mesas em Feiras e Festivais do livro.

Em seu estilo medido, enxuto e lapidado, Ana dá a seus poemas o tratamento da economia ou controle vigilante ao prosaico.

Um poema de seu “Álbum” um belo diálogo da palavra com a fotografia e, em vários poema, homenageia de forma explícita seu conterrâneo, Carlos Drummond de Andrade:

 

IMPRÓPRIO

 

penteamos os cabelos

de um jeito inusual

pintamos os lábios

as bochechas as pálpebras

de um jeito improvável

posamos para a foto

de um jeito incomum

e não éramos bem nós

 

mas todos sempre soubemos

explicar aquela foto

no álbum

como um flagrante

do artifício

 

Já o projeto poético do Dicionário de imprecisões, está moldado para a verossimilhança de um dicionário e o poema/verbete vem acrescentado de uma fina e bela ironia:

 

Amor

Substantivo masculino mas de todos os gêneros, singular

 

Acalmar os ânimos. Arrefecer.

Velocidade de cruzeiro.

Sujeito a derivações, desvirtuações, vícios e fim.

Ver paixão

 

Leiam Ana Elisa Ribeiro, busquem, leiam literatura feita por mulheres que, diga-se, depois do primeiro grito, jamais se calaram nem calarão, fazendo literatura do seu jeito que é muitos jeitos. dtv