segunda-feira, 18 de março de 2024

EMILY DICKINSON E AS MULHERES NA MINHA BIBLIOTECA


 

            Tenho me empenhado em deixar minha biblioteca de autoria de mulheres arrumada. Agora com as duas novas estantes pude me dar ao luxo de juntar às brasileiras que já lá estavam, os volumes das portuguesas e de outras nacionalidades como as de língua espanhola, as russas, estadunidenses, francesas, inglesas etc.) que se encontravam em estantes altas e agora ficarão ao alcance das mãos. De certeza. deve haver bem mais que uma segunda inspeção descobrirá.

        O problema agora são os livros de poesia contemporânea (de autoria de homens) que são em número bem maior e as prateleiras já estão abarrotadas de volumes “enfiados” uns por cima de outros, em pilhas sobre banquinhos, enfim... Vamos ver como se resolve isso!

        Por enquanto estou muito satisfeita, inclusive pelas surpresas e descobertas ao revisitar os volumes, como, por exemplo, ao manusear os livros de cá pra lá, caiu-me nas mãos os volumes de obras avulsas de Emily Dickinson (adquiridas bem antes da poesia completa recente), dei com uns marcadores e sublinhados que fiz há tempos, assinalando as páginas de um mesmo poema, cujo verso inicial é “I died for beauty” de que gosto muito (um clássico dela, eu diria). São 6 volumes de antologias traduzidas para o português, assinadas por diferentes tradutores. Desses, apenas dois homens (Augusto de Campos e Adalberto Mûller), as outras quatro são assinadas por mulheres, Olívia Krähenbühl, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, com prefácios e notas exemplares.

        Copiei as seis versões e ofereço-as aos eventuais leitores interessados na Emily ou simplesmente na poesia e, questão sempre difícil e polêmica, na tradução.

        Ontem, domingo, perdi (ganhei) boa parte do dia relendo os prefácios e notas de tradução, tudo muito rico e já devidamente sublinhado por mim das leituras anteriores.

        Tenho lido, escrito, organizado arquivos de forma feroz nos últimos tempos. Uma angústia de que não terei tempo suficiente para tudo e, por isso, inventario. Tantas coisas surgem, saltam dos meus arquivos, como moedas nos boxes de cassino.

        A vida só literatura? Não, ainda, mas também não sei se ficaria satisfeita com apenas e tão somente a literatura a preencher minha vida, como periga preencher, nesta ânsia de preencher cada minuto com algo que me enriqueça, recuperar o que deveria ter prestado atenção antes e não o fiz (será? E os sublinhados das leituras?).

        Uma coisa é certa, leio melhor agora, pois há todo um acúmulo que uso como referencial e parâmetro.

        Aí vai o poema no seu original, em inglês e nas seis versões para nossa língua que permite tanta variação, sem trair a essência do original (será?!)

I died for Beauty – but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
In an adjoining Room –

He questioned softly “Why I failed”?
“For Beauty”, I replied –
“And I – for Truth – Themself are One –
We Bretheren, are”, He said –

And so, as Kinsmen, met a Night –
We talked between the Rooms –
Until the Moss had reached our lips –
And covered up – our names –

Nota: Optei pelo original do volume com acompanha a tradução de Augusto de Campos e que coincide exatamente com o de Adalberto Müller, em Poesia completa. Nos demais, não sei dizer a razão, há diferenças nesse original, sobretudo na pontuação. “Emily criou um idioma poético próprio e antecipatório em termos de densidade léxica, economia de expressão e liberdade sintática (...) os substantivos frequentemente maiusculizados para acentuar a sua dominância. (...) num idioleto de rara beleza”, justifica AC a respeito à pontuação original.

                                          0o0o0

 Morri pela Beleza; mas apenas
Na tumba me ajeitara,
Outro, na cova junto, foi deposto,
E que pela Verdade se finara.

De manso perguntou – Por que morreste?
- Pela Beleza, respondi-lhe então.
- E eu, pela Verdade. Ambas se valem.
Somos ambos irmãos.

Assim, paredes-meias, dialogamos
Quais parentes que a noite congregasse,
Até que o musgo nos cobrisse os lábios
E nossos nomes apagasse...

Poesias Escolhidas de Emily Dickinson”, tradução, seleção, apresentação e nota bibliográfica de Olívia Krähenbühl, ilustrações de Darcy Penteado, Edição Saraiva, SP, 1956.

                                         0o0o0

Morri pela Beleza, mas na tumba
Mal me tinha acomodado
Quando outro, que morreu pela Verdade,
Puseram na tumba ao lado.

Baixinho perguntou por que eu morrera.
Repliquei, “Pela Beleza” –
“E eu, pela Verdade” – ambas a mesma –
E nós, irmãos com certeza.

Como parentes que pernoitam juntos,
De um quarto a outro conversamos –
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E encobriu os nossos nomes.

Emily Dickinson – uma centena de poemas” Tradução, introdução e notas de Aíla de Oliveira Gomes, 1ª. reimpressão, bilingue, T. A. Queiroz, Editor, SP, 1985.

                                    0o0o0

Morri pela beleza e mal estava
Ao túmulo ajustado
Alguém veio habitar a sepultura ao lado.
(Defendera a verdade.)

Baixinho perguntou: “Por que morreste?”
“Pela beleza”, respondi.
“E eu pela verdade. São ambas uma só.
Somos irmãos”, me disse.

E assim como parentes que à noite se encontram
Entre os jazigos conversamos,
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E cobriu nossos nomes.

Emily Dickinson, poemas” tradução e notas de Idelma Ribeiro de Faria, 3ª. edição, bilingue, Ed. Hucitec, SP, 1991.

                                     0o0o0

Pela Beleza morri – mas,
Mal à Cova eu me ajustara,
Quando estenderam do meu lado
Um que morreu pela Verdade. –

“Por que fracassou?” murmurou-me,
“Pela Beleza”, respondi.
“Eu pela Verdade – é o mesmo,”
Ele falou, “Somos confrades” –

E assim, como velhos Colegas,
Entre Túmulos conversamos,
Até que o Musgo alcançou
Nossos lábios e nosso nomes.

Dickinson, Emily – 75 Poemas”, Tradução de Lucia Olinto, edição Bilíngue, Sette Letras, RJ, 1999.

                                              0o0o0

Morri pela Beleza – e assim que no Jazigo
Meu Corpo foi fechado,
Um outro Morto foi depositado
Num Túmulo contíguo –

“Por que morreu?” murmurou sua voz.
“Pela Beleza” – retruquei –
“Pois eu – pela Verdade – É o Mesmo. Nós
Somos Irmãos. É uma só lei” –

E assim Parentes pela Noite, sábios –
Conversamos a Sós –
Até que o Musgo encobriu nossos lábios –
E – nomes – logo após –

EMILY DICKINSON – NÃO SOU NINGUÉM – POEMAS”, tradução e introdução de Augusto de Campos, Editora UNICAMP, Campinas, SP 2008

                                                0o0o0

Morri pela Beleza – mas
Mal me ajustei à Cova
Quando a Outra, que morreu
Pela Verdade, noutra Alcova –

Quis saber “Qual foi meu erro?”
“Foi a Beleza,” respondi –
“O Meu – a Verdade – Ambas
Primas – como Nós – Entendi –

Assim cada qual em seu Quarto
Falava, sob os vaga-lumes –
E o Musgo alcançou nossos lábios –
E cobriu – Nossos nomes -

“Poesia completa Emily Dickinson”, Volume I: Os fascículos, Tradução, notas e posfácio de Adalberto Müller, Edição bilíngue Editora UNICAMP / Editora UnB - Universidade de Brasília, 2019.

                                      0o0o0

Dessas seis traduções, qual seria a melhor  Pergunta que já me fiz diversas vezes e jamais respondi. Gosto, em especial, daquelas que respeitam a estrutura do poema, sua sintaxe e pontuação (neste caso, imprescindível, mas, sabemos, aparece aí a velha cantilena, poesia é intraduzível? Só sei que muito me agrada estes exercícios.

Aceito e agradeço comentários. dtv

























quarta-feira, 9 de agosto de 2023

FLISA – Feira do Livro de Santo André - FUI CONVIDADA, MAS NÃO VOU


No último dia 03 de agosto, quinta-feira, com chamada de primeira página e grande destaque, o Diário do Grande ABC noticiava a realização da FLISA – Feira Literária de Santo André, nos dias 17 a 20 deste mês. O homenageado será o escritor Ariano Suassuna. Sua vida e obra norteará, segundo a matéria, todas as atividades. Esta foi a forma com que a população tomou conhecimento do evento e que dava como já “pronta” uma programação que incluía, entre outras coisas, “mesas de debates sobre literatura com autores locais serão montadas”.

    A matéria só não informou que a Prefeitura de Santo André, através de sua Secretaria de Educação, pagará o montante contratual de 3 milhões e 375 mil reais para uma empresa de montagem, quantia essa muito superior ao que gastam grande feiras internacionais como a FLIP.

    Na parte da tarde desse mesmo dia, produtores culturais questionavam nas redes sociais o fato de apenas a 14 dias da abertura, a Feira estava apenas com um esqueleto. Se não estou enganada, a primeira a levantar uma série de questionamentos foi a premiada escritora Vanessa Molnar, em um contundente texto publicado em sua tl do FB.

    Dirigia-se aos escritores. Sob o argumento de que, apesar de ser a “vida literária da nossa cidade histórica, diversa e riquíssima, nenhum escritor da região, de Santo André ou representante cultural de editores e produtores terem sido convidados. E passa a relacionar boa parte de pessoas e espaços culturais, “uma riqueza, que os burocratas ignoram e que não dá para citar aqui sem cometer nenhuma injustiça”. Referia-se também ao espantoso tempo recorde de um edital com esse valor tão alto, organizado por uma pessoa que não tem nenhuma relação com a região e “faz questão de não ter, já que nem a Secretaria de Cultura, que poderia buscar a construção conjunta com os artistas locais, sequer sabia do evento”.

    A repercussão foi larga e imediata, com opiniões indignadas que dão conta de que “alguns escritores” haviam sido convidados a participar, mas sem cachê. A indignação fez-se presente.

    Curiosamente, no dia seguinte ao da matéria de jornal e do artigo de Molnar, recebi um convite/sondagem “informal” do curador da Feira, Reynaldo Bessa, que sugeria que eu mesma “montasse uma mesa com 2 escritores e um mediador, um deles seria eu. A mesa daria conta da “atual cena literária no ABC”. Esse convite, que oferecia R$ 1.000,00 a cada escritor e R$ 600,00 ao mediador, me foi enviado amadoristicamente, através de um áudio de cinco minutos, no WhatsApp. Pedi que o mesmo fosse formalizado por escrito (via email) o que foi feito apenas na noite do último domingo, dia 06.08. (a 11 dias da realização da feira). O convite veio também para a livraria e editora Alpharrabio, que dirijo há 31 anos, cujo catálogo prioriza a literatura de autores natos ou residentes na região, oferecendo um estande, especialmente cedido. Fato curioso é o desse curador sugerir, transferindo seu papel, para que eu “organize” a mesa, "convidando mais dois escritores", demonstra que isso não estava nos planos, mas agora... Não respondi e esperei para dar uma resposta alinhada com a comunidade.

    Dada a enorme quantidade de pessoas que pautaram o assunto em suas postagens nas plataformas Instagram e Facebook, um grupo de mais de 50 pessoas passou a se reunir no espaço virtual e o que vem sendo apurado a respeito é da maior gravidade.

    Fazendo coro com a comunidade, o vereador Ricardo Alvarez, encaminhou na sessão desta terça-feira da Câmara Municipal um requerimento de informação à Prefeitura Municipal, listando praticamente todos os questionamentos até aqui levantados pela comunidade. O assunto também foi levado ao Fórum de Cultura em sua sessão de ontem, segunda-feira.

 

NOTA FINAL: é claro que todos nós gostaríamos de uma Feira ou Festival do livro na cidade, mas não dessa forma que suscita tantos questionamentos, até o momento sem resposta. Afinal, com uma população de 748 mil habitantes, a cidade nada fica a dever a algumas capitais do país, inclusive em pujança econômica. Sim, uma Feira limpa e transparente que contemple a enorme diversidade de culturas (sim, no plural).

    Aguardamos, assim uma resposta do senhor Prefeito Municipal, Paulo Serra, que seja clara e ofereça respostas satisfatórias.

Quanto a mim, respondo publicamente aquilo que meu silêncio já disse, NÃO aceito! Sei que não vou por aí. dtv 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Síndrome do coração partido - ou a poesia sempre topa comigo mesmo nas piores horas

 

Manhã de segunda. Desperto. Sol de inverno. Convite. A perspectiva do café da manhã sempre é de puro prazer, para mim, a refeição mais importante do dia. Não foi.

Súbito, aperto no peito, sensação de desmaio, vista turva e rosto pálido.

Sinais, em escala mais leve e breve, já percebidos em outras ocasiões, mas não levados em conta. Observadora tarimbada, percebo que, desta vez, preciso levar a sério. Chamei uma das três amorosas “cuidadoras” que tenho a sorte de ter a meu lado e, em cinco minutos, cá estava ela, a do meio, dizendo: vamos!  

Em quase oito décadas de vida, faltam apenas três anos para completá-las, as únicas vezes em que estive hospitalizada foi de pura alegria e celebração da vida, ou seja, na ocasião dos meus três partos, ou seja, o nascimento das minhas atuais “cuidadoras”, o último deles, há 44 anos. Sou, é claro, privilegiada.

Por mais horror que tenha a esses ambientes, nos últimos cinco anos passei por eles com bastante frequência, sempre como acompanhante, jamais como enferma. Antes, também por longos períodos, como acompanhante de minha mãe. A angústia é sempre muito grande e agora não é diferente.

Tenho me valido da poesia para transmutar esses sentimentos e observações em poemas que renderam dois pequenos volumes, vestígios, de 2003, e a plaquete, uma estação no purgatório, encartada no meu livro tempo em fúria, 2019, além de poemas e crônicas esparsas.

Para manter o hábito do registro, aqui vai este, o desta nova estação, a minha, agora no inferno, como interna numa UTI – Unidade de Terapia Intensiva.

Tão logo a informação chegou às distraídas atendentes na recepção do Hospital, foi como se um alarme invisível tivesse soado provocando o corre-corre com a idosa e sua dor no peito. Vem o empurrador da cadeira de rodas, a enfermeira perguntadora, com o seu implacável questionário. Enquanto respondo, outra enfermeira auxiliar vai colocando os eletrodos, uns 8 no peito, outros nos tornozelos, e vão me levando para a maca no setor de observação (não, não é de pássaros, é de gente).

Enquanto sou transportada, lembro que há exatos 21 anos (num 2 de junho), minha mãe, com a mesma idade que tenho hoje, falecia neste mesmo hospital. Teria chegado a minha vez? perguntei-me.

Desnudada das vestes que havia colocado às pressas, mas que, como invólucro e inserção na minha "tribo", me emprestavam uma certa dignidade, passo a ser apenas um corpo à mercê de mãos, agulhas e máquinas.  Um delas, mede o circuito elétrico do coração, enquanto uma apressada enfermeira erra a veia onde seria colocado o acesso para introdução de soro e medicamentos. Fica lá o hematoma e vamos em frente. Nova furada. Vamos ao soro e aos anticoagulantes.

Expressão preocupada, lá vem a jovem, bonita e simpática cardiologista de plantão e, com doçura na voz, me diz que, diante do resultado do eletrocardiograma, será necessária uma pesquisa mais acurada, ou seja, novos exames, para saber a razão do "curto-circuito". Nada mais preciso, neste caso, do que um cateterismo. É o que precisamos fazer. Diante do meu olhar apavorado, ela pousa suavemente sua mão sobre meu ombro e diz que tenho sorte. No plantão está o melhor médico do hospital para esse procedimento. Ensina-me a respirar corretamente.

E lá vai a maca ligeira para uma sala de aspecto, para mim, futurista, com enormes máquinas e luzinhas piscantes. Enquanto um belo, impassível e enorme enfermeiro, uma touca colorida com desenhos étnicos, aparência de soberano africano, cuida de acionar máquinas e separar ferramentas, ignorando, aparentemente, a enfermeira que depila a paciente prevendo opções, no caso da primeira tentativa não dar certo. Uma minúscula toalhinha faz o papel de tapa-sexo, enquanto braço e perna são desinfectados e ficam ali, desamparados pelas circunstâncias, à espera.

Colocam no meu nariz um pequeno respirador com oxigênio, dão-me um Rivotril para ingerir (suspeitam do meu nervosismo?). Uma voz simpática diz: sou doutor fulano, responsável pelo seu exame, fique calma que será rápido e tranquilo. Enquanto respiro fundo, simplesmente apago e nem sequer suspeito em que local do corpo foi aplicada a sedação.

Sonolenta ainda, ouço: seu exame terminou, senhora. Correu tudo bem. Percebo que, à maneira dos encarcerados, estou agora “vestida” com uma ridícula bata fechada nas costas por um laço, uniforme para os confinados por motivos de saúde.

E lá vai a maca novamente atravessando portas e corredores e entra no que chamam de “UTI Cardiológica”. Ocupo o quarto 14, relativamente espaçoso, com uma cama e um sofá reversível para o acompanhante e as tais máquinas com seus visores luminosos a monitorar o corpo, verificando batimentos cardíacos, pressão arterial, saturação pulmonar e... sei lá mais o quê.  

A partir daqui, fico refém nessa cela sem janelas, com uma tela gigantesca a exibir imagens capturadas por câmeras em tempo real das ruas ao redor. O ar é condicionado e de nada me interessa essas imagens ilusórias com palmeiras ao vento e carros, muitos carros a trafegar, cujos motoristas sequer desconfiam do quanto é bom o vento nas ventas. Minha realidade é aqui. O consolo é ter minha fiel escudeira a meu lado, sem arredar pé.

Mais à noitinha, o resultado do cateterismo. Que fique tranquilo o leitor pois não irei transcrevê-lo, afinal, isso não é para o entendimento de simples mortais como nós, o que registrei com muita clareza, foi o diagnóstico do médico: “síndrome de coração partido”. Como? Isso existe? É científico? Sim, é. Comprovadamente científico. Ora, mas se prestaria muito bem para o título de um poema ou, quem sabe, de um livro. A poesia me procura e sempre tromba comigo nos lugares e situações mais inverossímeis.

Já em casa, vou ao Google atrás de mais detalhes dessa tal síndrome de nome tão poético.  

            No insuspeito site do HCor (Hospital do Coração – SP), leio: “O estresse emocional e físico são alguns dos fatores que impulsionam a síndrome do coração partido. Considerado um problema raro que provoca sintomas semelhantes aos de um infarto, como dor no peito, falta de ar ou cansaço, e que surge em períodos de grande estresse emocional. (...) A síndrome do coração partido normalmente é considerada uma doença com origem psicológica. Porém estudos hemodinâmicos mostram que, durante a síndrome, os ventrículos do coração não contraem corretamente, simulando um infarto do miocárdio e resultando numa imagem semelhante a um coração partido.”

            Romântico, poético? Nananinanão! A coisa é assustadora e ainda não me refiz. De alguma maneira, passei a ser uma cardiopata, afinal, há outras cositas a serem observadas, todas "compatíveis com a idade". O tratamento recomendado? Caminhada e sociabilização. A "sociabilidade" que sempre pratiquei com intensidade, me foi tirada pela pandemia e, após as tragédias e os lutos, pela falta de motivação e hábito. A caminhada, sempre planejada e pouco praticada, reconheço, junto à festa dos encontros, serão os desafios nesta minha nova fase, ou seja,  "a vida é agora" e é festa. Amanhã, sairei, ao lado de Mrs. Dalloway para comprar flores.      

Abaixo, breve ensaio fotográfico da minha cuidadora/paparazzi (a mais velha) com alguma cenas da rotina diária na UTI, inclusive na etapa de recuperação.

Com a fisioterapeuta e uma echarpe para disfarçar o desalinho da vestimenta

Preparo para a futura corrida de "São Silvestre"


E houve "concerto" individual, como "bônus"


As marcas/avisos da passagem


DO RETORNO E DA FELICIDADE EM SABER-SE MIMADA (Obrigada, Tarso de Melo, obrigada, Márcia Rosenberg, queridos amigos e tantos outros que, ao lado das três filhas, Carolina, Isabela e Alice e Luzia Maninha (amorosas e incansáveis), a irmã amorosa, Floripes. Valdecirio, o velho companheiro/marido há 51 anos, que nada soube dizer quando retornei, sentindo-se fisicamente desconfortável, pela emoção do momento. Por fim, a todos que, por inabilidade minha, não consigo registrar aqui, mas sabem que estão incluídos nos meus agradecimentos.







terça-feira, 9 de maio de 2023

Virginia, dos livros para o palco



    Aqui, um registro que deixei de fazer, mas faço agora.
Assisti à peça Virginia (sobre Virginia Woolf) com a atriz Cláudia Abreu. no Teatro TUCA.
    Um momento muito, muito especial, após um longuíssimo tempo sem frequentar teatro nem cinema. Emoção indescritível ao soar o terceiro sinal e as luzes se apagarem na plateia. Eu que já andava impregnada de Virgínia, leio por estes dias, o volume III de seus diários, senti-me dentro dos seus livros, vendo/ouvindo muitas das cenas já lidas. 
    Gosto de teatro, cinema, museus, justamente pelo “rito” que envolve o ato de ir que envolve o planejamento da compra dos ingressos, o vestir-se de modo especial, o café no saguão, o coração em modo stand-by. Depois, procurar o lugar adquirido, sentir os olhares de todos aqueles que por aquele lugar histórico passaram em momentos cruciais da vida nacional assim como também da arte. 
    A atriz. também roteirista da peça, dirigida por Hamir Addad, soube fazer incisões perfeitas, recortes que foram se unindo a mostrar a personalidade e a mulher inteira que foi Virginia, por ela mesma, inventariada, em seus últimos momentos de vida! A literatura e o ato da criação aparecem ao lado das tragédias pessoais e da tormenta do excesso de pensar. 
    Sem dúvida uma tarefa difícil, mas cumprida com grande talento, coisa de quem mergulhou profundo na vida e na obra da escritora inglesa que, 100 anos depois, segue encantando seus leitores, mas em especial suas leitoras, por suas posições feministas e revolucionárias para a época. 
    Belíssimo retrato em branco e preto (a roupa da atriz, toda de branco, sem nenhuma troca de vestuário e o cenário despido de mobiliário, apenas as paredes e o teto totalmente pretos). 
    Sonoplastia e iluminação perfeitas bastaram para dar o suporte ao incrível trabalho de Cláudia que dá um show de interpretação, ao mudar a voz e a expressão corporal a cada mudança de narrador.     Atuação irretocável de uma gigante num palco vazio e repleto de sentidos. Perfeito.

quarta-feira, 8 de março de 2023

MULHERES MULHERES MULHERES - V Encontro Nacional do Mulherio da Letras, novembro de 2022, em João Pessoa, PB


Naquela segunda-feira, dia 28 de novembro do ano passado, quando sentei e afivelei o cinto de segurança na poltrona do avião com destino a São Paulo, fechei os olhos e tentei processar minhas vivências dos últimos 5 dias e quatro noites, naquela bela cidade de João Pessoa, capital da Paraíba.



Afinal, que furor foi aquele? Que tipo de energia emanou das vozes e da escrita daquela centena de mulheres vindas de vários estados do Brasil e algumas poucas do exterior, para o V Encontro do Mulherio da Letras? Todos aqueles rostos, aquelas vozes, dezenas de livros na bagagem me dizem que foi um verdadeiro acontecimento, explosão cósmica, estelar.

Processar, entranhar e refletir sobre tudo aquilo foi uma tarefa difícil para quem volta à rotina massacrante do seu lugar. É o que tento fazer agora, ainda que tardiamente, mas não por acaso, na semana/mês em que se comemora mundialmente o Dia da Mulher, ou melhor, O Dia de Luta das Mulheres.




A primeira providência foi pisar na areia, aspirar a maresia, contemplar o azul do céu e banhar o corpo no sal, sabendo que é possível, sim, olhar para trás, sem perigo de virar estátua, viu Ló?"

Vamos ao começo dessa história. O Movimento Mulherio das Letras, criado em 2017, conta hoje com adesão de mais de sete mil e quinhentas mulheres brasileiras residentes no Brasil e muitas no exterior.  
 
São poetas, ficcionistas, dramaturgas, tradutoras, pesquisadoras, críticas, editoras, livreiras, ilustradoras, designers e jornalistas, muitas das quais ativistas culturais e sociais, ligadas a movimentos coletivos.
 
Trata-se de uma iniciativa precursora, criada, a princípio, sem grandes pretensões, a partir de uma discussão de um grupo de mulheres que participavam da FLIP em 2017, sobre a rala presença das mulheres no cenário das Feiras, Festivais, Prêmios e outros. A ideia partiu da premiada escritora Maria Valéria Rezende, santista de nascimento mas residente há muitos anos em João Pessoa, personalidade extraordinária de nossas letras, que seguiu como uma de suas principais ideólogas, motor inspirador em todas as etapas do coletivo. A partir de uma página criada a seguir no Facebook, com a adesão sempre crescente de mulheres interessadas em discutir e promover ações. 

 
O I Encontro Nacional do Mulherio das Letras, em João Pessoa, já delineava o que viria nas próximas ações do Movimento, ou seja, organização coletiva, democrática e sem hierarquia, sem mesas, conferências, curadoria, sem cachês. Assim foi e assim tem sido.
 

De acordo com a chamada “Carta do Guarujá”, elaborada no II Encontro, em 2018, “é um coletivo feminista literário, diretamente interessado na expressão pela palavra escrita e oral, que se propõe a discutir as questões da mulher nas áreas da arte e da cultura.”, sem descuidar de ações na luta pela igualmente de direitos e a favor da vida. (veja ao final, a carta, na íntegra.

Nestes cinco anos de atuação, tornou-se verdadeiro divisor de águas no rio das letras e da literatura produzida por mulheres em todo o processo de escrita e edição.
 
Havia muitos motivos e significados simbólicos a reparar e celebrar neste V Encontro, como o fato de voltar a ser realizado em João Pessoa, cidade que o acolheu o I Encontro, em 2017. Celebramos os cinco anos do Mulherio e também os 80 anos de idade de Maria Valéria Rezende, por motivos óbvios, a homenageada deste Encontro. Fui incumbida da honrosa tarefa de saudar com algumas palavras a querida Maria Valéria.
 
Nos primeiros quatro encontros nacionais foram homenageadas mulheres de vulto que tiveram sua obra e vida apagadas e invizibilizadas ao longo de séculos, mas que hoje são publicadas, estudadas e reconhecidas, nacional e internacionalmente. Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista brasileira, homenageada no I Encontro em João Pessoa; Patrícia Galvão – Pagu, nome indissociável do Modernismo brasileiro e das lutas políticas pela democracia, homenageada no II Encontro, no Guarujá, SP; Nísia Floresta, homenageada no III Encontro, em Natal, RN; várias autoras foram homenageadas no IV encontro, em Porto Alegre, o primeiro no formato virtual, tais como Maria Helena Vargas da Silveira 1940-2009, Lara de Lemos -1963-2010 e Elaine Brum, Lilian Rocha, nossas contemporâneas.
 
Vamos aos bastidores que rivalizam em qualidade (e diversão) com as mesas e rodas de conversa. E aqui já peço desculpas pela total autorreferência. Como evitar? Esta que escreve agora era aquela que estava lá e recebeu todos os impactos das discussões, dos abraços, das apresentações dos livros, inclusive, o de estar ao lado de minha filha Isabela Veras que, lançava ali, seu primeiro livro, coLateral.

A caderneta moleskine de capa rosa, veio preenchida com notas pontuais e descritivas dos acontecimentos decorridos nos dias 24, 25, 26 e 27, quinta, sexta, sábado e domingo, ao lado de uma centena de mulheres. Nada de digressões filosóficas e analíticas. Não havia tempo. Viver e entranhar fazia-se urgente.

Empório Café - Tambaú


Desde o “esquenta” no Empório Café, em Tambaú, com um grupo pra lá de especial, até o encerramento, passando pela abertura no Teatro da Usina Cultural ENERGISA, um belo casarão com lindos jardins, onde quase toda a programação foi realizada. Após a abertura, uma memorável “esticada” no “Bar do Baiano”, bairro Bancários.  As rodas de conversa, oficinas e vivências nos jardins e no Teatro da ENERGISA, almoço no “Olho de Lula”. 

"Bar do Baiano"  a esticada após a abertura

primeira sessão dos abraços 

Lançamento dos livros dtv e Isabela Veras



a turma do vamos lá trabalhar





porque é hora de abraçar e despedir

"decanas", mas jubiladas jamais


Ciranda - afiinidades eletivas

E ainda houve tempo para uma tarde mágica no já mítico jardim indomável de Maria Valéria


O abraço e admiração pelas cineastas

Mais abraços pois é hora de ir embora



a plateia à espera, no cine Banguê





a fala da cineasta Laís Chafe

a cineasta - o abraço e admiração


espera e muita conversa
 

A aguardada Avant Premier do documentário “Mesmo que tudo dê errado, já deu certo”, um longa de Laís Chafe e Neli Germano, sobre a eterna musa do Mulherio,  Maria Valéria Rezende, lotou e emocionou a plateia do cine Banguê no Centro Cultural José Lins do Rêgo. Foi um dos pontos altos do encontro.

Lançamentos de livros em locais diferentes na cidade, à noite e, novamente, esticada ao Pub Patcha Mama. Conversas e surpresas sem fim.

o Mulherio rende-se à sua "musa"

Abertura - fala a homenageada



em louvor a MVR a homenageada

 







Mulheres, mulheres, altas, baixas, magras, cheinhas, clássicas e extravagantes. Mas quem se importa com detalhes com tamanha diversidade de corpos e intelectos? Importam os abraços, os livros trocados, as ideias postas e discutidas, a cumplicidade na luta preconizada pela trajetória e pelo próprio momento: Dizem as estatísticas que em 2022, no Brasil, uma mulher foi morta por feminicídio a cada dia. A cada 24 minutos, uma mulher sofreu algum tipo de violência. Sem contar a violência diária sofrida por mulheres no trabalho, na rua, na própria casa que deixou de ser registrada. Ali, o luto se fez promessa de resistência.

No domingo de manhã, o encerramento no teatro da ENERGISA, com avaliações, trocas de informações, sugestões e experiências, não sem algumas polêmicas, que, afinal, fazem parte da diversidade ali representada. Por fim, foi lida a carta manifesto do Encontro que, assim como a anterior, chamada carta do Guarujá (II Encontro, vide no final) reforça as premissas, resistência e compromissos do Mulherio das Letras. 

leitura em voz alta - escuta


mais retratos para lembrança


(re)reconhecimento



um momento para guardar


Reencontros

Mulherio Indígena e suas Letras

Trocas
para guardar

avaliação do encontro

é debatendo que se avança
escambos

meu livro em boas mãos


O bloco da animação


mais trocas


avaliação do resultado de oficinas




momento ternura entre gerações

"A esperança é cortada, mas se regenera". (Pagu)

Carta Aberta do II Encontro Nacional do Mulherio das Letras 2018

O Mulherio das Letras, criado em 2017, é um coletivo feminista literário, diretamente interessado na expressão pela palavra escrita e oral, com adesão de mais de sete mil mulheres brasileiras residentes no Brasil e no exterior, que se propõe a discutir as questões da mulher nas áreas da arte e da cultura.

As mulheres reunidas neste encontro, diante da atual e grave conjuntura do Brasil, se comprometem a defender as seguintes pautas:

1. O exercício pleno e irrestrito da democracia;

2. A liberdade de expressão;

3. A garantia e ampliação das políticas públicas para o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas;

4. Salvaguardar os direitos das mulheres, bem como fortalecer e dar visibilidade à literatura produzida por elas;

5. Comprometimento com a defesa da diversidade étnica, de gênero, de classe, de orientação sexual, bem como com a inclusão das mulheres com deficiência;

6. A defesa da educação e, especialmente, da universidade pública, gratuita, laica, de qualidade, inclusiva e aberta à comunidade;

7. A resistência ao sucateamento e desmantelamento dos equipamentos culturais e instituições públicas.

Paralelamente, o Mulherio das Letras realizará ações efetivas nos níveis regional, nacional e internacional, no sentido de manter permanentemente mobilizado o Movimento.

Comissão de redação:

Cátia Moraes

Dalila Teles Veras

Giovana Damaceno

Lindevânia Martins

Patrícia Vasconcelos

Rejane Souza

Rosana Chrispim

Carta aprovada com acréscimos e supressões na leitura pública deste documento no encerramento do Encontro.

Guarujá-SP, 4 de novembro de 2018. 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

As tarefas da poesia no Sábados PerVersos




Cumprindo a promessa e após agregarmos uma proposta complementar de Ciça Lessa, ou seja, de que a tela que dá nome à exposição “Além de superfície”, da Vitória Fogaça, fosse ponto de partida para os textos daquelas e daqueles que não estiveram presentes na visita à exposição no sábado anterior, motivo do meu último post aqui.

O encontro Sábados PerVersos do último sábado, 04.02.23, com a presença de Márcia Plana, Isabela Veras, Rosana Chrispim, Luzia Maninha e Dalila Teles Veras, Deise Assumpção, Paulo Dantas, Mireille Leirner, Andrea Paula Santos, Conceição Bastos e Valdecirio Teles Veras e da própria artista, Vitória, o grupo voltou a comentar sobre o mergulho na exposição “Além da Superfície” e cada um dos presentes mostrou o resultado criativo dessa imersão e diálogo entre artes.
Com linguagens, estilos e gêneros diferentes, eis uma pequena mostra do que foi lido e discutido no encontro.

raízes
1.
na pulsação do olho a uApós a imersão, as tarefas da poesia no Sábados PerVersosnha ocre arranha a superfície do quadro um corpo se escamoteia em camadas se desenha em profundidade – paisagem remota de uma floresta ancestral
2.
e tudo o que você tem é um corpo
para dizer sim ou não
ou talvez
um corpo que chove
em todas as estações
e também antes e depois da chuva
3.
os terremotos e incêndios são linhas invisíveis e percorrem as raízes
que pulsam e repousam
em diferentes planos
da paisagem remota
de uma floresta ancestral
                                                  Conceição Bastos


Vitória, quase catatônica em frente ao espelho olha para dentro de si e tenta lembrar de sua infância.

Jogos, fitas cassetes, o balanço no quintal, o velho baralho, a cortina da sala que refletia sombras hipnóticas e ao mesmo tempo amedrontadoras. Lembranças soltas como peças jogadas fora do tabuleiro.

Mergulha mais fundo pensando na sua mocidade e se vê em pedaços, nunca completos, resultado da automutilação que tenta ocupar o vazio.

Passa a mão em seus cabelos e já não encontra as tranças que costumavam dançar sobre seus ombros despertando os olhares de terceiros.

Então sacode a cabeça fechando os olhos e saindo do transe se percebe ali, nua e despida de qualquer maquiagem. Gosta daquilo que vê.

Sua aura transcende quando ela toca seu corpo e finalmente se vê completa em todas as camadas. Após anos ruminando as palavras que teimavam em ficar engasgadas, finalmente deixa escoar todo o gozo represado. O que estava ali enterrado germinou e ainda reverbera para muito além da superfície.

                                                  Isabela Veras


Além da superfície

importa
menos o perfil delineado
que as camadas de repouso
sedimentos
acúmulos
leitos depositários
da mais leve poeira
do maior escombro
cementados
postos em tela
sugerem

mais vale a fermentação
o reflexo
o eco
deflagrados a correr
na cozinha
no escritório
na sala de estar

conta
em suma o processo
o trajeto
a somatória do
comum com o original

                        Rosana Chrispim


Corporaturas

Hoje-como-sempre extensão do real eclode na vida acordada de tantas poesias ambulantes sonhos em forma de gente. nunca passarão. Perpétuas. mostravam algo. Vocês e a obra de arte! tinham (se) feito: Perfeitas. nossa própria criação. Éramos formas tridimensionais. Curvas coloridas… Contínhamos mensagens, Imagens, Enigmas. Girávamos. Suspensas no ar. Para lados diferentes… Uma ao lado da Outra. assimetricamente sobrepostas. Como pessoas. Nós Mesmas. No Giro Autônomo nos víamos: Formas Desenhos. Cravadas nas Pedras Símbolos de Culturas Humanas plurais africanas esotéricas indianas tribais indígenas ocidentais/orientais? Não Sei… Sei. Sabemos? nos líamos no movimento Significados que amamos misturados na terra híbridos mudavam e mudavam no Giro de Si. Não cansava de olhar! a arte você, eu, elas se confundiam. um mesmo caleidoscópio não podia ser tocado. Já era toque! Amálgama? Partilha. Um holograma único: nos atravessava éramos substância vocês e a arte em mim nada falávamos não tinha som só o riso silencioso um gozo estranho etéreo elevado algo que paira… ficamos-estamos no sonho do real prolongado pluriverso. flutua diagonal vertical horizontal gira perpendicular em várias direções num mesmo eixo lado alado. claro escuro colorido cheio de sentidos conforme a mirada o riso de bocas desejantes Muda-Permanece de acordo com as partes tocadas olhos-nos-olhos de costas escapamos – medo feliz – voltamos surpresa inquieta. transformamos ali. O tempo todo mudança e sintonia fina! Mudávamos-e-Permanecíamos Fixadas Umas nas Outras. Somos felizes e só? Nossa vida essa Arte Virtual: Criamos recriamos presenciais aparições nossas digitais. No Sorriso-Belo-Perpétuo Nos Olhos-que-Captam. Corporaturas.

                                                     Andrea Paula Santos



fôlego

rumina a voz
a voz
a voz
a voz

sem palavras
lavras
lavra
palavras
larvas

células epidérmicas
encarnam-se
rememoram-se

múltiplas partículas de vozes
desprendem-se em fios
líquidos de nós

                     Márcia Plana

sagrado mistério

eu corpo nu
despida de mim

inundação e escoamento

vozes me perseguem
visto o avesso dos olhos

o eu e o outro
descarnam-se
ser
silêncio e poesia

                     Márcia Plana

artista em construção

menina, ainda
sussurra
conta
camada por camada
seu corpo jovem
vibra e constrói
corpo-experiências

os recortes ao vento
colam-se
juntam-se
transformam-se
elaboram
outros corpos
sem idade

palimpsesto para o
além de seu tempo

um corpo que não existiu
além da arte
além da poesia

                           Dalila Teles Veras


ALÉM DA SUPERFÍCIE

 

a Vitória Fogaça

 

o corpo robusto

(ainda)

cabeleira branca

 

presa à cintura

pelos punhos

a manga da camisa

esvoaça de leve ao vento

e guarda o toco de braço

 

os passos claudicam

na faixa de pedestres

 

artroses repisam:

 

a pressa dos tempos

de fábrica

 

as corridas

atrás da bola

(e os chutes)

 

as danças frenéticas

(também as lentas)

 

o esconde-esconde

no parque

(também na casa da avó)

 

os primeiros passos

incertos

(e os tombos)

 

haverá uma bengala

depois a cadeira de rodas

talvez


                Deise Assumpção

 


Quando ela deitou

Quando ela deitou, ela sonhou que tinha morrido.
Ouviu o craquelar do seu ser parando, secando.
Assim como exoesqueletos sobrepostos, as camadas de vida se destacaram, cada uma delas querendo ultrapassar a outra arrancava pedaços de momentos das outras e procuravam subir à tona.
Todas as suas vidas estavam lá.
Ou pelo menos as que ela supunha ter.
Pedaços arrancados boiavam num lago etéreo.
Eram pedaços de sua vida boa misturados a fumacentos trapos de dolorosos fatos jogados no fundo do olvidar, bem lá no fundo do esquecimento.
Fediam.
Os cheiros se misturavam...
Quisera ela tirar os grossos chumaços de algodão que lhe foram enfiados pelas narinas até a porta do seu cérebro.
Quisera respirar.

Ouviu o choro de um recém-nascido.
Passou.

Quis ouvir novamente.
Percebeu que não adiantava mais querer alguma coisa.
O seu querer não era mais seu.
As vontades foram desmaiando até o... quase... nada...
- REAJA !
- REAJA !
Abriu os olhos.

Um breu .

Um som da terra tamborilando por cima do caixão.

                                                Mireille Lerner