sábado, 24 de outubro de 2020

Das Armadilhas e Janelas da Memória

 

Ao caminhar numa área arborizada do condomínio onde resido, notei que, após os ventos de ontem, a grama ficou salpicada de azuis. Essa imagem e o aroma que ali reinava, abriram mais uma das frestas na minha já tão gasta memória. Sentei-me num dos bancos embaixo do altíssimo jacarandá, fechei os olhos, e vi-me a caminhar pelas ruas do Funchal, minha cidade natal. A memória olfativa aliada aos azuis destravou o trinco e abriu-se a janela armadilha para capturar rizomas.

Em 1999, quando escrevia uma coluna semanal para um jornal de minha região (O Diário do Grande ABC), publiquei a crônica que transcrevo a seguir e que, mais tarde, integrou meu livro “A Vida Crônica”. Desculpem, mas é que fiquei nostálgica, sentimento bem mais português do que a saudade.  




JANELAS DA MEMÓRIA

 

Folheio, com a devida reverência, um alfarrábio de 76 anos  (Antologia de poemas, de Augusto Gil, 1923 – Livraria Bertrand, Lisboa) publicado ainda em vida do então muito popular escritor português. A simples leitura do título do poema Balada na Neve abre-me uma grande janela na memória.

“Batem leve, levemente,

Como quem chama por mim...

Será chuva? Será gente?

Gente não é certamente

E a chuva não bate assim...”

Inexplicavelmente e com facilidade, posso dizer de cor estes e os outros versos do poema. Vejo, ainda, a cena da infância evocada com uma clareza assustadora: fim do ano letivo. Festa. Presença dos pais e autoridades (diretoria da escola, pároco, professores) A menina de 8 ou 9 anos, sobe ao palco e recita Augusto  Gil

“É talvez a ventania;

Mas há pouco, há poucochinho,

Nem uma agulha bulia

Na quieta melancolia

Dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente,

Com tão estranha leveza

Que mal se ouve, mal se sente?...

Não é chuva, nem é gente,

Nem é vento, com certeza.

Fui ver a neve caia,

Do azul cinzento do céu,

Branca e leve, branca e fria...

-Há quanto tempo a não via!

E que saudade, Deus meu!

Olho-a através da vidraça

Pôs tudo da cor do linho.

Passa gente e, quando passa,

Os passos imprime e traça

Na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais

Da pobre gente que avança,

E noto, por entre os mais,

Os traços miniaturais

Duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos”...

Chorando copiosamente, a menina não consegue terminar o poema. O pároco acode, sobe ao palco, dizendo-se emocionado com a emoção da menina que continua a chorar...

Vingada, a memória apagou de vez o poema. Nem título, nem autor, nem um só verso puderam ser lembrados nos posteriores 40 e poucos anos. Agora, como se um disquete fosse inserido na memória, o poema ressurge, verso, após verso, mas... (e aqui entra o fator que só ao humano pertence) só até o exato trecho que provocou aquela emoção menina diante do infortúnio infantil.

Busco no livro a parte final que a memória novamente recusa

“E descalcinhos, doridos...

A neve deixa inda vê-los,

Primeiro bem definidos ,

-Depois em sulcos compridos,

Porque não podia ergue-los

Que quem já é pecador

Sofra tormentos... enfim!...

Mas as crianças, Senhor,

Porque lhes dais tanta dor?!...

Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,

Uma funda turbação

Entra em mim, fica em mim presa,

ai neve na natureza...

E cai no meu coração.”

Apagaram-se alguns versos na memória, mas a menina ficou irremediavelmente fatalizada para a poesia.

 

 

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Carta a Giovana Damasceno




Querida Giovana,
Chegou aqui o seu “Alguém para segurar a minha mão” (Penalux, 2020), já há alguns dias. Deixei o envelope na “quarentena” e, quando o abri, deu-se aquele fato estético de que nos fala Borges, não consegui mais fechar. Era noite e mais tarde ficou e eu, livro adentro. Após a 71ª pagina, fui vencida pelo cansaço e tive que aguardar momento mais propício para tomar fôlego para encerrar a leitura, o que ocorreu ontem.
Demos, os que moram aqui comigo, uma trégua no isolamento e fomos para nosso refúgio (quase) secreto, uma casinha perto da serra do mar, cercada de mata atlântica, que já foi minha segunda residência, pois minhas filhas cresceram passando todos os fins-de-semana ali, mas que nos últimos anos deixou de ser. Estava precisada de me reconectar não só com a história do lugar, mas também com a natureza. Esta a 3ª. vez, pois de março a junho, não fui capaz de sair de casa, mas vi que fiz bobagem e, nesse caso, era excesso de zelo.
Levei seu livro e, após o almoço, protegida por toda a energia que dali emana, sentei-me à sombra de uma laranjeira e terminei a leitura. Gostei muitíssimo e digo porquê: primeiro pelo motivo óbvio, você é uma escritora de talento (fato que eu intuía, mas só agora comprovado integralmente);  segundo, porque sempre gostei do gênero “new journalism”, já consagrado por muitos, desde Truman lá,  Euclides aqui, sempre renovado, como neste seu caso, onde realmente o conceito é aplicado de maneira extraordinária, ou seja, o fato jornalístico narrado de forma literária.
Terceiro, porque comecei a me interessar por essa temática, a da “boa morte” desde 2002, quando senti e acompanhei, por mais de dois meses, o sofrimento e agonia de minha mãe, deixada aos cuidados intensivos de um hospital, diante do processo do cuidado “com um corpo”, a meu ver, apenas “um corpo” e o quanto isso trouxe sofrimento a toda a família. Dessa experiência dolorosa, nasceu um pequeno livro, “vestígios” que publiquei um ano depois de cumprido o rito do luto.
Como gostaria, naquele período, ter-me encontrado com alguém como o Dr. José, personagem real do seu livro! Como me senti representada naquelas falas que misturam medicina com espiritualidade e, sobretudo, gestos de muito afeto, delicadeza e humanidade, no respeito ao enfermo e à família! É um tema que me persegue, mas de forma mais aguda, quando tenho que acompanhar alguém próximo naquele lugar funesto, que chamam de UTI. Da última experiência, há dois anos, após uma cirurgia gravíssima e de urgência sofrida por meu marido, com um pós-operatório necessário, sem a mínima possibilidade de cuidados em casa. As anotações daqueles 8 primeiros dias, resultaram num conjunto de poemas que foram enfeixados como encarte no meu último livro, Tempo em Fúria.
Neste tempo que nos cheira a morte (nada natural e possivelmente evitável) e abalado  com ecos, lutos e sofrimentos alheios, fez-me muito bem a leitura do seu livro. Passarei a recomenda-lo a amigos, como forma de reflexão sobre o direito de morrer em paz, com alguém a segurar a sua mão.
Na impossibilidade de redigir uma resenha de seu livro (assim como muitas outras oportunidades de leituras recentes que deixei passar, à espera de um momento mais adequado e que nunca veio por conta da falta de concentração), achei melhor escancarar publicamente  o que senti ao ler seu livro, antes que o impacto passe e, mais uma vez, deixar de dar a conhecer estas impressões de mera leitora.

Grande abraço e admiração, dalila




sábado, 30 de maio de 2020

Livros usados – achados e surpresas



             Por incontáveis vezes, publiquei textos acerca do universo do livro usado, das surpresas ao abrir certos volumes e encontrar  “perdidos” em suas páginas objetos como fotos, cartões postais, bilhetes de ônibus, ingressos de teatro, selos, recados, flores secas, santinhos, calendários, cartas e até chaves, contam histórias de boa parte da história pessoal de quem os leu ou folheou, ou seja, não apenas os rastros de seus antigos proprietários, mas também algumas sincronicidades inesperadas.
            Pois bem, a história de hoje é a seguinte:  aqui chegaram, via correios , três livros encomendados por mim em diferentes sebos abrigados no portal Estante Virtual, onde, para minha desgraça, encontro praticamente tudo o que desejo ou preciso. Ali, possivelmente, compro mais livros para minhas estantes pessoais (a minha conta registra 535 volumes adquiridos) do que vendo pela minha livraria, a Alpharrabio que, aliás, está fechada desde o início de março, inclusive o comércio virtual que, por nossa opção, para não furar o isolamento social.  Assim, não vendo, só compro e alimento meu vício maior que é cheirar livros.


            O primeiro pacote, embrulhado em papel de jornal, traz como remetente um sebo da cidade de Mirandópolis, interior de São Paulo.  Aberto com todo o cuidado (aliás, já pensei em fotografar ou guardar as encantadoras embalagens dos livros que recebo de sebos de todo o Brasil – nenhuma é igual),  foi esse volume da foto, com uma capa absolutamente explícita sobre a ideologia de seu conteúdo. Na cruz, carregada por um homem negro acorrentando, lê-se “Não se pode servir a dois senhores”. A autora, uma “noviça rebelde” que então assinava  M. V. Rezende. “Sem agressividades desnecessárias, com muitas referências estimulantes. Mas desadulterando a memória”, é o que diz o prefácio, assinado por D. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, MT, outubro de 1980, EHILA – Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina, versão popular, Editora Todos Irmãos, 104 pgs. Numa das ilustrações internas, lê-se a seguinte legenda: “Condenados aos açoites, os escravos eram levados da prisão à Igreja para pedir perdão de seus pecados antes de serem amarrados ao pelourinho e açoitados. Igreja e poder colonial estavam unidos”. 
            O curioso desta história, é que a contrastante manchete do jornal em que o volume veio embalado (capa do “Informativo mensal da Igreja Internacional da Graça Divina”, datada de março de 2001): “Cálculos renais expelidos após a oração”, com a foto do homem contemplado pela oração exibindo as tais pedrinhas. Sem poder deixar de rir, fiz-me a seguinte pergunta: em que raios de escaninho ficou guardado por 19 anos esse jornal evangélico? de onde foi retirado para vir embrulhar um livro publicado 21 anos antes por autora católica,  rebelde, ligada à chamada “teoria da libertação” e neste pandêmico ano, 40 anos depois de sua publicação veio papar em Santo André, SP? Coisa de louco!



            O segundo pacote, igualmente embalado de forma artesanal e cuidadosa junto a uma capa rígida retirada de algum volume danificado com a finalidade de proteger a frágil brochura.  Consta como remetente,  “O Sebo Cultural”, em João Pessoa. “História da classe operária no Brasil – gestação e nascimento 1500 a 1888 – 1º caderno”,  é seu título. Brochura de 50 páginas que, igualmente ao livro anterior, traz uma capa bastante explícita muito diz da ideologia dos que o escreveram. Foi publicado pela Ação Católica Operária, em maio de 1985. Na apresentação desta quarta edição, fala-se que a “ideia de escrever essa História da Classe Operária no Brasil, surgiu no período de 1971 a 1974, quando o Movimento Operário estava aparentemente sufocado pela lei anti-greve e pelo regime repressivo controlando a direção dos Sindicatos  (...) Esta é uma história escrita por trabalhadores, por isso está numa linguagem simples” (aliás, enganosamente “simples”, posto que é bem escrita e extremamente didática -  observação minha), mas não cita nomes dos autores. Não cita, mas uma das autores revelou em recente entrevista, que a brochura de autoria coletiva, teve a sua colaboração, ou seja, a M.V. do outro livro citado, ou melhor, Maria Valéria Rezende, autora hoje largamente reconhecida como ficcionista.
            O terceiro volume, “Antiuniverso”, de Fernando Py, Editora Sette Lebras, 1994, foi adquirido como uma singela forma de preito por seu autor, falecido recentemente,  poeta, crítico e pesquisador literário, que me deu a honra de resenhar dois ou três dos meus livros.



            Pois bem, não era minha intenção escrever um texto tão longo, mas não poderia deixar passar a oportunidade de lhes contar mais uma historiazinha que ilustra estes três casos.
            A minha biblioteca, composta por milhares de livros acumulados ao longo de 60 anos, foi formada por circunstâncias semelhantes a esta, ou seja, uma leitura ou conversa, leva a outra e essa outra leva a outra. Antes, eu anotava em cadernetas os livros “a comprar”, quase sempre fora de catálogo, referidos em obras lidas. Com sorte, fui adquirindo nos sebos que costuma frequentar, pelo menos uma vez por semana. Com a chegada da era cibernética e o comércio virtual, mais precisamente a partir de 2005, anos da criação do portal “Estante Virtual”, por André Garcia, um então jovem estudante carioca que ficou milionário e acabou por vendê-la à Livraria Cultura em 2017. Sem nenhuma visão do comércio de livros usados e já notoriamente falida, a Cultura transformou a EV em outra coisa, permitindo a venda também de livros novos, e conduzindo sua relação com os alfarrabistas com a mesma lógica das “mega”. Como profissional do livro, mantive meu acervo lá, mas reduzi muito as compras particulares. Felizmente, durou pouco a gestão e, em 2019, a Magazine Luiza passou a ser proprietária do portal, quando o mesmo alcançou a impressionante marca diária de 10.000 livros, vendidos por mais 2.500 sebos localizados em todo Brasil. Vibrei com a notícia, pois a “Magalu” é dirigida por uma mulher empresária com ações “socialistas”, nada comprometidas com o neoliberalismo vigente. Voltei a comprar com entusiasmo.  Isso significa que a minha biblioteca cresceu exponencialmente nestes últimos 15 anos, por conta da facilidade e rapidez da compra num simples clic.
            Comigo as compras funcionam assim: estou lendo um livro ou ouvindo alguma pessoa citar determinado livro que me interessou, caso não o possua, vou ali ao computador, e lá está o que preciso (preciso?) e a minha curiosidade manda. Assim foi com estes três livros, cuja compra foi motivada por ouvir Maria Valéria Rezende, numa entrevista recente e pela notícia da morte do Py. A minha “Valeriana” vai, assim, ficando linda e completa, graças, sobretudo, aos sebos destes brasis, guardiões da memória.  dtv

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

LEGADO - George Steiner



LEGADO

“Gostaria de ser recordado como um bom mestre de leitura, alguém que passou a vida a ler com os outros”




Morreu nesta segunda-feira, 03.02.2020, aos 90 anos, o professor, crítico e pensador George Steiner, um verdadeiro Mestre.
Há menos de dois anos, numa bela entrevista que concedeu ao jornal português "Expresso" (ver link no primeiro comentário), disse que “o verdadeiro crime é viver demasiado”. Seu corpo estava cansado, mas a mente lúcida e ligeira de sempre não o abandonou.
Tão logo fui informada de sua morte, fiz o que sempre faço quando um dos escritores de minha predileção parte, ou seja, ponho-me a reler sua obra, neste caso, trechos (os sublinhados, como neste caso). Esta é minha forma de homenagear aqueles que muito me ensinaram, revendo seu legado. Muito aprendi com sua obra, em especial, a tornar-me uma leitora mais aguda, a valorizar o silêncio que o autêntico ato de pensar e criar exigem.
Antes de conhecer propriamente o pensador crítico, conheci boa parte do homem , através do primeiro livro que li dele, ou melhor, sobre ele: “George Steiner: À Luz de si mesmo” (Ed. Perspepectiva , 2003). Trata-se de uma série de entrevistas realizadas por Ramin Jahanbegloo, nas quais Steiner fala de sua formação, de sua família de origem judaica e de seus “exílios” mundo afora, da importância de dominar vários idiomas (para não se sentir tão estrangeiro em qualquer parte) e poder recomeçar a vida em outros países. “Nenhuma paixão desperdiçada (Record, 2001) foi o segundo livro de sua autoria que li e, logo depois o “Gramáticas da criação” (Ed. Globo, 2003).
Em 2009, num momento em que me encontrava em Portugal e me interrogava sobre minha própria identidade e também sobre o que seria ser europeu, caiu-me nas mãos e no olhar (não acredito em acasos, mas em sincronicidades), o seu ensaio “A ideia de Europa” (Gradiva, 2007).
Com estas imprecisas e breves notas, não quero outra coisa senão dizer o quanto esse intelectual e tantos e tantos foram importantes na minha trajetória de leitora e ser humano.