domingo, 20 de outubro de 2013

Mario Benedetti - memória e esquecimento

Tempos atrás, andei empenhada em traduzir poemas de Mario Benedetti.  Cheguei a publicar na revista A Cigarra alguns deles e deixei na gaveta (ops! no arquivo do word) muitos outros, talvez por conta da insegurança (traduzi, como se sabe, é trair e... daí o temor). Ontem, revolvendo esses arquivos deu-me vontade de voltar à tradução. Antes, a título de "teste" deixo aqui um deles (tradução inédita), a ver se resiste à leitura crítica de alguns dos meus eventuais leitores. Se der certo, publicarei outros:

HAVIA ESQUECIDO

Havia esquecido do carnaval e suas matracas
das insônias depois de cada prova
dos barriletes com lâminas de barbear
dos seus trezentos soldadinhos de chumbo

havia esquecido das tardes no rio
dos cavalos que desenhava com crayon
da primeira ereção / o primeiro salário
dos imundos bordéis na fronteira

havia esquecido da formosa pequenina
violada por seus milicos subalternos
do vômito rubro daquele estudante
que não estava disposto a delatar
desnudo em seu pouco de consciência
da surdez das árvores avós
quando ele passava assobiando ou soluçando

porém um dia o temporal da memória
caiu sobre sua calva tão lustrosa
e sentiu o incômodo de já não ser
o gurizinho de velhas primaveras
de saber-se um órfão de amores
um náufrago de pátrias um ausente

e o assaltou a cruz dos indigentes
a pele da violada que não pôde chorar
as máscaras que imitavam seu rosto
e o embuste o banhou aos borbotões
a purulência de sua vida de cruel
e praguejou longa e tartamudamente
diante do esquecimento, o intratável esquecimento
quando o viu tão cheio de memória

SE HABÍA OLVIDADO

Se había olvidado del  carnaval  y sus matracas
de los insomnios después de cada examen
de los barriletes con hojas de afeitar
de sus trescientos soldaditos de plomo

se había olvidado de las tardes en el rio
de los caballos que dibujaba con crayolas
de la primera erección / el primer sueldo
de los mugrientos quilombos en la frontera

se había olvidado de la preciosa chiquilina
violada por sus milicos subalternos
del vómito rojo de aquel estudiante
que no estaba dispuesto a delatar
del nudo en su poquito de conciencia
de la sordera de los árboles abuelos
cuando él pasaba silbando o sollozando

pero un día el chaparrón de la memoria
cayó sobre su calva tan lustrosa
y sintió el bochorno de ya no ser
el gurisito de viejas primaveras
de saberse asimismo un huérfano de amores
un náufrago de patrias un ausente

y lo asaltó la cruz de los menesterosos
la piel de la violada que no pudo llorar
las máscaras que imitaban a su rostro
y lo bañó el embuste a borbotones
la purulencia de su vida de cruel
y puteó larga y tartajosamente
ante el olvido el intratable olvido
cuando lo vio tan lleno de memoria


Mario Benedetti nasceu em Paso de los Toros (Departamento de Tacuarembó) Uruguai, em 14 de setembro de 1920 e faleceu em Montevideu em 17 de maio de 2009. A família mudou-se para Montevidéu quando ele tinha 4 anos, cidade em que passou toda a sua vida, excluindo-se um longo exílio de 12 anos (vividos na Argentina, Peru, Cuba e Espanha).

Autor de mais de 60 livros (romances, novelas, teatro, ensaios e poesia), traduzidos em mais de 20 idiomas,  é considerado um dos grandes nomes da literatura hispânica do Século XX, com uma bagagem considerável de prêmios mas, inexplicavelmente, ainda muito pouco lido e traduzido entre nós. Com exceção de alguns romances publicados no Brasil, como o excepcional A Trégua, com duas traduções brasileiras diferentes, a sua poesia só veio a ser editada em livro no Brasil em 1988 (Antologia Poética, tradução de Julio Luís Gehlen, Editora Record). Ele próprio, considerava-se antes de tudo um poeta, gênero onde, seguramente, realiza a sua melhor escritura. Este poema integra o volume “El olvido está lleno de memoria”, de 1994, no qual, o poeta mantém a fidelidade ao coloquialismo antilírico, uma linha já apontada no seu primeiro livro de poesia “Poemas de la oficina”, de 1956.

sábado, 12 de outubro de 2013

São... São Paulo...

Um dia na cidade de São Paulo é uma volta ao mundo. Mundos (verdes, concretos, ligeiros, lentos, claros, escuros, obscuros, brilhantes, cosmopolitas, provincianos). Não é de hoje. Esta cidade cabe feito luva na mão da poesia. Mário de Andrade, o mais paulistano de todos os paulistanos, vestiu-se dela. Hoje, ao olhar a cidade de um ângulo nunca visto antes (o 8º andar do prédio projetado por Niemeyer no Ibirapuera que, concebido para outros fins, abrigou, incompreensivelmente, por muitos anos o Detran e sua burocracia, mas que, para bem da cidade, hoje é tomado pelo precioso acervo do MAC USP), não pude evitar lembrar de Mário e de sua poesia. Difícil fazer poesia sobre São Paulo depois de Mário. Então, fotógrafa amadora e desajeitada que sou, "olho" digitalmente esta cidade e a ilustro com os versos de Mário que falam muito mais dela dos que as toscas imagens (mas foi o que pude...).

"São Paulo! comoção de minha vida…
Galicismo a berrar nos desertos da América!"




"verde, verde, verde!…
Oh! minhas alucinações!"





"A manhã roda macia a meu lado
Entre arranhacéus
de luz"



"Busquei São Paulo no mapa,
Mas tudo, com cara nova,
Duma tristeza de viagem,
Tirava fotografia…"




"Meu pensamento é talequal
São Paulo, é histórico
[e completo,
É presente e passado e dele nasce meu ser verdadeiro…"




Do lado verde à colina - travessia. Anoitece na paulista Paulista, onde há um século vieram residir os barões do café. Hoje, os "barões" do capital armazenam e contabilizam seus lucros e a transformam no ex-libris da megalópole progressista deste século XXI.
Mais um dia de conviver amoroso com esta cidade áspera, enigmática, fascinante, hostil e bela. (dtv)


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

As Janelas de Margarita Lo Russo



"Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?"
Carlos Drummond de Andrade

Há 30 anos acompanho com interesse e admiração a produção artística de Margarita Lo Russo, extraordinária artista argentina que residiu em Santo André nos anos 80 e hoje vive em Buenos Aires, onde nasceu. No Brasil, atuou junto ao Grupo Livrespaço de Poesia e, como ilustradora, colaborou com o Diário do Grande ABC e emprestou sua arte a inúmeras capas de livros e revistas. Publicou no Brasil o livro de poemas "Das Profundas Raízes". Atualmente, além do desenho e da collage, dedica-se à ficção. Possui alguns livros inéditos de contos, gênero pelo qual passeia com extraordinária desenvoltura. 


Em sua recente visita ao Brasil, deixou-me estas maravilhas, que compartilho com entusiasmo e a convicção de que sua arte (plástica e literária) precisa ser mais conhecida e estudada entre nós. 



Nada mais oportuno para uma "janela" como esta, debruçada sobre os dias e o estado da arte, receber estas enigmáticas e belas janelas, voltadas para mundos reais e imaginários. Janelas comprometidas com a arte, mas também com as mazelas sociais



Janelas libertárias e libertadoras, janelas/portas para a percepção e a beleza, janelas para o sonho e para a reflexão.


À minha janela, janelas que significam, janelas caminhos... Homenagem à sensibilidade de quem pinta por necessidade absoluta de expressão, destino ao qual não consegue escapar e que, na sua modéstia, nada reivindica, apenas oferece... Bem haja Margarita e sua arte!

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Enfim, a Primavera

Setembro foi um mês que durou anos. Setembro sem Primavera nem sol, nem cor, nem nada. Só o azul dos jacarandás do meu bairro e seu perfume a Funchal e à memória da infância me salvaram, além de intermináveis conversas com uma amiga querida que há muito não via (ainda que em circunstâncias adversas).
Ainda é Primavera e é tempo de renovação e retomadas. Retornar a esta janela é preciso. Careço. Então retorno.
Ouço António Zambujo enquanto escrevo e a linda voz do alentejano suaviza as dores do corpo (as da alma, o tempo, o tempo...).





 
A Mostra Internacional de Cinema já começou em São Paulo com a bela exposição  Manoel de Oliveira: Uma História do Cinema,  no Instituto Tomie Ohtake e é uma bela forma de se preparar o espírito para a angústia de não conseguir sequer escolher entre tanta oferta, quais os 3 ou 4 filmes que eventualmente poderei ver. Excesso, sempre o excesso.
Manoel completará em dezembro próximo 105. História viva do cinema e da história de seu país, Portugal. O cineasta é homenageado com esta interessantíssima exposição que o Museu Serralves, do Porto, envia ao Brasil. Que ninguém espere aqui o óbvio que seria esperado numa exposição desse gênero.





A exposição são os filmes projetados nas paredes e em espaços especialmente criados para eles. Fragmentos de seus filmes, nada aleatórios, que agrupam particularidades de uma filmografia com exatos 54 filmes. A relação de Manoel com a literatura é seu maior leitmotiv. Eça, Camilo e Agustina não foram exatamente "adaptados", mas são parte intrínseca de seus filmes, estão lá impressionantemente "inteiros", mas há outros motivos recorrentes, como a pintura e o teatro. Mas é a palavra, sobretudo a palavra que dá "corpo" às imagens moventes de Manoel.
Esta foi uma bela maneira de iniciar a semana e o retorno ao blog. (dtv)