quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

70 anos sem Mário

Há 70 anos morria Mário de Andrade, admirável escritor e intelectual brasileiro, sempre adiante de seu tempo. Atuou como pesquisador da arte, da música e da cultura brasileira, praticou (com fins de pesquisa) a fotografia e o diário de viagem. Publicou romances e poemas centrais na literatura brasileira.  Pensou o Brasil através da cultura, mapeando a cultura musical e popular de Norte a Sul do país. Foi também um imprescindível gestor público de cultura. Primeiro Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, criador da Biblioteca Municipal que hoje leva o seu nome. Mário foi trezentos e o foi em altíssimo grau. Não dá para compreender a vida cultural e literária brasileira (política, social e artisticamente falando) da primeira metade do Século XX sem passar por sua obra, inclusive a epistolografia, que praticou de forma admirável e com uma generosidade para com seus pares pouco vista até os dias de hoje. Um homem manso que, quando cutucado, sabia se enfurecer.
O poema "Ode ao burguês" (de Paulicéia Desvairada" - copiei de meu exemplar de "Poesia Completas"Círculo do Livro, 1976) é bem um exemplo dessa "fúria". Ele sabia muito bem do que falava, pois frequentava, apesar de pobre - vivia de suas aulas de música - os salões literário da alta roda paulistana.
Deixo aqui também um link para uma leitura igualmente "enfurecida" do ator, meu amigo, Ayrton Salvanini, que faz parte de um bom programa televisivo em homenagem a Mário de Andre. Bom proveito: Bom proveito:

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! O homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangue de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! Ao burguês-tilburi!
 Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
"— Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
 — Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!


Fora! Fu! Fora o bom burguês!..

https://www.youtube.com/watch?v=41BXXBUiwAY




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Tejo em versos de Sebastião

O Tejo desde o Castelo de São Jorge (foto dtv, 2012)

Dia destes, o amigo Luís Avelima postou em sua TL do Facebook um poema de Sebastião da Gama, seguido de pertinentes comentários sobre aquele poeta português, inexplicavelmente quase desconhecido entre nós (não conheço nenhuma edição brasileira de seus poemas - tenho-os na coleção "Obras de Sebastião da Gama" das Edições Ática (Lisboa), em 7 volumes).
Como (quase) todos aqueles a quem os deuses amam, viveu pouquíssimo o nosso poeta (1924-1947 - 23 anos apenas) e deixou uma obra que mereceu elogios de inúmeros dos mais altos poetas seus contemporâneos.
Lembrei-me, assim, de revisitá-lo e, com encanto e enorme prazer estético, fui folheando a esmo, o diário, os poemas e não tive como não lembrar da amiga Isa Ferreira, em companhia de quem tive, por algumas vezes, a alegria de percorrer esses mesmos lugares onde nasceu e viveu o poeta (Azeitão, Serra da Arrábida, Setúbal, lugares banhados pelo rio Sado que ele tão bem cantou). A certa altura, dou com este poema (Canção do Tejo), que deixo aqui em homenagem à amiga que mora à beira-Tej, mais precisamente, numa de suas "banheiras", e como o poeta, tanto ama e canta (e fotografa) esse rio-mar que ele tantas vezes também contemplou e o atravessou:

Canção do Tejo

Quem não tem saudades tuas
não é homem nem é nada!

Meu Tejo, que eu já não via
vai pra lá de uma semana,
com tuas barcas à vela,
tuas margens com teus prédios
batidos de Sol em glória,
rever-te foi encontrar-me,
como se andara perdido
por becos de alma estrangeiros.

Ai as saudades que eu tinha
de quanto é para mim,
ribeira de Bernandim,
águas santas de Camões!
Nem as saudades me cabem
na linha torta do verso.
Pudesses vê-las nos olhos,
meu Tejo!, com que te vejo...

Pudésseis, águas!, notar
o lindo amor que vos tenho,
que tão lindo, que é tamanho

porque já nele anda Mar.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Brincante - o filme ou a arte de brincar a sério

Domingo 08, hoje, mês do Carnaval. O baixo Augusta fervia. Gente, muita gente. A estação Consolação despejava umas 1000 pessoas por minuto, jovens e coloridos, na sua maioria, que desciam rua abaixo, cerveja na mão e diversão na cabeça (ops... não seria no pé?). De túmulo do samba, para a capital dos blocos, São Paulo, é a cidade que  sempre surpreendente.
Como não aprendi a dançar nem a seguir bloco e já sem paciência para começar e muito menos pernas pra aguentar maratonas, refugiei-me, como de hábito, no cinema. Oscar? Coisa nenhuma. Primeiro, porque as sessões dos filmes concorrentes ao prêmio já estavam todas lotadas com muita antecedência. Segundo, porque gosto sempre que possa de prestigiar o cinema nacional. Acertamos, desta feita, em cheio, Brincante, um filme de Walter Carvalho sobre e com o grande artista Antônio Nóbrega. Nada mais apropriado do uma hora e meia de puro lirismo dançante para este mês de samba.
Walter Carvalho (Central do Brasil, Amarelo Manga, etc. e tal) arrasa nas tomadas, na luz, na ousadia dos incríveis enquadramentos. Mais do que um adorável passeio pelo universo fantástico da arte desse múltiplo artista, constituído pelo amálgama da erudição e da cultura popular brasileira que por sua vez vai lá atrás beber do trovadorismo e do nosso imaginário, o filme é uma grande homenagem a São Paulo, onde mais de metade do filme é ambientado, cidade onde o artista fixou residência e montou o já lendário Instituto Brincante (à beira do despejo e do desprezo local).
O diretor optou por um documentário que não é exatamente um documentário, mas também não é exatamente uma ficção (vale-se de personagens de ficção encarnados pelo próprio Nóbrega) e dispensa praticamente a palavra. A história desse artista é contada através de sua própria arte. Um artista que "brinca" a sério. A viagem da "fubica", uma velha camionete que serve de casa, palco e teatro sobre rodas, por ele mesmo conduzida, sempre acompanhado de sua parceira na vida e na arte (a atriz Rosane Almeida) é metáfora dessa trajetória. Inicia percorrendo cidades estradas de terra do Estado de Pernambuco (Nóbrega, como se sabe é pernambucano), entra e se fixa, como ele mesmo se fixou, na cidade de São Paulo.
A paisagem interna (o palco, o recolhimento do estúdio) vai se alternando com a externa (a dança de rua), ora no alto dos edifícios e viadutos, ora nos parques, no vão livre do MASP, na Av. Paulista e muitos outros locais, apropriando-se da cidade, palco a céu aberto cenário de belíssima coreografias. A trilha sonora, criada em processo colaborativo, é a cara disso tudo, a cara do Brasil.  
Suassuna teria adorado ver seu pupilo ali, na telona, em pleno vigor de seus mais de 60 anos, arte nordestina/brasileira nas veias, talento levado às alturas.

Como disse, na estreia, o diretor Walter Carvalho, "cinema não é pra ganhar Oscar, mas para emocionar pessoas". Emocionei-me, voltei mais leve e com mais orgulho desta terra que elegi como minha. (dtv)


sábado, 7 de fevereiro de 2015

Uma confissão e um convite à reflexão

Sou filha legítima do pós-guerra (1946). Conheci, em criança, numa Europa devastada, a penúria da escassez, aprendi economia pela obrigatória necessidade cotidiana de poupar e não por números hiperbólicos midiáticos que o meu cotidiano não alcançava e nem quer alcançar.

(Sobre)vivi a um regime de exceção, 20 anos de tempos escuros, sob medos e incertezas.

(Sobre)vivi durante 15 anos a uma inflação de 3 dígitos, quando tínhamos que correr a depositar minguadas quantias no banco porque dinheiro em mãos representava desvalorização diária. Época em os funcionários de supermercados usavam uma famigerada maquininha etiquetadora para alterar os preços das mercadorias diariamente.

(Sobre)vivo ao massacre midiático (e histeria "moral" coletiva) atual que, a todo custo quer me convencer, sem sucesso, que vivo num país à beira do caos e da banca rota.  
Enquanto os tubarões se engolem, as piabas (os trabalhadores) e o trabalho seguem.

O Brasil é maior que o buraco e que os seus predadores. Apesar da praga (sempre condenável) de ordem moral e ética que nos assola (e desde sempre nos assolou), os cidadãos de bem são em maior número e sobreviverão a mais esta turbulência.

Toda esta minha digressão é para, nestes nossos tempos de "apocalipse", com toda a gente fazendo uso de jargões do economês e à beira de um ataque de nervos, recomendar que, serena e atentamente, se assista este expressivo trabalhador brasileiro que discorre, com muita propriedade e conhecimento de causa, sobre a sua realidade dentro da maior empresa de petróleo do mundo (sim, é brasileira, produz, dá lucro e começa com P). Afianço que vale a pena perder/ganhar os 10 minutinhos.


Trabalhador da Petrobras defende a empresa | Conversa Afiada

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Mini-fábula dos dias que passam ou Biologia, literatura, história e política, matérias necessárias para entender o Brasil,

Mini-fábula dos dias que passam ou
Biologia, literatura, história e política, matérias necessárias para entender o Brasil,

"Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são." Mário de Andrade, 1893-1945 (in Macunaíma - 1928)

Saúva: designação comum a formigas (há cerca de 200 espécies no Brasil). Conhecidas como cortadeiras e carregadeiras, alimentam-se dos fungos criados pelos folhas que carregam. Uma das nossas maiores pragas agrícolas, dizem os dicionários

"Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil" A. Saint Hilaire,  naturalista,1779-1853.

Em pleno Século XXI, o Brasil, posso assegurar, não acabou com elas, mas também não se acabou, nem acabará.

Assim ocorre com as chamadas saúvas humanas, cortam e carregam, cortam e carregam, sem que os donos ou cuidadores das "folhas verdes" o percebam. Quando menos se espera os "fungos" cobrem o que não deviam e é aquela gritaria. Gritam todos e, nessa confusão, não se sabe quem é saúva nem quem não é.
Há centenas de espécies delas e habitam estas terras desde o Império. Sim, não apareceram agora, abundam em todos os canteiros, são predatórias e não há inseticida que dê jeito.
Para nossa mínima esperança, o Brasil é sempre (tem sido) maior que o buraco que nossa maior praga cava. São muitas, mas sempre haverá quem as combata. 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

11 anos sem Hilda



"Não me procures ali./ Onde os vivos visitam / Os chamados mortos. (...) Pedra, semente, sal / Passos da vida. Procura-me ali. / Viva.”

Hoje, nos 11 anos da morte da poeta Hilda Hilst, quero lembrá-la assim, viva. Lembrá-la significa ler a sua obra, que aí está, cada vez mais prestigiada, na contramão de suas costumeiras queixas de que não tinha leitores.
Como se sabe, o tema da morte é recorrente em sua obra (“um poeta não sabe montar a morte ainda que seja a minha”). Alimentada de sol, HH cantava a morte, mas a temia (confessava). Cantava para dela fugir, sem se familiarizar com seu galope.
Vou seguir lendo sua poesia, a melhor maneira de homenageá-la.