domingo, 3 de dezembro de 2017

Duda, o operário letrado - saudade


Estive esta tarde no Cemitério da Saudade, na Vila Assunção, primeiro bairro em Santo André onde residi por nove anos. Naquele cemitério repousam inúmeras personalidades, políticas (como Celso Daniel e uma dezena de outros Prefeitos e políticos de destaque na região do ABC) e artísticas, como Luiz Sacilotto (que, para meu espanto, não consta da galeria de “ilustres” na entrada do local).

Hoje, dia 02 de dezembro de 2017, um domingo nublado, o local acolheu mais um ilustre cidadão, José Duda Costa, chamado por nós, o povo da cultura e da memória, simples e carinhosamente por Duda.


A minha parcela de ativismo cultural deu-me canseiras, contrariedades, mas muitas alegrias. Dentre elas, a felicidade de conviver com pessoas especiais, gente que se destacou por sua singularidade, jamais por celebridade ou fatos midiáticos, muito menos por qualquer espécie de cargo ou poder. Duda foi uma dessas figuras que admirei e tive a honra de receber sua amizade por três décadas.

Foi um homem simples, mas não dessa “simplicidade” que comporta alienação, desconhecimento. Não frequentou escolas superiores, desconfio que apenas as primeiras letras, mas era um grande leitor, o que o diferenciava enormemente.  Lia e decifrava, porque a sede do conhecimento e da participação social o movia. Fez parte de uma geração de operários letrados, engajados, participantes, proponentes e, naturalmente, memorialistas. Desse grupo de “operário padrão” (não naquele enquadramento do “padrão” imposto pelo patrão, mas no da demanda da própria classe trabalhadora, do qual faziam  parte  (e com eles tive a honra de conviver e prezar de amizade), o Philadelpho Braz (hors concours) e muitos outros que já nos deixaram. Alguns deles, temos ainda a sorte de conviver como João de Deus e Alberto Braz (irmão gêmeo de Philadelpho).

A biografia singela de Duda pouco diz do homem que a protagonizou. Nascido em Garanhuns, PE, em 1934, filho de um lavrador que possuía um armazém de secos e molhados (aqui, minha identificação de origens imediatamente assimilada).  Órfão em tenra idade, aos 11 anos, foi para Recife morar com uma irmã casada, onde trabalhou como mecânico. Em 1948, como tantos seus conterrâneos, veio para São Paulo, uma viagem épica, no chamado “pau de arara”,  aventura que ele contava sempre com muita graça. Aqui, veio trabalhar em Santo André, onde teve inúmeros empregos (Fábrica de Doces, cobrador em empresa de ônibus, garçom, cozinheiro e, finalmente, com a vinda das grandes indústrias, operário metalúrgico no então nascente e fervilhante mercado de trabalho (trabalhou na International Harvestes Máquinas, General Eletric e Volkswagen). Tinha conhecimentos de desenho mecânico e fez carreira exitosa nessas empresas. Na Volkswagen, onde trabalhou por 18 anos até sua aposentadoria, foi inspetor de Qualidade do Departamento de Prensas.

Conheci Duda nos primórdios do GIPEM – Grupo Pesquisadores da Memória, fins da década de 80, contato que foi aprofundado na preparação do I Congresso de História do ABC, realizado em 1990 com a inauguração do Museu de Santo André. Sua prosa fácil e bem humorada, recheada de boas histórias era isca fácil à amizade. Foi um frequentador assíduo da Livraria Alpharrabio, participando com muita propriedade das atividades ali realizadas.

A partir daí, eu e muitos outros amigos (muitos dos quais compareceram hoje ao seu sepultamento) nos acostumamos à presença de Duda em todos (sim, TODOS) os movimentos em pról da Memória e preservação do Patrimônio Cultural e Arquitetônico, assim como em todos os 14 Congressos de História do ABC, dos quais participou não só na organização, mas como debatedor, depoente, incentivador e entusiasmado partícipe. 




O último deles, já muito debilitado, em Rio Grande da Serra, há pouco mais de 20 dias. Foi conduzido até ali pelo amigo João de Deus que o acarinhou com desvelo durante todo aquele segundo dia do Congresso. Mostrava-se feliz o nosso Duda, estava entre as pessoas que falavam a sua língua, a língua fraterna da memória. Foi sua última aparição pública. A sua presença foi verdadeiramente grata e saudade por todos que ali estavam. 

Viveu lindamente os seus 83 anos. Deixa uma linda família, composta pela Dona Glória, com quem casou há 60 anos, seis filhos, netos e bisnetos. Deixa também um espólio composto por objetos responsáveis por seu conhecimento enciclopédico sobre música popular e clássica (milhares de fitas K7, LPs, CDs), livros sobre os mais diversos assuntos de seu interesse, em especial, biografias. coleções das quais muito se orgulhava e gostava de mostrar aos amigos que o visitavam, recebidos com bolo e chá de maracujá de Dona Glória. Sim, ele também gostava muito de ler poesia e fazia versos para todas as ocasiões. Deixa, sobretudo, a memória inesquecível de sua presença como cidadão participante da vida de sua cidade e de sua região. 






Duda vive. Viva Duda!

4 comentários:

  1. Muito Obrigada pelo carinho com nosso eterno e já saudoso Duda.

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  2. Belo texto deste grande homem. Sinto um enorme orgulho e gratidão, de ser um dos seis filhos, deste que foi meu pai, meu amigo, meu professor e guru intelectual. Meu porto seguro onde sempre encontrava uma resposta para minhas dúvidas. De hoje em diante seguirei em frente pelo caminho que ele me ensinou com toda sua sabedoria.
    Muito obrigado Dalila Teles Veras pela linda homenagem.
    Gilberto Duda da Costa (GIBA).

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  3. Puxa que coisa gostosa de ser lida de uma pessoa tão especial...
    Seu Duda merecia ter tido como está pessoa que foi ...como todo ser humano ter sido tratado com dignidade em seus últimos dias internado nas Upas da memória mais recente desta cidade...deste país...o sistema público...o judiciário não foi digno com ele...
    Que sua vida e sua morte não seja esquecida e se lute por mais dignidade a pessoas como ele e que foram ouvidas através dele...
    Duda que sua vida e seu sofrimento nos últimos dias não seja em vão.

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  4. Pungente, cara Dalila, e fiel à imagem que ele nos passava. Belo e alentador texto.

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