quinta-feira, 24 de abril de 2025

Da Poesia e das Mulheres de Abril

 Ano passado, fui convidada por Violante Saramago Matos, organizadora do livro 50 anos 50 vozes 50 mulheres a colaborar com esse magnífico projeto literário que então celebrava os 50 anos da Chamada Revolução dos Cravos em Portugal, minha terra natal. 

Nos 51 anos da linda Revolução, deixo aqui o meu testemunho de como vivi esse momento, mesmo à distância. 

 

Da Poesia e das Mulheres de Abril


 



 

Os cravos de Abril, com seu belo simbolismo, cravaram em mim a certeza da necessidade de manter a utopia e a liberdade. Tinha então vinte e oito anos e, sobre minha mesa de trabalho, lia-se, num pequeno cartaz: “seja realista, exija o impossível”, frase grafitada nos muros da Sorbonne em 1968, durante as ocupações estudantis.

Antes, bem antes de 68 e 74, a dura lição na quebra do meu analfabetismo político, veio em 1964, num outro abril ao avesso, quando, por um Golpe, era instaurada a brutal Ditadura Militar no Brasil que duraria 21 anos. 

Em 1974, vivíamos no Brasil o auge da popularidade do regime totalitário, aplaudida pelos “inocentes úteis” que acreditavam no enfático discurso do desenvolvimentismo e de um suposto “milagre econômico”.

Entretanto, no lado consciente, grassava o medo e as incertezas dos que sabiam e sentiam no próprio corpo o valor a ser pago pelas próprias utopias. Essas poderosas garras peçonhentas, entre outras trágicas medidas, suprimiram toda e qualquer liberdade de expressão.

Assim, jornais sob censura, o 25 de Abril chegou por aqui de forma quase clandestina, em pedaços e aos solavancos. Não interessava ao regime militar e suas diretrizes de guerra suja, silenciosa e assassina, divulgar a conquista portuguesa na derrubada do igualmente autoritarismo fascista.  

graduada na matéria através da própria vivência, aprofundei meu aprendizado político com os relatos de amigos mais bem in(formados), bem como nos livros proibidos à época. Daí minha curiosidade e interesse crescente sobre a situação em Portugal, país de minha naturalidade, então renascido.

Aflita pela falta de notícias, lá fui eu atravessar o Atlântico, ao lado de Valdecirio, meu mestre em política, com quem havia casado em 1972.

            Em 1º de julho de 1974 desembarcávamos em Lisboa. Íamos, eu e ele, conferir e, se possível, partilhar da euforia vigente naquele novo Portugal que, decorridos dois meses, ainda festejava a Revolução.

Aqui e ali, símbolos de Abril, a lembrar:

um soldado no aeroporto com um cravo vermelho em sua arma, tal qual no famoso pôster com a foto de um menino de cabelos anelados a colocar um cravo no fuzil do soldado, adquirido dias depois na Baixa Pombalina;

já no táxi, “Grândola, Vila Morena" a servir de trilha sonora, o motorista: - “Depois de 50 anos, desatamos a língua, ninguém mais nos proíbe nada. Somos livres!”. No dia de retorno ao Brasil, esse mesmo taxista nos levaria a sua casa (para não esperarmos tanto tempo no aeroporto, justificava ele) a comer tremoços e figos, com vinho da propriedade de sua família do Norte.

Lembro-me de ter rascunhado um poema, meio desengonçado pela emoção, que evocava Camões e terminava dizendo algo assim:

“apenas o sangue a rugir

                rubro lembrete

mais do que nunca hoje é dia

de sentir-se português”.

Faltou-me a total vivência dos acontecimentos. Ficou-me a convicção do caminho da luta e manutenção da utopia pela vida afora.

Aprendi sobre o 25 de Abril após o 25 de abril e ainda aprendo. Lendo aqui, escutando ali.

Todavia, sempre me perguntava sobre qual teria sido o papel das mulheres naquele processo. A única figura feminina destacada pelas eventuais matérias na imprensa (ao menos nas que chegaram ao meu conhecimento) era a de Celeste Martins Caeiro que, por um bom tempo, era apontada como “a mulher que ofertou cravos aos soldados”, criadora involuntária (?) do famoso símbolo, mas sequer possuía nome. A multidão que se formara nas ruas de Lisboa, seguiu-lhe o gesto. A multiplicação instantânea do acontecimento, em tempos virtuais, seria chamado de “viralização”.

Na poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen, destacada escritora, conhecida também como figura política com participação ativa no processo de redemocratização, foi talvez a voz daquele instante revolucionário, a voz poderosa da palavra de uma mulher. São dela os quatro versos famosos e definitivos sobre (“25 DE ABRIL / Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”. Outros tantos e belos poemas sobre o assunto, escritos em 1974 e 1975, foram reunidos em seu livro O Nome das Coisas, 1977, mas por aqui chegado muito depois. Eram tempos separados pelo grande mar que ela tanto cantou. 

Maria Teresa Horta que, dois anos antes, havia sido processada e condenada pelo conteúdo de seu livro Minha Senhora de Mim, foi outra grande voz que seguiu publicando e, através da militância feminista permanente, muito provocou com suas ardentes palavras. Além do seu explícito As Mulheres de abril, publicado em 1976, recentemente surpreendeu seus leitores nas redes sociais. Ao lembrar a data da Revolução dos Cravos, divulgou um poema inédito datado de 27 de abril de 1974 (“25 DE ABRIL / Dantes / era um silêncio imenso / de grito amordaçado / Hoje / há uma festa à nossa beira / fazendo a liberdade /florescer em cravo // Mudando o sonho / em vida / e canto alado”.

            Mesmo com algumas conquistas, as mulheres seguiram invisibilizadas, lá, aqui e em todo lado, até mesmo aquelas que ao lado dos capitães caminhavam, como nos revela a escritora e cineasta Ana Sofia Fonseca, em seu livro “Capitãs de Abril”, publicado em 2014, 40 anos depois. Nessa obra, a escritora dá voz às mulheres e sua respectiva visão revolucionária. Sim, as mulheres estavam lá e foram elas que, posteriormente, muito contaram, como o fez Ana Sofia. Ainda que lentamente, os véus da invisibilidade feminina vão sendo retirados.

            Encerro meu depoimento, voltando àquela Lisboa de 1974. Para nós, que nos preparávamos para retornar à desesperançada realidade brasileira, que ainda duraria mais uma década, compartilhar daquela alegria esperançada representou um momento único e inesquecível.

 

Dalila Teles Veras


2 comentários:

  1. Gostei imenso desta tua participação no referido projeto, Dalila! Só tenho a agradecer por este compartilhar, que me fez viajar no tempo a identificar-me com muitas das passagens e imagens que relatas. A imagem dos cravos cravando em ti a certeza da necessidade de manter a utopia e a liberdade me calou profundamente - acabo de lançar meu livrinho de bolsa da V coleção Mulherio das Letras/Venas Abiertas intitulado Antes que a utopia acabe. De repente me (re)vi em Cabo Verde a pesquisar sobre minha origem, emocionada por estar pisando (saboreando, como disseste) naquele solo de lutas por independências na África! Sim, não fomos os sujeitos históricos de lá, mas fomos os de cá! O contexto histórico mundial se refletiu aqui nas nossas vivências de Educação Popular e o que não nos faltavam eram utopias. No livrinho, conto justamente a história de um jovem casal recém formado que parte para um sonho transformador na zona rural em plenos anos de chumbo. Assim como tu, fiquei eu também com a convicção do caminho da luta e manutenção da utopia pela vida. Ou pelo menos, de um estado
    de utopia.

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  2. Emocionante Dalilla. Mmorava na Fraça e fomos um.bando grade de brasileiros.tmbém.tinha Ze Celso encenando Oswal de Andrade em quarteis de Lisboa e pelo chiado muitos recém chegados da guerra colonial davsm publicamente seus depoimentos de seus sogrimentos ainda vesydos a carayer, carabina em.mãos. Choravam e para paravam de falar; uma catarse publica todos choravam e ao meu tempo era um grande regozijo. Foi um.momento muito incrincrivel. Um.dos mais belos que eu vivi💗

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