sexta-feira, 8 de abril de 2016

Para Semíramis Corrêa, em forma de despedida

Ontem, abril 07, quarta-feira, Outono com luz e temperatura de Verão: a notícia da morte anunciada cortou a tarde ao meio, raio indejado. Semiramis, a amiga Semiramis Corrêa morreu.

No mesmo momento, o retorno há 23 anos, maio de 1993. Santo André vivenciava uma cultura do desmanche. Após uma gestão progressista na cultura, Governo Celso Daniel, o recém-empossado Prefeito Newton Brandão, simplesmente “desmancha” tudo que fora construído na gestão anterior (Casa da Palavra, Casa do Olhar e outros importantes espaços da cidade). Um Grupo de cerca de 100 pessoas, produtores culturais, artistas, intelectuais, resolvem se manifestar com atividades de rua que culminaram com a realização do Seminário Cidadania & Cultura.  Convidados como José Mindlin, Teixeira Coelho, ......, aceitaram o convite para e o Seminário transformou-se num verdadeiro acontecimento cultural. A cidade de Santo André mostrava que não mais aceitava a velha política do clientelismo que Celso Daniel havia derrubado e que insistia em se reinstalar na cidade, retomando velhas e mofadas práticas de compadrio.

Numa dessas manifestações, um sarau no calçadão da Rua Oliveira Lima comandado pelo poeta Artur Gomes,  chamou minha atenção (e de outras pessoas) a presença entusiasmada de  uma senhora de cabelos tingidos de vermelho que entra na ciranda, recitando poemas e proferindo palavras de ordem. Não tive dúvidas, entreguei a ela um cartão da Livraria Alpharrabio, dizendo que ali era um lugar em que ela se sentiria em casa.

Logo no sábado seguinte, Semiramis Corrêa comparece à livraria e a todos cativa com sua contagiante simpatia.




Falante, bem disposta, alegre. Cinéfila e leitora voraz desejosa de compartilhar suas leituras. Já havia lido e relido por incontáveis vezes os 7 volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, assim como  todos os franceses do XIX. Fora casada com um português e era evidente o seu fascínio pela cultura portuguesa, acentuado após ter percorrido Portugal com toda a família durante um longo período. Leu Eça de Queiroz, Torga, Saramago, Pessoa e tantos. Quando me falou que era apaixonada por Fado e Amália Rodrigues, em especial, estabeleceu-se o elo de amizade que percorreu os últimos 23 anos. Convívio estreito que nos revelou um ser humano ímpar, de bem com a vida e com os seres humanos ao seu redor. Celebrava a vida diariamente com um bom humor raro, sacadas inteligentes.

Trouxe uma “alpha” de primeira hora, que “vestia” a camisa do Alpharrabio e ali “batia ponto” todas as sextas-feiras e sábados. A certa altura nos revelou que possuía uma pequena gaveta de guardados, poeta e cronista bissexta. Trouxe alguns originais e Luzia Maninha os enfeixou num volumezinho da coleção micro, denominado “o uivo da loba”, do qual transcrevo os 3 poemas abaixo.  


Fragmento de felicidade

Tarde.
Silêncio quebrado
Por um fado de Amália
Café quente
Sabor de gergelim.

Naquele tempo um trem atravessava o escuro da madrugada. Sempre dentro do horário, seu apito longo era tão fatal como o dia que viria. A pequena cidade dormia mansa enquanto ele passava, apitando, apitando. Entre os muros brancos do cemitério os mortos se ajeitavam felizes.


Eu tinha uma capa de chuva ampla como uma barraca. Ela era azul-claro nos ombros, descia escurecendo até tornar-se plúmbea. Caía solta em torno de meu jovem corpo magro, parecendo sempre que eu me molhava naquelas águas rápidas que o verão forjava.





Uma pena não ter se dedicado com mais afinco à poesia. Preferiu viver e celebrar.

Ao voltar de seu sepultamento, hoje pela manhã, pensei que a melhor maneira de homenageá-la seria tomar uma cerveja, bebida que ela tanto gostava ou, melhor, um Porto de honra, porque eu prefiro e ela igualmente o apreciava. É o que farei agora à noite, quando o corpo estará um pouco menos doído pelo choque da despedida. Bem haja! querida e inesquecível Semiramis. R.I.P. (dalila teles veras)



12 comentários:

  1. Rosângela Vieira Rocha8 de abril de 2016 às 14:08

    Que boniteza de homenagem, Dalila. Pude conhecer um pouco de Semiramis e de quase "tocar" a sua verve. Lamento muito esta perda. Mas, vivaz como era, sei que Semiramis preferiria que celebrássemos a sua vida. Um beijo.

    ResponderExcluir
  2. Cara amiga Dalila.
    Que tributo supimpa e enternecedor!
    Ela partiu e deixou marcas indeléveis entre nós.
    Enquanto isto continuamos a espera de Godot...
    Caloroso abraço. Saudações conpungidas.
    Até breve...
    João Paulo de Oliveira
    Um ser vivente em busca do conhecimento e do bem viver sem véus, sem ranços, com muita imaginação, autenticidade e gozo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. PS - Onde se lê conpungidas leia-se compungidas.

      Excluir
    2. Obrigada, caro amigo João Paulo. Sim, Continuemos... Abraço

      Excluir
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  4. Quem amamos, quando parte, sempre será a parte ausente de nós.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. obrigada, caro Toninho. Isso mesmo.

      Excluir
  5. Pessoas como Semiramis ficam para sempre em nossas memórias e alimentam a vida

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, Constança. Pessoa inesquecível mesmo

      Excluir
  6. Dalila, querida. agradeço pelo registro verdadeiro e comovente e por tudo. tomei a liberdade de transcrevê-lo junto ao link do seu blog ali em minha página do face. tomo suas palavras de poeta para dizer a todos quem ela foi. abraço, amizade e gratidão eterna.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não há o que agradecer, Patrícia. Esta é a melhor forma que encontro e posso para afagar os que amo (os que ainda estão aqui e os que se vão). Talvez uma espécie de "oração".

      Excluir
  7. Disse tudo, Dalila. Semíramis sempre foi vida (continua a ser). Isso percebi logo da primeira vez em que conversei com ela aí no Alpha.

    ResponderExcluir