Ontem, abril 07, quarta-feira, Outono com luz e temperatura de Verão: a notícia da morte anunciada cortou a tarde ao meio, raio indejado.
Semiramis, a amiga Semiramis Corrêa morreu.
No mesmo momento, o retorno há 23 anos, maio de 1993. Santo
André vivenciava uma cultura do desmanche. Após uma gestão progressista na
cultura, Governo Celso Daniel, o recém-empossado Prefeito Newton Brandão,
simplesmente “desmancha” tudo que fora construído na gestão anterior (Casa da
Palavra, Casa do Olhar e outros importantes espaços da cidade). Um Grupo de cerca
de 100 pessoas, produtores culturais, artistas, intelectuais, resolvem se
manifestar com atividades de rua que culminaram com a realização do Seminário Cidadania
& Cultura. Convidados como José
Mindlin, Teixeira Coelho, ......, aceitaram o convite para e o Seminário
transformou-se num verdadeiro acontecimento cultural. A cidade de Santo André
mostrava que não mais aceitava a velha política do clientelismo que Celso
Daniel havia derrubado e que insistia em se reinstalar na cidade, retomando velhas
e mofadas práticas de compadrio.
Numa dessas manifestações, um sarau no calçadão da Rua
Oliveira Lima comandado pelo poeta Artur Gomes, chamou minha atenção (e de outras pessoas) a
presença entusiasmada de uma senhora de
cabelos tingidos de vermelho que entra na ciranda, recitando poemas e
proferindo palavras de ordem. Não tive dúvidas, entreguei a ela um cartão da
Livraria Alpharrabio, dizendo que ali era um lugar em que ela se sentiria em
casa.
Logo no sábado seguinte, Semiramis Corrêa comparece à livraria
e a todos cativa com sua contagiante simpatia.
Falante, bem disposta, alegre. Cinéfila
e leitora voraz desejosa de compartilhar suas leituras. Já havia lido e relido
por incontáveis vezes os 7 volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust,
assim como todos os franceses do XIX.
Fora casada com um português e era evidente o seu fascínio pela cultura
portuguesa, acentuado após ter percorrido Portugal com toda a família durante
um longo período. Leu Eça de Queiroz, Torga, Saramago, Pessoa e tantos. Quando
me falou que era apaixonada por Fado e Amália Rodrigues, em especial,
estabeleceu-se o elo de amizade que percorreu os últimos 23 anos. Convívio
estreito que nos revelou um ser humano ímpar, de bem com a vida e com os seres
humanos ao seu redor. Celebrava a vida diariamente com um bom humor raro,
sacadas inteligentes.
Trouxe uma “alpha” de primeira hora, que “vestia” a camisa
do Alpharrabio e ali “batia ponto” todas as sextas-feiras e sábados. A certa
altura nos revelou que possuía uma pequena gaveta de guardados, poeta e cronista
bissexta. Trouxe alguns originais e Luzia Maninha os enfeixou num volumezinho
da coleção micro, denominado “o uivo da loba”, do qual transcrevo os 3 poemas
abaixo.
Fragmento de felicidade
Tarde.
Silêncio quebrado
Por um fado de Amália
Café quente
Sabor de gergelim.
Naquele tempo um trem atravessava o escuro da madrugada. Sempre dentro do horário, seu apito longo era tão fatal como o dia que viria. A pequena cidade dormia mansa enquanto ele passava, apitando, apitando. Entre os muros brancos do cemitério os mortos se ajeitavam felizes.
Eu tinha uma capa de chuva ampla como uma barraca. Ela era azul-claro nos ombros, descia escurecendo até tornar-se plúmbea. Caía solta em torno de meu jovem corpo magro, parecendo sempre que eu me molhava naquelas águas rápidas que o verão forjava.
Uma pena não ter se dedicado com mais afinco à poesia.
Preferiu viver e celebrar.
Ao voltar de seu sepultamento, hoje pela manhã, pensei que a
melhor maneira de homenageá-la seria tomar uma cerveja, bebida que ela tanto
gostava ou, melhor, um Porto de honra, porque eu prefiro e ela igualmente o
apreciava. É o que farei agora à noite, quando o corpo estará um pouco menos
doído pelo choque da despedida. Bem haja! querida e inesquecível Semiramis.
R.I.P. (dalila teles veras)
Que boniteza de homenagem, Dalila. Pude conhecer um pouco de Semiramis e de quase "tocar" a sua verve. Lamento muito esta perda. Mas, vivaz como era, sei que Semiramis preferiria que celebrássemos a sua vida. Um beijo.
ResponderExcluirCara amiga Dalila.
ResponderExcluirQue tributo supimpa e enternecedor!
Ela partiu e deixou marcas indeléveis entre nós.
Enquanto isto continuamos a espera de Godot...
Caloroso abraço. Saudações conpungidas.
Até breve...
João Paulo de Oliveira
Um ser vivente em busca do conhecimento e do bem viver sem véus, sem ranços, com muita imaginação, autenticidade e gozo.
PS - Onde se lê conpungidas leia-se compungidas.
ExcluirObrigada, caro amigo João Paulo. Sim, Continuemos... Abraço
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQuem amamos, quando parte, sempre será a parte ausente de nós.
ResponderExcluirobrigada, caro Toninho. Isso mesmo.
ExcluirPessoas como Semiramis ficam para sempre em nossas memórias e alimentam a vida
ResponderExcluirSim, Constança. Pessoa inesquecível mesmo
ExcluirDalila, querida. agradeço pelo registro verdadeiro e comovente e por tudo. tomei a liberdade de transcrevê-lo junto ao link do seu blog ali em minha página do face. tomo suas palavras de poeta para dizer a todos quem ela foi. abraço, amizade e gratidão eterna.
ResponderExcluirNão há o que agradecer, Patrícia. Esta é a melhor forma que encontro e posso para afagar os que amo (os que ainda estão aqui e os que se vão). Talvez uma espécie de "oração".
ExcluirDisse tudo, Dalila. Semíramis sempre foi vida (continua a ser). Isso percebi logo da primeira vez em que conversei com ela aí no Alpha.
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