Breve depoimento, em forma de homenagem à Sra. Marisa
Letícia
Vim para o
ABC em 1967, trabalhar no setor administrativo de uma indústria multinacional
de auto-peças, em São Bernardo do Campo. Ali, encontrei a possibilidade de
ouvir (e, sobretudo, analisar) simultaneamente os discursos dos chamados
“capitães da indústria”, meus patrões e os dos “Peões do ABC”, os que
trabalhavam no chão da fábrica. Entre ambos, eu, menina analfabeta política ou
politicamente equivocada que, por força do (bom) salário, tinha por obrigação
“vestir a camisa” da empresa, valendo-me de um discurso que, obviamente, não
era o meu.
Na virada
dos anos 70 para os 80, O ABC demonstra uma grande capacidade de mobilização
popular. A luta nas ruas estende-se também para os movimentos grevistas da
indústria metalúrgica, alcançando conquistas de direitos trabalhistas de há
muito sonhados que viria culminar na conquista da redemocratização brasileira
em 1985.
Aquela
agudíssima consciência dos peões do ABC que lotavam o estádio da Vila Euclides,
carregando seu líder nos ombros, despertou a minha consciência social,
consciência política, de classes.
É preciso
sublinhar o importante papel das mulheres em todo esse período, em especial nas
longas, exaustivas e desgastantes greves. Mulheres, que foram à luta em pé de
igualdade com os homens, mulheres que lutaram por creches e outros direitos,
mulheres que, juntas, e em seus múltiplos e estratégicos papéis, sustentaram de
forma decisiva a manutenção das greves, tanto na resistência quanto na
retaguarda das lutas. Mulheres que a
história tentou silenciar, mas não conseguiu e que estão recontando sua
história nos últimos anos, através de pesquisas, depoimentos, livros,
Congressos, Encontros e Seminários.
Ainda
assim, há todo um caminho por trilhar no sentido de resgatar o papel histórico
da mulher. Lembro do meu querido e saudoso amigo Antonio Possidonio Sampaio (ao
lado do meu marido Valdecirio, meus mestres nessa matéria de lutas e
conscientização) que me dizia que era precisa incentivar o estudo da história
dessas mulheres.
A Sra.
Marisa Letícia Lula da Silva, nascida Marisa Letícia Rocco Casa, de família de
imigrantes italianos que veio para São Bernardo do Campo, SP, e deu nome ao
bairro onde ela nasceu, “Bairro dos Casa”, foi uma dessas mulheres. É preciso
sublinhar aqui que Marisa não foi uma mera dona de casa (ainda que o fosse
também e com todo o respeito às donas de casa), mas uma militante política e
sindical. Inesquecível a Marcha pela libertação dos sindicalistas, organizada
por ela em SBC. Milhares de mulheres caminhavam ao lado de tanques, cavalaria,
soldados fortemente armados. A praça da Matriz em SBC, transformada em
verdadeiro campo de guerra. Por cima, helicópteros vigiavam seus passos. Não se
intimidaram, seguiram.
Casada com um líder inconteste, de projeção
internacional, que chegou à Presidência da República e foi reeleito com uma
então popularidade jamais vista por aqui, a Sra. Marisa Letícia tinha que ficar
(ou foi obrigada a ficar), por conta do papel histórico que a prática da
política e do poder sempre reservaram às mulheres, ou seja, na sombra. Ainda
que na sombra (será?), foi força, conselho, esteio e jamais se prestou a nenhum
papel decorativo. Foi o que foi, uma mulher digna e forte. Neste breve
depoimento público, deixo a ela minha sincera e sentida homenagem.
Nestes
tempos, novamente tristes e sombrios, mas sem a mesma capacidade de luta e
muito menos de consciência política e social, vejo, com grande pesar, as
odiosas, machistas e misóginas manifestações que achei não tivessem mais lugar
em plena segunda década do Século XXI. E fico triste de não ter jeito.
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