A propósito do ato arbitrário,
voluntarioso e descabido do recém-empossado prefeito de São Paulo, ou seja, o
apagamento de um mural grafitado na av. 23 de Maio, o maior mural desse tipo na
América Latina, reproduzo aqui um texto
que escrevi já há algum tempo para o blog do grafiteiro Vado do Cachimbo e que poderá eventualmente
contribuir como reflexão diante da polêmica que esse gesto de desprezo não só
pelos artistas, mas, sobretudo, pela história da cidade provocou.
muro externo da Livraria Alpharrabio (Santo André, SP) grafitado por Vado do Cachimbo, em 2012. |
IMAGEM TATUADA NA PAISAGEM URBANA
E NO ESPAÇO VIRTUAL
Dalila
Teles Veras
“Imagem
tatuada” foi um feliz termo cunhado por Baudrillard para definir o fenômeno da
arte do grafite, já agora objeto de estudos acadêmicos e vasta documentação
mundo afora.
O fato é
que a arte de pintar muros com arte, “Arte conceitual involuntária” ou “arte”
mínima” (1) e tantos outros rótulos que viria a receber, surgiu justamente para
desmontar alguns conceitos, inclusive, o de ampliar o próprio conceito de
suporte (seria um não-conceito?) da cidade como moldura , uma não-arte ou,
ainda, a arte de volta às suas próprias origens (das raízes nas paredes das
cavernas e junto à comunidade).
Tirando-se
a história antiga do grafite, que se confunde com muralismo, cujos registros
conhecidos vêm lá da Grécia antiga e de Pompéia, o começo daquilo que poderia
ser classificado como movimento de grafite no Século XX, teve suas raízes
plantadas no grafite-mensagem, ou caligrafite, a idéia sem preocupação com a
forma, ou seja, a mensagem filosófica, nos muros da Sorbonne (“Seja realista:
exija o impossível”, por exemplo) em 1968. A sua repercussão, está claro, foi
planetária. Migrou, poucos anos depois, para o metrô de N.Y., também resultando
das grandes tensões sociais e étnicas, mas assimilando as cores locais e
assumindo outras características. (“Os
grafites são uma expressão de um gueto que está próximo da catástrofe posto que
a civilização é mantida presentemente hostil ao gueto”, segundo Norman Mailer)
(2).
No Brasil, não foi diferente. Ainda em 1968,
timidamente (não podemos nos esquecer que eram esses anos de chumbo em nosso
país) os estudantes usam os muros da Rua Maria Antônia e da zona urbana da
cidade, como meio para mensagens de cunho político, quase cifradas. O
caligrafite viria mesmo eclodir por aqui bem mais tarde, lá pelo final dos anos
70, não só com palavras de ordem
política contra a ditadura, mas também com recados amorosos, provérbios bem
humorados, compondo um verdadeiro balaio mural.
Como
sempre, a imensa capacidade do brasileiro em amalgamar culturas: o muro como
suporte e objeto de protesto, assimilando a forma-mensagem francesa e a
forma-plástica americana. Walter Silveira, o pioneiro, viu o seu emblemático
ideograma verbal HENDRIX/MANDRAKE/MANDRIX, em 1978 (3) causar interesse de
vários periódicos que o publicaram e, logo depois, uma legião de seguidores a
fazer uso do muro para a sua manifestação poética (em geral, amorosa).
Nessa
fase jurássica brasileira, a prática não distinguia grafite de pichação, esta
última sempre vista com uma carga negativa e pejorativa de “vandalismo”, “emporcalhamento”
e de “poluição visual”. Há estudiosos, entretanto, que não fazem distinção
entre ambos e fazem questão de usar o termo “grafito” ao se referirem a essas
manifestações nos muros, sejam elas com letras, palavras, ou desenhos. Vale,
aqui, o suporte, independentemente do conteúdo da mensagem.
Prevalece,
no entanto, na sua imensa maioria, o termo pichação para expressões de pessoas
sem formação artística e que se valem dessa maneira de protesto para, simplesmente,
deixar o seu próprio nome, ou de seu grupo registrado, com o único propósito de
demarcar território ou até por simples ânsias de identidade.
Da pichação ao chamado grafite
universitário, praticado no começo dos anos 80 por estudantes de artes ou arquitetura,
cujo pioneirismo em São Paulo é creditado a Alex Vallauri, dá-se um salto não
só estético como também de conteúdo social. Faz escola, ganha admiradores e
rivais.
É
nesse efervescente contexto que, vindo do Grande ABC, chega à Capital, Edvaldo
Luiz Alvares, ou simplesmente o Vado, ou ainda Vado do Cachimbo, como é
conhecido artisticamente, com ânsias de colorir o mundo.
Diversamente
da maioria dos grafiteiros mais notáveis da época que, em atitude de
dessacralização da arte, saíam das galerias para as ruas, Vado constrói um
caminho inverso, partindo das ruas e de uma arte solitária e primitiva para as
galerias. Antes, quando conhece Maurício Villaça e passa a integrar o grupo Art
Brut, Vado já ia além dos desenhos ready-made, praticados pelos grupos
paulistas nos muros da cidade e criava seus próprios personagens. A partir de
Catiana, surgida desde o início de sua carreira, quando era tido pela crítica
como primitivista e ganhava prêmios nessa categoria, ele vinha trabalhando com
bonecos-personagens.
Esse
trabalho personalíssimo chama a atenção de Alex Vallauri que o convida a
colaborar com seu grupo. É quando Vado passa a utilizar-se de máscaras,
ferramentas próprias do grafite, bem como a sofisticar e aprimorar
esteticamente essa galeria de personagens que ele veio a denominar de “família
dos ACs”, desenhos que ele continuou apurando até que esse trabalho ficasse
definido como um estilo que passou a ser a sua marca. “Um conjunto de fantoches
aparentados pela fisionomia e pela silhueta: todos sorridentes, todos
delineados por um cerne preto que apresenta a particularidade de ser
“espinhoso” (...) Todos os ACs têm uma flor na mão, mensagem otimista de amor e
fé na vida. (...) uma linguagem muito pessoal que transcende os meios de
expressão: situando-se entre a caricatura e o grafite.
Vado
inventa um mundo coerente onde a ternura disputa com a crueldade, envolvente
tanto pelas qualidades plásticas e cromáticas quanto pelas conotações evocadas
pelos estranhos homenzinhos” como bem o definiu a crítica de arte e
pesquisadora Josette Balsa, num texto para um catálogo de exposição, em 1985. É
de se notar que as cores desses trabalhos de Vado são de uma alegria
contagiante, imagens carregadas de símbolos, muitos símbolos, pura alegoria e
invenção.
Em
1987, a convite de Vallauri, Vado participa da Bienal Nacional de São Paulo “A
Trama do Gosto” e da primeira grafitagem à luz do dia, no buraco da Av.
Paulista, além da execução do cenário da peça de teatro “A Rainha do Frango
Assado”, criada por Vallauri. Isso o insere no contexto de um grupo de
vanguarda de São Paulo que chama a atenção da mídia e chega a ser capa da
revista Veja e objeto de grandes matérias em outros veículos de grande
circulação. Essa arte que tem como
moldura a própria cidade, a arte noturna e marginal, não só é aceita, como
também é elevada ao status das grandes mostras.
A
arte de pintar muros com arte desmantelou alguns conceitos, inclusive, ampliar
o próprio conceito de suporte (seria um não-conceito?), da cidade como moldura,
uma não-arte ou, ainda, a arte de volta às suas próprias origens (das raízes
nas paredes das cavernas e junto à comunidade).
A
idéia de um projeto para contar a trajetória da obra de Vado através de seus
próprios desenhos e da poesia de poetas convidados não é nova, mas só veio a
ganhar forma recentemente.
Em
1992, convidei o Vado para fazer a capa do número 6 da revista Livrespaço, da
qual eu era uma das editoras, e ele manifestou o desejo de vir a compartilhar
um livro de seus grafites com poetas, um diálogo entre seus desenhos e os
poemas. Achei a idéia fascinante mas o projeto não vingou e nos distanciamos.
Alguns anos depois, torno a reencontrar o Vado e lá volta a idéia do projeto
para, finalmente em 2001, durante uma gravação para o programa Mural do
Artista, comandado por Vado para o Canal 3, TV comunitária da Canbras, surgiu
novamente a pergunta: e o nosso projeto do grafite & poesia? Achei que
estava mais do que na hora de colocá-lo em prática.
Na
verdade, a proposta era que o próprio Vado escrevesse a sua trajetória
artística, uma espécie de Itinerário de
Pasárgada, como fez o poeta Manoel, e que os poetas e as fotos de seus
trabalhos ocupassem as outras páginas do livro. Porém, ele confessou-me que não
levava jeito para isso, que detestava escrever, tinha preguiça. O que ele
queria mesmo era uma intervenção poética nos seus trabalhos de grafite e que,
ao lado das fotos, isso constituísse a sua história artística. Foi então que surgiu a idéia da entrevista,
ou seja, o artista “oralizado” por ele mesmo.
O
entusiasmo desta vez não deixou que o projeto voltasse para a gaveta. Dias
depois, lá estava eu mergulhada no imenso arquivo do artista, com as
incontáveis reportagens publicadas em jornais e revistas de grande circulação
sobre as suas atividades artísticas, além de fotos, convites e catálogos,
material que fui anotando e que me serviu de roteiro para as perguntas que, dia
seguinte, gravador em punho, passei a formular ao artista.
Foram seis horas de gravação e
muitas outras de conversa, anotações, correções. À medida que a entrevista ia
sendo transcrita, era conferida em conjunto com o autor para, novamente,
acrescer novas perguntas.
Todo
esse trabalho foi elaborado de forma bastante prazerosa. As descobertas foram
surgindo, as leituras paralelas para entender esse fenômeno tipicamente urbano
do grafite, arte que foi dos muros para as galerias e bienais e, mais do que
tudo, compreender esse artista singular, primitivo quase, com uma incrível e
visceral capacidade criativa, verdadeiro motor movido a tintas, spray e cores.
Projeto
em caminho, passamos à fase dos convites aos poetas. Foram enviadas cerca de 6
fotos de trabalhos de Vado a cada um dos 11 poetas por mim convidados,
desafiando-os a criar poemas que interferissem e dialogassem com aqueles
trabalhos. Não houve determinação prévia de número de poemas. Assim, poetas
como Milton Andrade, comparecem com apenas um poema e outros, mais pródigos,
criaram vários. A única exceção ficou com Renato Brancatelli que, também
praticante da arte do spray, chegou a cruzar caminhos com Vado, tirou lá do
fundo do baú, dois poemas feitos no calor da hora dos anos 80. Nada mais
adequado. Aliás, Renato Brancatelli foi o último a ser convidado (culpa minha
que não havia lembrado da sua faceta de poeta) mas não deixou por menos,
colocou à minha disposição seu arquivo bibliográfico sobre grafite, inclusive
um trabalho acadêmico de sua autoria, apresentado em 1980, quando cursava o
curso de Belas Artes e no qual ele afirma entender o grafite como uma
continuidade da pintura mural, sobre a qual faz uma grande digressão e muito me
ajudou a compreender alguns aspectos da trajetória dessa arte ainda hoje
considerada marginal.
O
livro está pronto à espera de alguma editora ou de um mecenas que possa bancar
sua edição. Além da entrevista com Vado, 12 vozes poéticas (a minha incluída) a
intervir, penetrar no risco e correr o risco, poetizar com a palavra as imagens
que já nasceram poéticas.
Mais
rápido que a impressão em papel, o meio virtual traz, antes, a obra de Vado a
um público maior e mais atento do que aquele, apressado, que outrora apreciou
seus grafites nos muros da cidade, imagens tatuadas no corpo da cidade e que,
agora, ocupam paredes virtuais, de infinitos caminhos e possibilidades.
Nada
mais justo do que essas homenagens ao artista Edvaldo Luís Alvares, o Vado do
Cachimbo, o poeta da cor e da cidade.
Notas:
(1)
Hermann Waldenburg citado por Célia Maria Antonacci
Ramos in Grafite Pichação & Cia. (Anna Blume, 1994, SP)
(2)
Norman Mailer “la religion des graffiti”, in “graffiti
de New-York”, edição francesa Editions du Chêne, Paris, 1975
(3)
Conforme declaração do próprio poeta a Cristina
Fonseca, publicado no seu livro A Poesia do Acaso (na transversal da cidade),
T. A. Queiroz Editor, SP, 1981
GRAFITOS POÉTICOS
dalila teles veras
CINZENTACIDADE
INCORPORA ARCO-IRIS
SEM EFEITOS PROGRAMADOS
A COR IMPREVÍSIVEL
CIDADETELA
OBRA EM ABERTO
SOMBRAS NOTURNAS
ABRACADABRA
MATINAL TRANSFORMAÇÃO
NO RISCO DO RISCO
RASTRO DE CORES
NA FUGA DO FOGO
O TOM SOBRE TOM
SUSTO ATRÁS DE SUSTO
MÁSCARA MASCARA MÁSCARA
URBANOS RETRATOS EFÊMEROS
MADRUGADA:
ABERTA A CORTINA
O Ó DA CIDADE EM ESPANTO
Belo texto e justa homenagem ao grafite e à poesia, Dalila. Reflexão mais que oportuna nesses tempos cinzentos. Abraço,
ResponderExcluirMarcelo D. Fraccaro
Muito grata pelo honrosa leitura e comentários. Abraços
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