Atendendo ao convite do Coletivo Tantas Letras, por
intermediação da poeta Conceição Bastos, elaborei uma fala sobre Poesia feita
por mulheres que encerrou uma série de encontros promovidos por aquele coletivo
de São Bernardo do Campo, que teve por tema central Mulheres na Literatura:
leituras e legados”. O bate-papo ocorreu no encontro de junho deste ano, o XVI, do
Sábados PerVersos, na livraria Alpharrabio, em Santo André.
Dessa minha pesquisa, resultou este texto:
Dessa minha pesquisa, resultou este texto:
Poesia Feita por Mulheres
Durante séculos apartada do direito do acesso à educação
formal, a mulher, até há muito pouco tempo, era educada apenas para as prendas
domésticas. Quando iniciada nas letras era apenas para ler o que os homens
escreviam sobre ela ou recitar os poemas (dos homens) após o jantar, nos saraus
domésticos.
No Brasil, as mulheres conquistaram, por decreto, o
direito de votar apenas em 1932, no Governo Getúlio Vargas e essa conquista foi
graças a uma luta de anos. Mesmo assim, esse decreto foi aprovado parcialmente,
permitindo que apenas mulheres casadas, com autorização dos maridos, e viúvas e solteiras que tivessem renda própria
o acesso ao voto. Em 1934 essas restrições foram eliminadas do Código
Eleitoral, ainda que a obrigatoriedade do voto fosse apenas um dever masculino.
Só em 1946 é que a obrigatoriedade do voto foi estendido às mulheres.
Ou seja, o direito feminino à cidadania plena no Brasil
tem a minha idade, 70 anos. 70 anos na história representa quase nada.
Seria interessante lembrar que somente depois da II Guerra
Mundial, em 45, é que a mulher, com a necessidade de trabalhar fora do lar,
tornou-se mais independente, mas ainda assim, sem atingir em pleno século XXI
as conquistas mínimas de caráter social e trabalhista, como salário igual para
cargos iguais e tantas outras que mexem com a estrutura familiar, como a
divisão de trabalhos domésticos.
Com o avanço da ansiada liberdade feminina, a mulher
adquiriu tantas ou mais atribuições do que antes e paga caro o preço de sua suposta
independência.
Essa independência resume-se, afinal, à condição da
dependência de outra mulher que é contratada para realizar os trabalhos
domésticos, uma vez que, em pleno Século XXI, o homem ainda não aceita essa vil tarefa, que
a sociedade convencionou chamar de feminina. Portanto, alguém sobrou nessa
estória toda. Essa mulher que é contratada para fazer os serviços daquela que
deles se livrou, geralmente oriunda de uma classe social menos favorecida, é
quem arca, afinal, com o ônus, obrigando-se à dupla e tripla jornada de
trabalho, arcando com a tarefa do lar onde trabalha e a do próprio. Sobrou
também para aquelas, que mesmo necessitando trabalhar fora de casa, não ganham
o suficiente para pagar uma empregada e também arcam com a dupla jornada de
trabalho.
De qualquer maneira, o acesso da mulher à educação, deu
no que deu. Ela está aí, ocupando cargos como a magistratura e os altos postos
na Justiça Federal, na política, chegou ao Senado, aos Ministérios e, ainda que
a misoginia ainda impere, à Presidência da República. Nas empresas, alcança,
cada vez com mais frequência, os mais altos cargos, e, na literatura, é visível
um grande aumento do número de mulheres escritoras que recebem, a despeito dos
ainda fechados clubes do bolinha, reconhecimento através de prêmios e de
sucesso de público. Mas ainda é pouco, muito pouco.
Neste caso, a pergunta, sempre polêmica, que se faz
costumeiramente é se existe de fato uma literatura que possa ser considerada
feminina ou de estética feminina? A minha resposta inicial seria: tem sexo a
escrita? Tem sexo a poesia? É claro que o discurso jamais é neutro e a história
da literatura nos mostra o quanto a escrita feminina foi olhada com desdém ao
longo do tempo. Examinemos aspectos de algumas antologias que são bastante
reveladores:
-Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Romântica, Manuel
Bandeira, 1ª. edição, 1937, Imprensa Nacional, 3ª, Imprensa Nacional, 1949
- 25 poetas antologiados, nenhuma
Mulher, nem sequer nas notas.
Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana,
Manuel Bandeira, 1938, Ministério da Educação (Gustavo Capanema)
- Num total 24 poetas, apenas Uma mulher – Francisca
Júlia (7 poemas e uma nota ao final do livro)
-Antologia de Poetas Bissextos Contemporâneos, Manuel
Bandeira, Zelio Valverde, 1946 - 35 poetas, 4 mulheres
- Joanita Blank (o próprio Manuel Bandeira publicou uma
plaquete com 10 poemas dela de 30 exemplares)
- Lucila Godoi
(nome verdadeiro de Gabriela Mistral ?)
- Maria Clara
Machado; 3 de abril de 1921, BH, MG / 2001, RJ (filha do escritor
Aníbal Machado)
- Maria Helena
(filha de Alceu Amoroso Lima)
- Obras-Primas da Lírica Brasileira, Manuel Bandeira,
Livraria Martins, 1957
131 poetas e apenas 11 mulheres
-Ana Amália de Queiroz Carneiro de Mendonça ( 1896, -1971,
RJ Militante pela defesa das causas da mulher; Fundadora da Casa do Estudante
do Brasil, RJ) Mãe da crítica Bárbara Heliodora;
-Auta de Souza (1876-1900, Natal, RN) Publicou apenas um
livro, Horto, viveu 24 anos);
- Cecília Meireles;(1901-1964)
- Francisca Júlia; (1971-1920)
- Gilka Machado; (1893-1980)
- Henriqueta Lisboa; (1901-1985)
- Lila Ripol; 1905, RS,
1967, RS, poeta, pianista e militante comunista.
- Maria Eugênia Celso; 1886-1963 (aristocrata, filha do
Conde de Afonso Celso e neta do Visconde de Ouro Preto) gozou se prestígio
literário à sua época
- Maria Isabel
(Ferreira) Nascida no RJ, publicou pequena coleção de poemetos em 1942
(informações de Vinicius de Moraes que a conheceu e a enviou para MB)
- Oneyda Alvarenga;
de nome completo Oneyda Paoliello de Alvarenga, (1911, MG, 1984, SP) além de poeta, com apenas um livro publicado,
foi jornalista, ensaísta e folclorista.
Aluna, colaboradora e grande amiga de Mário de Andrade. Foi a organizadora de
seus livros após sua morte.
- Yone Stamato- (1915, SP ?) é de 1942 seu último livro, A
imagem Afogada.
- Apresentação da Poesia Brasileira, Manuel Bandeira,
Livraria Editora da Casa do Estudante, RJ, 3ª. ed.1957 - 52 poetas antologiados
(De Gregório de Matos a Augusto de Campos) e apenas uma mulher (Cecília
Meireles)
São mencionadas em
notas Francisca Júlia (“Parnasiana, a mais autêntica expressão da objetividade
da escola”, Oneyda Alvarenga (promissora, mas que não foi adiante), Gilka
Machado (neo-parnasiana, forte temperamento afirmado numa série de livros –
Cristais Partidos, Estados de Alma, Mulher Nua, Meu Glorioso Pecado, Carne e
Alma, Sublimação), Adalgisa Nery (Poetas pós-II Guerra, “não parecem ter
sentido desejos de inovação); Lucy Teixeira (Geração 45)
Presença da Literatura Brasileira, Antonio Candido e José
A. Castelo, Difusão Europeia do Livro, 1964 (autores significativos – “seleção
drástica” a fim de uma mostra mais ampla de cada autor)
- Barroco, Arcadismo e Romantismo : nenhuma mulher
- Romantismo, Realismo, Parnasianismo e Simbolismo :
nenhuma mulher
- Modernismo: Cecília Meireles (“se apresenta como um
todo uniforme e linear, presidido por três constantes fundamentais: o oceano, o
espaço e a solidão. (...) Não se descobre nela qualquer impulso de investigação
temática (...) a sua linguagem é, contudo, demasiada clara, conduzindo-nos a
uma visualização rápida e fácil (...) Poderá ser considerada herdeira do
simbolismo na poesia modernista
brasileira. Cita Também Rachel de Queiroz.
Antologia Geração 45 (por Milton de Godoy Campos, Clube
de Poesia, 1966]
Total: 64 autores, 9 mulheres (curiosamente os homens
possuem data de nascimento, as mulheres não).
- Dulce Carneiro, 19?? poeta, dedicou-se à Alta costura e
ao jornalismo de moda, (irmã do ficcionista André Carneiro)
- Hilda Hilst (1930/2004, SP)
- Idelma Ribeiro de Faria – poeta e reconhecida tradutora (sua tradução de
Emily Dickinson é tida como das melhores para a nossa língua)
- Ilka Brunilde Laurito – Professora do magistério
secundário, cronista e organizadora de antologias. (1925-2012)
- Laís Correia de Araújo (,,??,,, ) MG foi casada com o
poeta Afonso Ávila
- Maria Isabel – RJ ? (com visível influênica de Cecília
Meireles (...) é poetisa e jamais chamaremos poeta a uma poetisa tão feminina”)
- Renata Palottini – 1931, SP
- Zila Mamede - 1928-1985, Paraíba
- Note-se que o Concretismo (inicial - 1945) não registra
nenhuma presença feminina
-Antologia poética da Geração 60, Álvaro Alves de Faria e
Carlos Felipe Moisés, organizadores, Nankin Editora, SP, 2000. 30 autores – 4
mulheres (Eunice Arruda, 1939; Lúcia Ribeiro da Silva, 1940, Neide Archanjo,
1940; Orides Fontela, 1940/1998).
- 26 Poetas Hoje, de Heloisa Buarque de Hollanda
(Editorial Labor) uma antologia que mapeia a chamada poesia marginal,
(movimento? moda? circunstância – a ditadura militar?) marcado pela
“desierarquização do espaço nobre da poesia - tanto nos seus aspectos materiais
gráficos quanto no plano do discurso”, no dizer da própria Heloisa. Como aponta
o título, são reunidos 26 poetas atuantes naquele momento. Desses, apenas 5
mulheres (Ana Cristina César, Isabel Câmara, Leila Miccolis, Vera Pedrosa e
Zulmira Ribeiro Tavares). Entretanto, nessa ocasião, havia milhares de poetas,
homens e mulheres, integrando esse incrível circuito via correio e recitais nos
mais inusitados espaços, públicos ou não. Muita coisa foi escrita depois disso
(Leila Miccolis, Do Poder ao Poder e outros títulos; Moacyr Félix, “41 Poetas
do Rio”; Eucanaã Ferraz, Poesia Marginal Palavra e Livro; Carlos Alberto
Messeder Pereira, Retrato de Época - Poesia marginal anos 70, dentre outros) e
muita ainda por contar, principalmente fora do eixo Rio-São Paulo.
- Poesia.br, org. Sergio Cohn, Azougue Ed., 2012, uma
caixa com 10 volumes, cada um deles abarcando uma década (de 1940/50, 1960,
1970, 1980, 1990, 2000, mais os volumes: cantos ameríndios, colonial,
romantismo/pós-romantismo e modernismo, listando 16 poetas para cada década.
Aqui, as mulheres comparecem (ou desaparecem, em alguns períodos) em número
igualmente reduzido. Assinale-se que em 2000, dos 16 poetas, 4 deles são
mulheres.
Pequena antologia de poemas feitos por mulheres
TERESA MARGARIDA DA SILVA E ORTA – Nascida na cidade de
SP em 1711 (ou inicio de 1712ª, filha de uma paulista e de um português que fez
imensa fortuna do Brasil. Ainda criança, vai com a família para Portugal,
casa-se contra a vontade do pai que a deserda. Publica, em 1752, “Máximas de
Virtude e Formosura” com o pseudônimo Dorotéia Engrácia Tavareda Dalmira,
primeira obra de ficção em língua portuguesa a se opor ao absolutismo, a
reivindicar os direitos da mulher, a defender a autonomia das terras dos
“ex-bárbaros” (alusão à Colônia portuguesa na América). Trata-se também do mais
antigo texto ficcional que se tem notícia, escrito por autor brasileiro. O
mesmo Marquês de Pombal que apoiou quando da expulsão dos jesuítas no Brasil, a
mandou prender, sob alegação de haver mentido ao rei D. José. Há três textos da
prisão, uma novena e dois longos poemas. Só no século XX seu nome ressurge nas
pesquisas literárias de Portugal e Brasil (curiosamente, não é citada por
Manuel Bandeira, nas obras mencionadas, mas é estudada por Alfredo Bosi em
História da Literatura Brasileira, 1985, Afrânio Coutinho, A Literatura no Brasil,1968;
Wilson Martins, História da Inteligência Brasileira, 1976, Massaud Moisés e
José Paulo Paes, em Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, 1980 e
outros).Em 1993, a Editora Graphia, RJ, publica sua Obra Completa.
POEMA ÉPICO-TRÁGICO (escrito no cárcere, de cunho
testemunhal, dividido em cinco prantos, com o total 132 estrofes, em
oitava-rima (à maneira de Camões nos Lusíadas), escrito no cárcere.
2
Com rouca voz, e Lira dissonante
Meus males cantarei, que o injusto fado
Contra mim suscitou, com mão possante,
Empenho vil, rigor precipitado:
Da fortuna mortal e inconstante
Darei um exemplar nunca cantado;
Pois que de Casa, honra e Liberdade,
Me usurpou a maior fatalidade.
3
As máquinas direi da impostura,
Cavilações, enredos e furores;
Estragos se verão da desventura
Nos efeitos do ódio e dos rigores:
Pois me tem posto quase em sepultura
Desta prisão sofrendo mil rigores,
Onde, da imensa dor preocupada,
Morrendo sempre vivo consternada.
(*) MARIA FIRMINA DOS REIS (1825-1917) – Não é citada em
nenhuma das antologias de literatura pesquisadas. Negra, nordestina
(maranhense) Em 1859, publicou “Úrsula”, apontado como o primeiro romance
abolicionista e feminista escrito no Brasil. Maria Firmina muito publicou na imprensa
local de sua época. Contos, poemas, crônicas e artigos outros. Professora e
feminista, fundou, em 1880, a primeira escola mista (meninas e meninos) do Maranhão.
É de se imaginar o que isso representou em termos de incômodo no status quo
daquele período.
“Eu não te ordeno, te peço,
Não é querer, é desejo;
São estes meus votos – sim.
Nem outra cousa eu almejo.
E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta – e morrer.
FRANCISCA JÚLIA – de nome completo Francisca Júlia César
da Silva Münster Nasceu em Xiririca, hoje Eldorado Paulista, Vale do Ribeira,
SP, em 1871 ou 1874, (Manuel Bandeira registra 1871) e faleceu em 1920. Ligada
ao movimento Parnasiano. Obras: Mármores (1895), Livro da Infância (1899), Esfinges (1903), Alma
Infantil (com Júlio César da Silva, 1912), Esfinges - 2º ed. (ampliada,
1921), Poesias (organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos, 1962).
Escultura de Brecheret (“Musa impassível, título de um de seus poemas),
originalmente concebida para o túmulo de Francisca Júlia no Cemitério da
Consolação, onde permaneceu por muitos anos e, devido ao seu estado de
deterioração, foi restaurada e transferida para a Pinacoteca do Estado de SP,
onde permanece. No cemitério ficou uma réplica.
MUSA IMPASSÍVEL II
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o Impassível mora.
Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.
Transporta-me, de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares,
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,
E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo,
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
Mármores (1895)
GILKA MACHADO (Rio de Janeiro, 1893 - Rio de Janeiro,
1980), Poeta simbolista publicou seu primeiro livro em 1915. Seus versos foram
considerados escandalosos por serem marcadamente eróticos.
Lépida e Leve
(...)
Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...
Língua-lâmina, língua-labareda,
Língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inferia e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...
CORA CORALINA (Goiás velho, 20 de agosto de 1889, 10
de abril de 1985, Goiânia, Goiás). Freqüentou a escola por apenas dois
anos, mas adquiriu, pela leitura e estudo autodidata, uma admirável fluência
verbal. Reconhecida quando já passava dos 70 anos, depois de uma elogiosa
crônica a seu respeito, publicada por
Carlos Drummond de Andrade. Saboreou, ainda que tardiamente, o reconhecimento e
a consagração popular, recebendo, entre outras honrarias, o título de doutora
honoris causa pela Universidade Federal de Goiás. Viveu até os noventa e cinco
anos.
Publicou os livros: Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais (poesia), 1965, Meu Livro de Cordel, (poesia), 1976; Vintém
de Cobre - Meias confissões de Aninha (poesia), 1983; Estórias da Casa Velha da Ponte (contos),
1985; Meninos Verdes (infantil), 1986 (póstumo); Tesouro da Casa Velha (poesia),
1996 (póstumo, seleção e prefácio de Dalila Teles Veras); A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (infantil), 1999
(póstumo); Vila Boa de Goias (poesia), 2001 (póstumo); O Prato
Azul-Pombinho (infantil), 2002 (póstumo).
Do Livro Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais:
TODAS AS VIDAS
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebrando.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d´água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária,
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Vive dentro de mim
A mulher da vida
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
A vida mera das obscuras.
CECÍLIA MEIRELES (7 de novembro de 1901, RJ,: 9 de
novembro de 1964, RJ) que além de poeta foi tradutora, ficcionista, ensaísta,
professora. Neste poema, anuncia a sua condição de poeta, simplesmente, nem
homem, nem mulher, poeta, apenas:
MOTIVO (Do Livro VIAGEM)
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias
não sinto gozo nem tormento
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
HENRIQUETA LISBOA, 1901, Lambari, Minas Gerais / 1985, Belo Horizonte, Minas Gerais. Professora de Literatura, ensaísta e tradutora.
UM POETA ESTEVE NA GUERRA
Um poeta esteve na guerra
dia-a-dia longos anos.
Participou do caos,
da astúcias, da fome.
Um poeta esteve na guerra
Por entre a neve e a metralha
conheceu mundos e homens.
Homens que matavam e homens
que somente morriam.
Um poeta esteve na guerra
como qualquer, matando.
Para falar da guerra
tem apenas o pranto.
(in Nova Lírica, Imprensa/Publicações, 1971
PAGU – Patrícia Rehder Galvão (1910, São João da Boa
Vista, SP – 1962, Santos, SP. Poeta, ficcionista, diretora de teatro,
tradutora, desenhista, jornalista, comunista, militante política. Casou com
Oswald de Andrade, com quem teve um filho, Rudá de Andrade, escritor e
cineasta. Primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas.
O célebre poema Côco de Pagu, de Raul Bopp dedicado a
Patrícia Galvão, acabou por emprestar-lhe o nome artístico.
Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Côco de Pagu
Coração pega a bater
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Passa e me puxa com os olhos
Provocantissimamente
pra mexer com toda a gente.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer
Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.
LARA DE LEMOS ( 22 de julho de 1923, Porto Alegre, RS/12
de outubro de 2010, RJ), de nome completo: Lara Fallabrino Sanz Chibelli de
Lemos. Poeta, jornalista, educadora, advogada, tradutora. Publicou 10 livros de
poemas e foi reconhecida por seus pares e pela crítica. O poema O POETA E A
PALAVRA, é do livro Adaga Lavrada, Civilização Brasileira / Massao Ohno,
Editores, 1981
O POETA E A PALAVRA
Afio devagar
dentes e unhas.
Persigo a presa.
Não cedo
um palmo de mim
nem de meu passo.
HILDA HILST (21 de abril de 1930, SP, 4 de fevereiro
de 2004, SP)
Poeta, ficcionista, dramaturga, cronista. É, dentre todas
as vozes femininas da literatura brasileira, a dona da linguagem de maior
complexidade. Talvez por essa razão, queixou-se a vida inteira dos poucos
leitores. A crítica e, hoje, o grande público, já a consagrou como uma das
grandes poetas brasileiras. O poema a
seguir, sem título, é de seu livro CANTARES DO SEM NOME E DE PARTIDAS
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
RENATA PALLOTTINI, 1931, SP (Dramaturga (teatro e TV),
ensaísta e tradutora), dona de uma obra bastante extensa, é ligada à chamada
geração 45. Do livro NOITE AFORA, este
poema:
TELEPOEMA
Não dou ibope.
Canto, toco saxofone, viro cambota
mas não dou ibope;
talvez um stripitísi, quem sabe
vomitar diante das câmeras,
quem sabe distribuir beijinhos ao público?
Não tenho os cabelos ondulados,
não sou estrela de telenovela
nem sou metade do par mais popular.
Não dou ibope nem na minha rua,
nem na minha casa.
Olho-me no espelho e não me vejo:
estou ligada no outro canal.
OLGA SAVARY Nasceu em 21 de maio de 1933 em Belém, Pará. Reside há muitos anos no Rio de Janeiro. Contista, romancista,
ensaísta e tradutora de reconhecidos méritos traduziu dezenas de autores
hispânico-americanos, como Octavio Paz, Borges, Cortazar, Neruda, Lorca, Vargas
Llosa, dentre outros. É talvez a mais desabusada das vozes femininas na poesia
brasileira do século XX, tida como dona de uma poética erótica e do amor, pelo
fato de ter sido a primeira mulher brasileira a lançar um livro composto
inteiramente de poemas eróticos, Magma. É desse livro, O poema Guerra Santa
GUERRA SANTA
Tenho um medo da fera que me pelo,
ao vê-la quase perco a fala
(embora seja a fera o que mais quero)
mas reagindo digo-lhe palavras doces
e palavras ásperas, torno
igual minha voz à voz dos bichos
para seduzi-la ou para intimidá-la,
para que pontiaguda me tome das entranhas
depois de dilacerar com as garras meu vestido.
LUPE COTRIM GARAUDE - 16 de março de 1933 / 18 de fevereiro de 1970. De nome
completo Maria José Cotrim Garaude Gianotti (este último nome adquirido
pelo casamento com o filósofo e professor José Arthur Gianotti). Assinou suas
obras, por vezes, apenas Lupe Cotrim), foi
tradutora, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Morreu precocemente, aos
37 anos, com uma obra reconhecida à sua época. Poema do livro RAIZ COMUM
CANÇÃO
Os anos vão me pisando
com os seus dias mais duros
e nas datas vou ficando,
por calendários obscuros.
Em mim jamais se deteve
um só instante sequer
e o tempo é mais uma sede
de um tempo que eu não tiver.
O presente me amordaça
no ritmo que vai passando
e o futuro é uma couraça
que o passado vai deixando.
O amor já nada sei.
Nos outros tão repartida,
caminho que não terei
pelos contornos da vida.
ADÉLIA PRADO, de nome completo: Adélia Luzia Prado de
Freitas, nasceu em Divinópolis, MG, em 13 de dezembro de 1935. - Voz
particularíssima e uma de nossas mais populares poetas. Formada em filosofia,
foi professora durante 24 anos, mãe de 5 filhos e jamais deixou sua cidadezinha
natal. O cotidiano e a fé cristã são temas recorrentes em sua poesia. É também
ficcionista com diversos livros nesse gênero. O poema Casamento é do seu livro
TERRA DE SANTA CRUZ
CASAMENTO
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
ORIDES FONTELA (Orides de Lourdes Teixeira Fontela –
S.João da Boa Vista, SP, 1940, Campos do Jordão, 1998). Formada em Filosofia,
foi professora da USP. Figura polêmica,
com uma obra experimental que prima pela concisão e a reflexão filosófica, foi reconhecida
pela crítica, mas muito pouco conhecida do grande público. Publicou apenas seis
livros de poemas (Transposição (1969); Helianto (1973);
Alba (1983); Rosácea (1986); Trevo (1969-1988) e
Teia (1996). Em 2006 saiu pela Cosac & Naif Poesia Reunida. É de TEIA,
seu último livro, com o qual foi
ganhadora do prêmio APCA de 1996, este poema:
EROS II
O amor não
vê
O amor não
ouve
O amor não
age
O amor
não.
Alguma bibliografia (além da já citada no corpo do texto):
- Vozes Femininas da Poesia Brasileira, Domingos Carvalho
da Silva, coleção Ensaio, Conselho Estadual de Cultura, SP, 1959
- A Mulher Escrita, Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano
Brandão, Casa Maria, Editorial, 1989
- Feminino Singular – A participação da mulher na
literatura brasileira contemporânea (Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo,
Cremilda de Araújo Medina, Bella Josef, Ilka Brunhilde Laurito, Adélia Prado,
Julieta de Godoy Ladeira, Renata Pallttini, Zulmira Ribeiro Tavars e Hilda
Hilsta. Arquivo Municipal de Rio Claro, SP, 1989
- A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo, Nelly
Novaes Coelho, Ed. Siciliano, 1993
- Vozes Femininas – gênero, mediações e práticas de
escrita, Flora Sussekind, Tânia Dias e Carlos Azevedo, organização
- Pastores de Virgílio – a literatura na voz de seus
poetas e escritores, Álvaro Alves de Faria, org., Escrituras Ed., SP, 2009
(*) Devo ao poeta Diogo Cardoso, participante do
encontro, a dica sobre a poeta Firmina dos Reis, incluída aqui a posteriori.
Nenhum comentário:
Postar um comentário