terça-feira, 1 de setembro de 2015

Uma visita ao Recôncavo Baiano e algumas descobertas

Atenção: isto não é um roteiro turístico. É só para reforçar algo que sempre constato em minhas viagens pelo Brasil, mas que muita gente ainda não se deu conta: São Paulo não é o Brasil (apesar do amor que devoto a este estado onde vivo desde os 11 anos) e não é a "força da grana que ergue e destrói coisas belas" que caracteriza este país, mas o seu povo e a incrível diversidade de sua cultura.

Esta não é a primeira vez que visito a Bahia, mas como há sempre o que descobrir nas inúmeras Bahias existentes na Bahia, desta feita, estabeleci meu QG na cidade de Cachoeira (110km de Salvador), no chamado Recôncavo baiano. E se conto é porque sempre volto inconformada por constatar que o Brasil é um país magnífico, vocacionado para o turismo, com atrações históricas, culturais e paisagens deslumbrantes, mas que ainda é subestimado pelos próprios brasileiros e descuidado por quem dele deveria cuidar.

Cachoeira Vista da Casa Ateliê Hansen Bahia, em São Félix, cidades nas
margens opostas do Paraguaçu e ligadas pela Ponte Imperial D. Pedro II

Antiga Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, chamada de a Heróica, título que lhe foi concedido por D. Pedro I, em abril de 1826, como reconhecimento à campanha pela emancipação do país, a cidade Cachoeira foi um importante entreposto comercial. Próspera e rica vila do Recôncavo, considerada a maior cidade baiana depois da capital e um dos mais importantes centros urbanos brasileiros do Século XIX. Sua "descoberta" oficial data do ano de 1526 e era o ponto de acesso ideal para penetração do interior. Ali, na altura da bacia de Iguape ("lagomar") encerra-se a parte navegável do rio.

Um rio que tem marés e ondas - Bacia do São Francisco - Rio Paraguaçu

Tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Nacional (IPHAN), a cidade reúne um impressionante e inestimável conjunto arquitetônico do estilo barroco na Bahia. 

A Identificação foi imediata: vistas a partir do rio Paraguaçu, as cidades de Cachoeira e São Félix (desta falarei depois), ligadas pela "Imperial Ponte D. Pedro II,  (1865) sobre o Rio Paraguaçu, muito se assemelham à geografia de minha cidade natal, Funchal e, muito em especial, quando iluminadas, à noite. Tanto aqui como lá, à margem do rio estas, à margem do oceano aquela, suas imagens são de um verdadeiro presépio.

Dali,  onde nos hospedamos numa pousada instalada num autêntico Convento do Século XVIII, parte do admirável conjunto do Carmo


Pátio Interno da Pousa do Carmo (antigo Convento) visto do primeiro andar (todas as janelas dão para o interior)
 

passamos à "exploração" local. Além da navegação pelo Rio Paraguaçu (que nasce na Chapada Diamantina e deságua em Salvador, após percorrer 600km)

Ponte Imperial D. Pedro II que liga Cachoeira a São Félix, vista do barco


cidades circunvizinhas, como São Félix, Muritiba, Santo Amaro da Purificação, Maragogipe, Iguape.

Um Brasil profundo, negro, mestiço, europeu, africano, sincretismo cultural único, carregado de histórias e com visíveis marcas da História, ainda que, em muitos casos, o descaso crônico com o nosso Patrimônio Histórico seja tão dolorosamente constatado e lamentado. Aqui e ali, mobilizações populares provocam "milagres" e meritórios restauros.

Sem nenhuma intenção de traçarmos aqui nenhum roteiro de viagem, destaco alguns dos inúmeros e surpreendentes monumentos históricos daquela região tão pouco divulgados, mas que merecem e precisam ser melhor conhecidos e fruídos. Além do casario, muitas edificações em excelente estado, outros tantas em completa degradação, topamos, de surpresa em surpresa, com estes:


Igreja de N. Sra. de Belém e o padre voador

Frontispício da Torre da Igreja de Belém, onde se inscreve a data de sua fundação: 1686


- Contando com a luxuosa visita guiada do pároco de Cachoeira, Pe. Helio Vilas Boas, visitamos a Igreja de Nossa Senhora de Belém, edificada em 1686 dentro de uma aldeia indígena (o frontispício atual é do Séc. XIX, e o interior da igreja passa por um grande processo de restauro). Aprendi que essa Igreja fez parte de um antigo Seminário (que já não existe) onde estudaram Frei Galvão, o primeiro santo brasileiro, e o famoso Pe. Bartolomeu Lourenço de Gusmão, conhecido como padre voador, criador da mítica "passarola" e, para quem se lembra, personagem do romance Memorial do Convento, de José Saramago. 




Pois bem, o Pe. Bartolomeu, começou ali sua carreira de inventor, criando uma maquineta que elevava a água de um brejo 100 metros abaixo da edificação que veio facilitar a vida dos que ali viviam. A Igreja de Nossa Senhora de Belém, hoje é um Santuário de Peregrinação. Arrepiante pisar o solo dessas histórias.


Conjunto do Carmo - Igreja N. Sra. do Carmo



O chamado conjunto arquitetônico do Carmo é composto pela Igreja da Ordem Terceira do Carmo,  pelo Convento (hoje transformado em Pousada) e pela Casa de Oração Ordem Terceira do Carmo (transformada em Centro de Convenções). De um valor histórico incalculável, a Construção, de estilos e épocas diversas (1696-1747) é realmente admirável. A Igreja tem seu interior revestido de ouro e maravilhosos painéis de azulejos portugueses. Na Sacristia, um impressionante conjunto de imagens de madeira trazidas de Macau que representam a Paixão de Cristo. As magníficas figuras, em tamanho natural, possuem traços orientais e cabeça raspada (disseram-me que é uma "versão" oriental de que os condenados à morte na cruz, à época de Jesus, tinham suas cabeças raspadas). As imagens são únicas e impressionam de fato, além dos armários onde estão colocadas, com pinturas autênticas nas portas e interiores, também de Macau. Muitos outros tesouros, sabe-se, foram saqueados por quadrilhas que percorrem o Brasil de ponta a ponta com essa finalidade. Sem a mínima segurança, o que restou de toda essa riqueza é "zelado", via de regra, voluntariamente e de forma precária, por cidadãos da comunidade que, organizados em "irmandades",  se revezam e esforçam como podem. Vez ou outra, por pressão desses mesmos abnegados cidadãos, restauros são realizados, mas sempre são insuficientes pelo fato de que a conservação é precária. Uma realidade que nos entristece e que precisa com urgência ser revertida.


Igreja Matriz N. Sra. do Rosário do Porto de Cachoeira





O Oh! de admiração continua ao entrarmos na Igreja Matriz N. Sra. do Rosário, Prédio do Século XVIII, igualmente de riquíssimo interior com a surpresa maior: novo e muito maior conjunto de azulejos portugueses, da época da edificação, muito bem conservados que, dizem, ser o maior conjunto do gênero existente no Brasil e um dos maiores fora de Portugal. Uma Sacristia com um belíssimo teto de pintura "ilusionista" do italiano José Theófilo de Jesus.   


Passeio e encontro com a Regata Aratu-Maragogipe

No passeio pelo Rio Paraguaçu, a surpresa da chegada das embarcações e dos tradicionais saveiros, da 46ª Regata Aratu-Maragojipe. E dá-lhe Samba suor e cerveja, dentro das próprias embarcações que reproduzem cenas de blocos carnavalescos (os participantes de cada uma delas com seus uniformes/abadás)








A Bahia é festa o ano todo. A Regata faz parte das festividades de São Bartolomeu em Maragogipe. E o sincretismo cultural, a mistura do profano e do religioso, mais uma vez,  se faz presente. No dia seguinte à regata, baianas vestidas a caráter saem em cortejo do Terreiro Banda Lecongo até as escadarias da Igreja do Santo Padroeiro (fechada nessa altura) para a tradicional lavagem.



No largo atrás da Igreja, o samba de roda anima a multidão dia e noite afora. A multidão aumenta a cada momento.


Os baianos não andam, dançam, gingam e demonstram uma indiscutível sensualidade. Não falam, cantam. 


Finalmente, no dia 24, dia do Santo, os atos religiosos são celebrados, não sem antes, uma boa salva de fogos.





Como se vê, a Noite de São Bartolomeu nos trópicos nada tem a ver (e ainda bem) com aquela outra no Século XVI, em Paris, que tingiu o Sena de sangue, consequência de disputas de poder e desvario de monarcas e altas patentes. A noite aqui é do povo que celebra sua mestiçagem e fé sincrética.

E há ainda o Museu e a Casa Museu Ateliê de Hansen Bahia

Fundação Hansen Bahia - Galeria (Cachoeira)

Casa Museu Ateliê onde viveu Hansen Bahia (São Félix)

O Museu biográfico Parque Histórico Castro Alves - PHCA, em Cabaceiras, onde nasceu o poeta Castro Alves

Fazenda Cabaceiras


O Convento de Santo Antônio do Paraguaçu, da Ordem religiosa Franciscana, é o primeiro a ser estabelecido no Brasil, impressionante edificação (1658-1686), às margens do Paraguaçu, no povoado de São Francisco do Paraguaçu, pertencente a Cachoeira. Essa maravilha, infeliz e incompreensivelmente, encontra-se, ao menos externamente (não encontramos naquele momento o "guardador" do local e, desconhecemos seu interior) encontra-se quase em ruínas.




A Irmandade da Boa Morte composta só por mulheres negras, em Cachoeira:



e a lindíssima e rica Igreja do Monte com seu adorável casario colonial ao redor, também em Cachoeira:



e a surpreendente descoberta do Instituto Roque Araujo, com seu museu de cinema e audiovisual, em Cachoeira:


e a fábrica de charutos artesanais Danemann, verdadeiras obras de arte, localizada em São Félix:


e a Igreja de Santo Amaro da Purificação, o Solar de Dona Canô e as marcas de seus dois filhos ilustres:





e a inesquecível lembrança da imagem noturna de Cachoeira, com a lua ao fundo, vista do corredor do 1º andar da minha Pousada:


e outros e tantos e tão apaixonantes que talvez volte a falar deles por aqui. (dtv)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

São... São... Paulo(s) - cidades dentro da cidade - II

Parte II - a segunda cidade, a da vieille cuisine

Seguindo o roteiro, vamos à busca da "segunda cidade", a da velha e honesta gastronomia paulistana, ou seja, restaurantes sem firulas, sem "música ambiente", sem "música ao vivo", mas com uma cozinha honesta, desgourmetizada, garçons que gostam do que fazem. Locais onde se vai não só para saciar a fome imediata, mas também com o sentido do rito.
Não é muito fácil encontrar essas velhas casas. As poucas que existem, resistem bravamente, graças a clientes fiéis.



Um bacalhau grelhado, acompanhado de brócolis, batatas, cebola, ovo, cozidos no vapor, regado com muito azeite. Itamarati (1949), no Largo de São Francisco, bem em frente à velha Academia de Direito.



Pastas de berinjela e homus, coalhada e pão sírio de entrada. Kafta grelhado com  cuscuz marroquino de prato principal. Almanara (1950) na Rua Basílio da Gama (uma ruazinha quase clandestina, que sai da Pça. da República e acaba em lugar nenhum.)



Um filé no Girondino (2005, mas inspirado no Café do mesmo nome, instalado em 1875 na rua 15 de Novembro e que existiu até os anos 20). Rua Boa Vista, esquina com Largo de São Bento. Lamentavelmente, ao menos para mim, não vale mais a pena. Virou "modinha" e a boa cozinha desapareceu. Os preços altos a substituíram. Vale o ambiente, a vista para o Mosteiro e o (ainda) muito bom café.


Um café no Café Floresta (1977), no edifício Copan (Niemeyer). O café é excelente (esta é uma loja do produtor) e o "clima" dos velhos Cafés é convidativo. Apesar de não gostar de tomar um café em pé, este é um dos poucos locais que topo fazer isso, pelos motivos expostos.

Nesta cidade múltipla, há cardápios para todos os gostos, preços para todos os bolsos, ambientes para todos as exigências.

Anotações do diário de bordo:

em silêncio
auscultar as narrativas que a cidade oferece
(o imaginário coletivo e seus sentidos)



a memória pessoal
(autobiografia)
em construção
permanente

saguão Biblioteca Mário de Andrade - sem identificação de autoria


O que a cidade "escreveu" e esqueceu
é também a minha escrita
minha singularidade
na multiplicidade
(intercambiáveis)


quarta-feira, 10 de junho de 2015

São... São... Paulo(s) - cidades dentro da cidade

Parte I - a primeira cidade

Quadro dias hospedados em um hotel, um feriado espremido ao meio, em pleno centro (o velho) de São Paulo, exatamente a 22 km de casa. Uma viagem, garanto (na própria terra).

Proposta: flanando, mapear algumas dessas "cidades"  dentro da megalópole.

A primeira atração da viagem: o próprio hotel. Ícone da arquitetura modernista, com uma história (histórias) fantástica que se confunde com a cidade em toda a segunda metade do Século XX.



Projetado pelo arquiteto alemão Franz Heep sobre um projeto já existente desde 1946, da família Mesquita, para abrigar o jornal O Estado de São Paulo, a rádio Eldorado e o hotel Jaraguá no então chamado Centro Novo. O ousado edifício foi concluído em 1954 em plenas festividades do IV Centenário da cidade, recebendo em suas instalações os participantes da primeira edição do Festival Internacional de Cinema ocorrido naquele ano.  A partir daí, tornou-se uma referência internacional. Personalidades ligadas ao mundo das artes, do cinema, chefes de estado, empresários, heróis, reis e rainhas, passaram por ali. A instalação de hotéis concorrentes nos arredores e, posteriormente, a ida das grandes redes hoteleiras para o "novo centro", ou seja, Av. Paulista e entorno, contribuíram para que o hotel entrasse em decadência e consequente fechamento em 1998. Bem antes, o próprio jornal O Estado de São Paulo já havia saído de lá.
Já com novos proprietários, o edifício sofre uma reforma interna radical. A parte externa e os murais artísticos (Di Cavalcanti e Clóvis Graciano) ficaram inalterados, pois são tombados como Patrimônio Histórico Estadual.




Uma pena que, para sobreviver, o hotel desta história toda, tenha se submetido aos desígnios dos novos tempos, ou seja, voltado para o turismo de "negócios" deixando poucos vestígios do glamour dos turistas que viajam pelo prazer da viagem. Uma pena que hoje, esse turistas (brasileiros e estrangeiros) também não sejam informados do quanto aquele então "Centro Novo" e hoje chamado de "Centro Velho" pode ainda oferecer em termos de atrativos.
(Mais detalhes arquitetônicos desse edifício, bem como de suas circunstâncias histórias podem ser obtidos, AQUI . Trata-se de um trabalho apresentado pela arquiteta urbanista Carmem Alvarez, em 2007, no Seminário "O Moderno já Passado / O Passado no Moderno", em Porto Alegre.  Vale a pena conhecer.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas, ainda assim, com uma boa dose de imaginação e sentido da história, o viajante da atualidade poderá entrar no clima do vivido alheio e usufruir do clima do momento do qual sempre se pode extrair encantamento, uma vez que é composto de gente e gente, como queria o poeta, é para brilhar.

Durante os dias que lá estivemos, assistimos, como ocorre em hotéis de grande circulação no mundo inteiro, tanto ao café da manhã quanto simplesmente sentados no hall de entrada a fingir que se lê o jornal do dia, mas atentos ao espetáculo de culturas, através dos viajantes que ali ficam hospedados em Congressos e Seminários internacionais, do qual tiramos muitas destas informações.

Dois grandes grupos (um indiano e outro senegalês) chamavam atenção pela beleza física e trajes de suas mulheres. No lugar da Rainha Elizabeth que por lá passou nos anos 50, uma incógnita (ao menos para mim) rainha africana que, ao lado do seu belo par e do alto de seus 1,80m, circulava com uma colorida e segura leveza que deixava tudo ao redor em suspenso. Os brilhos dos panos das indianas, com seu andar manso mas decidido também iluminavam os espaços comuns. O espetáculo de cores e sorrisos era todo comandado por elas, na sua grande maioria, ladeadas de homens opacos, amarrados com crachás de identificação ao peito,  semblantes sombrios.
A recusa ao crachá - essência da revolução feminista, não tenho dúvidas.

excertos do diário de bordo:



quem, antes entrou?


quem antes se viu?
quem antes se deitou?

quem, à janela deste 23º andar
                mirou tantas outras janelas?
que cenas anotou?




Sair e ver de perto o que de cima é irreal

(anotar as sombras)

sábado, 16 de maio de 2015

Manhã de Maio

A luz desta manhã de maio me convidou a andar. Anotar a cidade e suas passagens, um exercício adorável, mas que tenho praticado pouco.
Agora, luz natural já apagada, reabro um livro de um poeta que andei a reler nos últimos dias, Edimilson de Almeida Pereira, mineiro/brasileiro/universal.
Como poesia (a boa poesia) jamais envelhece, copio aqui um dos poemas, de uma página aberta ao acaso, lido com o frescor deste dia.


POROS

Maio convida a passeios.
Tudo exposto como se alguém
deixasse a luz acesa.
Sorri um crime de besouros,
um filho chega à janela.
O homem antevê seu chapéu.
Nomes não chamam ninguém
mas costuram o mundo.
Se a ferrugem floresce,
abre incêndios nas calhas.
O que é permanência dura
um eclipse

in As Coisas Arcas, obra poética 4, Funalfa Edições, 2003


sábado, 25 de abril de 2015

Mísia - Fado, portugueses em São Paulo, 25 de Abril

Chegamos cedo. A noite tépida outonal convidava e a espera aguçava a curiosidade.


Teríamos um "show de fados - Mísia e Pedro Moutinho" em "Comemoração do 41º aniversário do 25 de Abril a revolução dos Cravos que restaurou a democracia em Portugal - Apresentação dos cantores Mísia e Pedro Moutinho.", anunciavam os cartazes (sic).
A Casa de Portugal ocupa um belo, mas sombrio edifício, no chamado centro velho de São Paulo, região igualmente bela e sombria. Está lá há 80 anos e tem histórias relevantes nessa trajetória luso-brasileira. Trata-se, portanto, de uma respeitável senhora entrada em anos a quem devemos relegar eventuais falhas e faltas. Como ali não se faz nada que não seja, antes, acompanhado de acepipes, lá estavam os bolinhos de bacalhau,  alheiras e vinho. Não sem alguma ternura, observo, enquanto espero,  fisionomias "familiares" sem que lhes conheça nomes ou sobrenomes. "Familiares" porque, afinal,  nos une a condição de "emigrantes" que para esta megalópole vieram e "brasileiros", como eu, se tornaram. Estão ali, não pelos pastéis, alheiras ou vinho. Ali vieram para resgatar um elo, frágil que seja, que a pátria primeira insiste em ligar suas memórias. A mesa e a memória dos sabores primevos é o primeiro impulso, depois vem a memória sonora, aquela que estabelece o elo estético, por mais rude que tenha sido a infância de muitos deles. Vieram, viram, venceram, ficaram. E como o retornado de Camilo, acalentaram por muitos anos o sonho do retorno, mas jamais voltaram e, se ocasionalmente o fizeram, foi para se reconhecerem naquilo que um dia foram e que não são mais, ainda que marcas indeléveis do rizoma insistam e forneçam sinais e, por vezes, provoquem dores não identificáveis.
Muitos cabelos brancos, algumas bengalas, próstatas que obrigam a levantar algumas vezes durante o espetáculo. Pouco importa, é preciso estar ali para identificar ou tentar identificar o que se foi/é. É fado? Vamos! E foram, muitos. E não sabiam, ao menos grande parte deles, sequer quem era Misia, mas era fado... Foram.
Com todo o meu carinhoso respeito e que me desculpe o jovem fadista que abriu o espetáculo, mas quando Misia subiu ao palco, com seu elegante vestido negro e uma enorme rosa vermelha ao peito, silhueta de bailaora andaluz, mas de legítima essência lusitana, toda a memória do que ali se passara antes, simplesmente desapareceu (ao menos para mim que ali estava, mais uma vez, rendida).  
Até a fúria inicial dos celulares (essa odiosa prática dos nossos dias) foi amainada, tamanha era esta nova "fúria", a da arte de Misia, que ali se instalava. O primeiro número foi, eu diria, revestido de uma certa "neutralidade" de ambas as partes, momento de reconhecimento entre palco e plateia. Já no intervalo entre este e o segundo número, Misia evoca Amália com reverência e justiça, referindo-se ao coro da plateia que fora ouvido momentos antes, ao entoar,  junto ao Pedro Moutinho, o fado "Nem às paredes confesso", pontuando que "Amália está cada vez mais viva e o coro é prova disso".
A partir daí, a empatia acontece e sua presença passa a preencher todos os espaços, do palco à plateia e a invadir todos os sentidos. Simplesmente hipnótico. Quando sua poderosa voz, antes mesmo da introdução da guitarra, à capela, ecoou naquela sala quase centenária, soube-se que não se estava diante de apenas mais uma fadista, mas de uma quase entidade, expressão legítima de um sentimento genuinamente português. Ali estava alguém que parecia não ser dali, mas ao mesmo tempo pertencia a todos que ali estavam.
Misia, uma vez mais, demonstrou que jamais esgota suas possibilidades interpretativas, não só interpreta o Fado de uma maneira única, como também reflete e faz refletir sobre esta canção tão urbana, tão portuguesa/universal e, diga-se, depois de Amália e Mísia, tão literária. Nada nela é linear ou sossego. Nada em Misia faz concessões à facilidade, mas ao desassossego. Mas, por mais paradoxal que seja, tudo nela é tão claro e luminoso que essa complexidade torna-se tão natural para o receptor que a empatia torna-se imediata, dando-nos a sensação de isso é "tão simples" e "natural". Misia vai com muita facilidade desse enganosamente simples ao dramático extremo e, nisso é imbatível. Primeiro porque há que se ter o fado nas entranhas, o que se vem a chamar de talento, depois, porque é preciso chão e vivências para chegar ao grau de dramaticidade a que chegou esta artista. Tudo nela é representação e, por essa imensa capacidade de estar no palco e representar, é que tudo nela, afinal, é verdadeiro, dramaticamente verdadeiro.
Estávamos, portanto, diante de um patrimônio da língua e da cultura portuguesa, uma artista que, como ninguém, representa para o mundo o moderno Portugal, sem jamais deixar de estabelecer conexão com a tradição.
Sem jamais abrir mão do Fado Menor, no qual é simplesmente inigualável, passa por inúmeros outros gêneros, apropriando-se de culturas outras (espanholas, francesas, brasileiras), ora transformando-as em fado, ora mantendo-as em suas tradições às quais introduz um toque misiano (e fadista) inconfundível.
Lá pelo meio do inesquecível recital, no qual Misia cantou literatura (Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luiz, Fernando Pessoa, Saramago, dentre outros) veio o grande tributo a Amália. De forma emocionada e emocionante, interpreta "Tive um coração, perdi-o", versos da própria Amália e música de José Fontes Rocha. Foi aí que se deu o que Amália chamava de "Acontecimento". O Acontecimento, ou seja, as alturas a que podia chegar e a que Mísia, ao homenagear sentidamente Amália, chegou. Para quem  atentamente acompanhava o recital, não foi difícil perceber que naquele momento o "Acontecimento" se deu, a ponto da visível emoção da intérprete, fio condutor mais do que perfeito, conectar com a plateia, igualmente emocionando-a. Culminância dos sentidos e do ato de cantar e comungar. Momento único em que a discreta lágrima da artista, ao final do número, comprovou.
O último número veio com a boa notícia de um novo trabalho, para Amália e com Amália, a sair em outubro. Para ilustrar e aguçar a expectativa, um fado de Mário Cláudio para Amália, em absoluta primeira vez. No bis, insistentemente solicitado por uma plateia já cativada, uma canção brasileira de um dos mais brasileiros dos nossos compositores, Dorival Caymmi (uma canção de 1941, em parceria com Jorge Amado, inspirada no romance deste último, Mar Morto), a bela "É doce morrer no mar", já agora Fado, na voz e interpretação de Misia.
Estava cumprido o propósito do espetáculo alusivo ao 25 de Abril, sem que uma só palavra da artista o tivesse dito. Mas o Portugal pós 25 de Abril ali estava, o Portugal moderno e democrático, mesmo com todos os percalços, rupturas, equívocos, desvios, esquecimentos dos ideais daqueles já distantes anos. Uma noite para não esquecer.

Em tempo: abaixo, uma gravação do bis (amadora), por um agente secreto por mim contratado (licença poética sem fins comerciais), que roubartilho.





domingo, 29 de março de 2015

Retorno, licença poética e lembrete de Vieira

Texto originalmente publicado no Facebook:

12 dias licenciada  da rede. Uma licença poética, literalmente.
Experiência Detox pela poesia. Poesia todos os dias, na veia, em doses cavalares.
Retorno porque toda dieta é assim, provisória. Desintoxica para intoxicar novamente.
Para completar a desintoxicação, desci a serra. Mergulhar o corpo na água salgada. O costumeiro verde mata atlântica, nesta época, todo salpicado de rosa e branco (os manacás). Exuberância de Outono. Eficiência comprovada da receita.

Nesse meio tempo, os deuses cibernéticos derramaram sua vingança sobre mim e me brindaram com uma épica gripe. Não tive como evitar uma analogia com os dois personagens de Sarapalha, sua febre terçã e sua recusa a sair do lugar ("Ir para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai!.."). Trêmula, pensava neles enquanto soprava a xícara de chá fervente. Entre tremores e zumbido no ouvidos, entupidos (eles de quinino, eu de chá de alho com limão), irmãos nas maleitas humanas.
Nesta pausa de silêncio e leituras notei o seguinte:

- A vida fora do FB é bem menos frenética. Não se ouvem tantas vozes ao mesmo tempo, as pessoas seguem seu cotidiano, vão ao supermercado, ao açougue, ao cabeleireiro, à livraria, ao shopping, trabalham, descansam e a vida urbana segue sem tantos especialistas, vida feita de gente de carne osso, remelas, coceiras, febres, torções e, claro, sorrisos e gestos de bem querer.

- O FB pode ser, sim, interessante. Confesso que senti falta de balizar minhas opiniões com as de gente que respeito e admiro. Ainda que de maneira um tanto quanto oblíqua, entrei diariamente por aqui, pois a comunicação via email está gradativamente desaparecendo. Na suposição de que estamos on-line diuturnamente, as mensagens, em sua esmagadora maioria, são enviadas pelo "messenger" do FB. Mas resisti e cumpri a licença à risca.

Termino, com Pe. Antonio Vieira, relido também nestes dias, que me alertou sobre o Facebook: "A maior graça da natureza, e o maior perigo da graça, são os olhos. (...)  o maior perigo e o maior laço são os olhos alheios. E por quê: Porque sendo tão natural do homem o desejo de ver, o apetite de ser visto é muito maior. (...) Tão imortal é nos mortais o desejo de ser vistos!" ("Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma - Pregado na Misericórdia de Lisboa, no Ano de 1669", in "Sermões", organização Alcir Pécora, 2 volumes, Ed. Hedra, tomo 1, 2001)


domingo, 8 de março de 2015

Mulheres


O Dia Internacional da Mulher deveria ser lembrado (e não o é) pelo que verdadeiramente evoca, ou seja, um ato bestial cometido contra 109 operárias, em 1908, em Nova York, que foram queimadas vivas pela polícia na fábrica têxtil Cotton, onde trabalhavam. Tinham reivindicado a diminuição da jornada de 14 para 10 horas, aumento salarial e melhoria nas péssimas condições em que viviam. Conta-se que, algumas delas, chegavam a ter os filhos dentro da fábrica. Como não foram atendidas em nenhum de seus pedidos, ocuparam a fábrica e a solução encontrada pelos policiais foi matá-las. A partir daí comemora-se essa data mundialmente em homenagem a essas mulheres.

Passados mais de 100 anos daquele fatídico episódio,  pouco ou nada mudou, nem no mundo do trabalho, muito menos no universo doméstico. A mulher  ainda não recebe salário igual ao dos homens para funções iguais. Surpreendentemente, a sociedade, mostra-se cada vez mais machista com a consequente e inaceitável violência praticada diuturnamente contra as mulheres de todos os níveis sociais, violência não apenas física, como também moral. Bom exemplo disso são os repugnantes comerciais de cerveja (carros, turismo e outros) que insistem em associar a imagem da mulher a mercadoria saborosa e de fácil consumo. 

Refletir sobre o significado desse dia e do seu universo simbólico é também rejeitar as "homenagens" de políticos, comerciantes e eventuais desavisados que, ao contrário dos tais comerciais, associam a imagem da mulher a uma flor, à beleza, à ternura e outras baboseiras que da mesma forma só disfarçam o machismo institucionalizado.

Muito conquistamos, muito ainda nos falta. Trocar os presentes deste dia 08, por ações diárias e permanentes é a proposta. Sem perder a ternura, vá lá...

Alô, alô, mulherada que vai à luta, aquele abraço...

Alô, alô, mulherada que pensa, aquele abraço...

Alô, alô, mulherada que protesta e sabe dos porquês, aquele abraço...

Alô, alô, mulherada parideira, criadeira, educadora, provedora, profissional de todas as funções e artes do universo, aquele abraço...

"deram-lhe um dia
apenas um dia
(devem-lhe séculos)

Na tentativa de remissão
as flores constrangidas
(homenagem tardia)"

         dtv